quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Quando Nietzsche admira o saber que ele contesta




 “HÁ QUE ADMIRAR O HOMEM POR SER UM PUJANTE GÉNIO DA ARQUITECTURA
QUE CONSEGUIU ERIGIR SOBRE ÁGUA CORRENTE
UM EDIFÍCIO CONCEPTUAL
IN­DEFINIDAMENTE COMPLICADO” (NIETZSCHE)[1]


Os dois gestos sobre a linguagem, o de Occam e o de Nietzsche
A novidade deste texto de Nietzsche: a génese da linguagem
Retorno parcial à mesmidade de Parménides em três etapas
Paradoxo da verdade filosófica
Onde é que há conceitos filosóficos?

1. Esta citação de espanto pertence à Introdução em termos de teoria do conhecimento sobre a verdade e a mentira em senti­do extra-moral, de 1873[2]. É o espanto diante da relatividade de todo o saber, científico e filosófico, do Ocidente – um edifíco sem fundamentos, sobre a água corrente – mas talvez que sem relati­vismos, já que o edifício não se desmorona. Passados quase 130 anos sobre a escrita deste texto póstumo – inacabado em seus dois capítulos, o primeiro ar­gumentativo para que o segundo se dê como afirmação jubilosa –, este espanto perdura, em mim pelo menos: é o que procurarei esclarecer aqui. Todavia não é ele que interessa Nietzsche, não é o que ele procura neste texto, já que surge quase como uma objec­ção, dir-se-á logo a seguir: “há muito que admirar aqui, mas não por uma pulsão de verdade, nem pelo puro conhecimento das coi­sas”. É algo que tem que conceder no caminho para a afirmação do capítulo 2, a do “heroi muito alegre”, do “artista intuitivo” e da sua “pulsão para formar metáforas”, porque este só é possível se for antes demonstrada a relatividade do saber, se as essências das coisas não forem co­nhecidas. E é no caminho de desobstrução do que impede tal re­latividade que Nietzsche apercebe o “edifício conceptual indefini­damente compli­cado” que se aguenta sem fun­dações, sobre a água corrente, e se espanta em como tal é possível – procurará mesmo explicar este prodígio de arquitectura com ar­gumentos kantianos ! –, para pros­se­guir depois enfim o seu cami­nho, que é o da sua libertação pes­soal do fascínio pelos conceitos: deixar de ser escravo deles, dei­xar de ser professor, para se tornar livre senhor artista, aquele que joga com intuições súbitas. Observe-se que minar os funda­mentos do edifício conceptual poderia levar ao seu desmorona­mento e à gargalhada do artista que ri sobre os des­combros. Fácil de mais: os fundamentos desaparecem e o edifício não cai. É nele e nos argumentos que lhe liquefazem os alicer­ces que vou aten­tar. Pas­sados tantos anos, talvez se encontre as­sim algu­ma liber­dade também, algum jogo com conceitos.

