quinta-feira, 2 de outubro de 2014

As ‘almas’ de Aristóteles e os duplos laços




1. Isto foi feito em cima do joelho. Ao acaso duma conversa sobre a diferença entre alma e espírito, o recurso à tripla concepção aristotélica de ‘alma’ fez de repente ‘tilt’ na minha cabeça (mas não chegou para me propor uma leitura cuidada dos textos). A alma vegetativa é o que dá forma ao corpo enquanto capacidade de nutrição, à maneira das plantas, assim como a sensitiva lhe dá capacidade de conhecimento do mundo em que o animal se move. Ora, quando comecei o meu Le Jeu des Sciences, justamente pelo capítulo sobre as ciências da vida, veio-me quase espontaneamente a distinção entre o sistema da nutrição e o sistema da mobilidade, que mais tarde vim a compreender como o duplo laço das anatomias zoológicas. Em que consistem então esses laços? O da nutrição corresponde ao que liga os vários órgãos que concorrem para a nutrição de todas as células do organismo, razão pela qual, embora o sistema não corresponda a todos os órgãos da anatomia, pode no entanto ser compreendido como ‘forma’ ou ‘alma’ de todo o corpo. Mas será uma alma incompleta, que precisa da outra ‘alma’, sensitiva, já que a nutrição animal, ao contrário da das plantas, exige o deslocamento em busca de que comer e este pede os órgãos de conhecimento, visão, audição, tacto, e sobretudo faro e olfacto, que permita descobrir presas e discernir o que se pode e não pode comer, mas pede também membros móveis. Só que Aristóteles não liga estas sensações que permitem conhecer o mundo (sensível) em que se é – onde ele aliás inclui a voz e a fonação em correlato com a audição, o que os nossos ‘cinco sentidos’ tradicionais não fazem, como também não consideram o ‘trabalho’ das mãos ao tratarem do tacto – aos órgãos da mobilidade, o movimento do animal e do humano sendo analisado depois de todas as diversas faculdades como tendo o seu princípio no desejo e no intelecto, que é o que faz ‘mover’ (localmente) para fins: a busca ou a fuga de qualquer coisa. Talvez o faça no seu tratado sobre “as partes dos animais”, um texto de anatomia comparada.
2. Qual a razão desta maneira de abordar? Provavelmente, a consideração da alma como princípio de funções e de faculdades é a razão principal, resultante da exclusão do contexto pela definição (embora após observação desse contexto como condição duma boa definição). A própria faculdade de nutrição, que dá conta por exemplo do crescimento dos animais, é uma faculdade da alma, sem considerar que o alimento vem de fora e implica a mobilidade que considera mais tarde, perto do final do texto. Essa razão principal tem como implicação análises separadas dos vários órgãos e respectivos funcionamentos; uma ligação das sensações faz-se no sentido comum a todas, o qual permite percepcionar o movimento e o repouso, a figura, a grandeza, o número e a unidade. Há sem dúvida aqui um efeito, se dizer se pode, da ontoteologia herdada de Platão e da definição, embora reelabore esta herança criticamente nas suas análises.
3. Então como caracterizar o que chamo sistema da mobilidade? Ele liga os órgãos perceptivos ao cérebro e este aos músculos da mobilidade e os jogos hormonais que excitam ou inibem, implicando por exemplo a fonação correlativa dos ouvidos, assim como as mãos (trabalho) e os pés (deslocamento) correlativos dos olhos. Ele é o ‘aparelho’ da anatomia do animal (de que o sistema da nutrição é o ‘motor’), pertencendo ao todo do animal, os seus órgãos são igualmente alimentados, mas diferencia-se do sistema da nutrição, não apenas pela mobilidade como também pelo repouso: com efeito, o sono dirige-se justamente a ele, nomeadamente à tonalidade dos músculos mas também à percepcionalidade dos olhos (que chegam a ser ocupados pelos sonhos!), ouvidos e tacto, que ficam adormecidos, capazes de serem alertados por situações perigosas embora. Forma uma ligação dos seus órgãos (que é excitada pela fome e sede que vêm da ligação do sistema de nutrição) através do sistema neuronal – duplo cérebro e nervos –, o paleo-cortex vigiando, controlando a homeostasia do sangue nutricional, tendo pois uma função decisiva na nutrição, enquanto que o neocortex se dirige mais à mobilidade: trata-se pois duma dupla ligação, nenhuma das duas ligações joga sozinha (como será talvez o caso da nutrição das plantas?), é essa, juntamente com a sexualidade, a espantosa invenção da evolução desde muito cedo.
4. Resta a questão da alma intelectiva aristotélica nos humanos. É sem dúvida aonde a ontoteologia prega uma maior partida ao Aristóteles inventor da lógica: é que, sem nunca ter feito uma leitura suficientemente trabalhada do Da alma, creio que o motivo do logos que está no coração do aristotelismo surpreende aqui pela sua ausência. Imaginação e inteligência são estudados por assim dizer ‘biologicamente’, quase como os neurologistas de hoje (sem ofensa), procurando dar conta da experiência intelectual que distingue, senão todos os humanos, pelo menos aqueles que os filósofos mais apreciam. Há uma alma para a inteligência, esta sendo ‘passiva’, como as sensações que se recebem de fora, e há um intelecto agente, activo, que mal se explicita e foi muito especulado. “O pensamento que vem quando ele quer e não quando eu quero” de Nietzsche? As leituras e a audição dos mestres, o saber que voga na sociedade e interpela cada um, como ‘agente’? Vá-se lá saber. A não ser que se interrogue no tratado Da Política a mais célebre definição de humano do Ocidente, zôon echon logon, o animal que tem discurso, em que logos tanto é pensamento, razão como língua, fala. Eis o que corrige o Da alma em seu biologismo, que obriga o intelecto humano a ‘transcender’ o corpo e a sua alma sensitiva: é do mundo social que vem o logos contando com língua e saber tradicional, o intelecto é aí que se aprende e desenvolve, passivo que se inscreve como activo. No que diz respeito ao duplo laço dos humanos, aquele que releva da mobilidade liga cada um à sua tribo pelos usos e linguagem com que ela o prende, faz aprender até à espontaneidade, tal que já Aristóteles e ainda os nossos melhores neurologistas caiem no logro de pensar o pensamento como idion, próprio de cada um, como se fôssemos idiotas que nada aprendem. Mas trata-se do maior enigma, de como a tribo nos faz nós, nos deixa ser na nossa singularidade.

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