Os dois gestos sobre a linguagem, o de Occam e o de Nietzsche
2. Na minha comunicação ao colóquio de 2000, come­moran­do nesta mesma Faculdade de Letras o centenário do início da fe­nomenologia de Husserl, delineei dois gestos sobre a linguagem na instituição filosófica dos dois episte­mas europeus descritos por Foucault, o clássico e o moderno[3]. O primeiro gesto foi o de Occam e do seu nominalismo, negando a existência das essências aristo­télicas nas próprias ‘coisas’ (nas ‘coisas-em-si’ dirá Kant, seu des­cendente), para as alojar nos “nomes mentais” com que essas coi­sas são pensadas; quanto aos nomes das línguas com que elas são designadas, eles serão subordinados aos mentais universais. A gé­nese da repre­sentação mental teve aí uma etapa decisiva (com ori­gem porven­tura na filosofia árabe comentando Aristóte­les), abrindo precoce­mente o epistema clássico: representação elabo­rada mormente por Descartes como ideia, que depois reto­marão de formas várias racionalistas e empiristas, como se diz. Segundo os nominalistas, as coisas são todas substâncias singulares, inclu­sive as almas que as conhecem, Descartes di-las-á ‘res’, umas ex­tensas, outras cogi­tantes: Occam enterrava assim a mesmidade parmenidiana entre ser (einai), pen­sar (noein) e dizer (legein) que subsistia ainda na não-separação entre a substância-essência dos seres vivos e o discurso das categorias que os pensava no aristotelismo medieval[4]. De facto, a represen­tação mental só ganha sentido como ‘ponte’ entre os separados: das ‘coisas’ às ‘almas-sujei­tos’ que as conhecem, e tão afastadas fi­cam as duas margens do rio do conhecimento que Des­cartes, Ma­lebranche, Leibniz, Berkeley, precisarão de Deus para garantir o co­nhecimento ver­dadeiro. Neste epistema, a linguagem não tem se­não uma exis­tência secundária, a dum instrumento, a duma ex­pressão das excelentes re­presentações que são as ideias.
3. Foi o que veio corrigir o segundo gesto, o de Nietzsche. Foucault: “a linguagem só entrou directamente e por ela mesma no campo do pensamento no final do sec. XIX. Poder-se-ia dizer até que no séc. XX, se Nietzsche o filólogo – como ele era sábio, sabia tanto, escrevia tão bons livros – não tivesse sido o primeiro a aproximar a tarefa filosófica duma reflexão ra­dical sobre a lin­guagem” (ed. fr., Gallimard, 1966, p. 316). Quero crer que o que, em termos filosó­fi­cos, há de totalmente novo neste texto póstumo de 1873 é jus­tamente o ter aborda­do a questão do conhecimento afrontando a representa­ção mental através da tentativa de elucidação da géne­se da linguagem: uma vez que tal como a representação caracteri­za o epistema clássico, segundo Foucault, também assim o tempo das géneses caracteriza o mo­derno.
4. No Nascimento da Tragédia, publicado um ano antes deste texto ser escrito, Nietzsche privilegiava Kant e Schopenhauer por terem “uma sabedoria dionisíaca formulada em conceitos” (ed. fr., Gonthier, 1964, p. 130). Poder-se-ia pensar que, nesse primeiro texto publicado por Nietzsche, o Schopenhauer da filosofia da vontade (paralela da música) e da representação teria introduzido a música no fosso kantiano entre o mundo dos fenómenos e o mundo das coisas-em-si, pensar depois que, tendo Nietzsche des­coberto, à luz da leitura de dois livros en­tretanto publicados[5], a natureza metafórica origi­nária da linguagem, é agora a música que é substituida pelo turbi­lhão móvel das metáforas. Sai pois Schopenhauer de cena, enquanto Kant passa para o lado do ad­versário, já não dionisíaco mas racional: é ele quem lhe oferece – além duma solução (“idealista”, diz) tran­quili­zante para o espanto que nos move aqui – a metáfo­ra do edifício conceptual, central no prefácio da Crítica da Razão Pura, onde é justamente um edifício de representações. Ora, já aí se mostrara que tal edifício não atinge as coisas em si, a ‘essência das coisas’: não é esta tese, re­petida à saciedade, que é nova aqui, mas a argu­mentação que a apoia e a nova luz que esta traz sobre a relação entre a verdade e (o esquecimento d)a génese da linguagem.

A novidade deste texto de Nietzsche: a génese da linguagem
5. A dupla do apolíneo e do dionisíaco do Nascimento da Tragédia dá aqui lugar à do homem racional e do homem intuiti­vo, à da teoria e da arte, já não em dialéctica mas em oposição exclusiva, segundo um contraste que o cap. 2 desdobra magnifi­camente. Do ataque aos fundamentos do que aquele tem de mais caro, a pulsão para a verdade do conhecimento das coisas, resul­tará o elogio da liberdade e da ligeireza deste. Tentarei sugerir o que a argumen­tação tem de surpreendente. A relatividade radical do conheci­mento humano ressalta inicialmente na maneira inédi­ta como a cosmologia e a biologia darwinista suas contemporâneas são evo­cadas. A terra onde o conhecimento apareceu não é senão um canto de numerosos e ‘eternos’ sistemas solares: a invenção do conhecimento por animais inteligentes não é mais do que um mi­nuto nessa história cósmica, pese embora ao orgulho do filósofo que se julga centro do universo. Esses animais inteligentes são mais fracos do que muitos outros, e o seu intelecto não é senão uma arma astuciosa de animais fracos e efémeros, uma ilusão, uma ma­neira de dissimularem aos outros essa fraqueza e de a si mesmo se ilu­direm. É aonde se dá, quase imperceptivelmente, a inflexão que inundará esplendida­mente o cap. 2, uma viragem nesta negativi­dade inicial sobre o intelecto humano: é que ilusão e dissimulação só são negativas para os defensores dogmáticos da verdade cien­tífica e filosófica assente nas essências das coisas, pois que elas são a própria liberdade do artis­ta intuitivo e não racional, fraco e sem armas. O eco dum nosso poeta dará a entender: “o poeta é um fingidor”, é a ficção e não a verdade que ele busca, trabalhando com as metáforas mais inauditas. Há pois que indagar da origem destas: é simples mas inédito em filosofia, as metáforas são a pró­pria origem da linguagem.
6. Porquê inédito? Dir-se-á mais adiante, as metáforas são o lugar do risco e de toda a insegurança, do não aprender com a ex­periência e voltar a cair nas mesmas armadilhas. E foi contra isto que os humanos, para evitar a anarquia hobbesiana da “guerra de todos contra todos”, fixaram “uma designação das coisas unifor­memente válida e obrigatória”, ou seja as primeiras leis da ver­dade. E é da linguagem como designação uniforme e obrigatória que o texto vai contar a génese. Procurarei mostrar a pertinência mas também a fragilidade dos argumentos, esta sendo presumível ‘a priori’, já que nenhuma frase do texto de Nietzsche seria legível por qualquer pessoa, ele incluido, não fora tal unifor­me e obriga­tória designa­ção.
7. Tratar-se-á essencialmente de dizer que não há lógica na formação das línguas, que estas são arbitrárias, como aliás se sabe desde o Crátilo de Platão e do Da interpretação de Aristóteles, e era a razão pela qual a filosofia europeia subordinara a linguagem ao pensamento; mas em seguida acrescenta-se o que subverte toda esta tradição: “não é em todo o caso logicamente que procede o nascimento da linguagem e todo o material no interior do qual e com o qual o homem da verdade, o sábio, o filósofo, trabalha e constroi em seguida, se não provém do ‘havia um cucozinho...’, também não provém em todo o caso da essência das coisas”. Su­blinho a palavra ‘material’, como mais adiante se falará do “Stoff der Begriffe”, do estofo-matéria dos conceitos: é nesta concepção ‘material’ das palavras (e dos conceitos) – que permitirá os edifí­cios conceptuais erigidos sobre a água corrente – que creio residir em última análise a novidade filosófica deste texto, que continua­rá na restante obra de Nietzsche. Interessa por isso ver porque é que, não apenas este texto ficou inacabado como a sua problemá­tica não reaparecerá posteriormente: haverá genealogias, sim, mas de interpretação activa, como aqui ainda não.
8. Ora, interpretação e avaliação serão de textos e das suas questões e não de ‘palavras’ soltas, descontextualizadas, como a gé­nese que aqui se tenta. Primeiro uma “excitação nervosa”, da ‘folha’ duma árvore por exemplo, depois a sua transposição em uma “imagem”, por sua vez transformada no “som” ‘folha’. Dois saltos arbitrários, duas metáforas ou transportes entre esferas diferentes. Em seguida, esse som será aplicado a uma outra folha, e outra e outra e muitas folhas, e perde-se, esquece-se a expe­riência única e original, “todo o conceito nasce da identificação do não-idêntico”, com abandono das diferenças individuais: nasce assim a representa­ção, a ‘folha’ original de que as folhas existen­tes são cópias infieis. Da mesma maneira, o adjectivo ‘honesto’ aplicado a acções numerosas e individualizadas, todas diferentes, sem que haja a ‘honestidade’ que fosse causa de tais acções. Con­clusão: nenhuma pulsão nos leva à verdade, esta não consiste se­não na “obrigação de mentir segundo uma convenção firme, de mentir gregariamente num estilo constrangedor para todos”, o que só é possível por causa do longo esquecimento por numerosas gerações da origem das palavras, que não são mais do que antro­pomorfismos, relações humanas, que não têm nada a ver com a essência das coisas, ainda mesmo quando se trate de definições (da de mamífero, com reconhecimento tautológico depois de que o camelo é um mamífero). Voltaremos a esta questão da definição, mas duas coisas são óbvias a qualquer pessoa: 1) ainda bem que só há uma palavra ‘folha’ para dizer as milhões de folhas diferen­tes que há nas árvores terrestres, que se eu quero falar duma folha singular basta-me dizer algo como ‘repara nesta folha’, isto é, é por discursos, não por palavras soltas, que o singular se diz, as línguas têm uma série de morfemas (artigos, demonstrativos, adjectivos) que permitem essa singularização; 2) é por as palavras serem imotivadas que não permitem conhecer a essência das coi­sas designadas, e também por isso são polissémicas e se prestam à metaforização, e foi justamente por isso que foi necessário aos filósofos inventa­rem as definições das coisas para tentarem che­gar a conhecê-las; de resto, a biologia molecular permite hoje contradizer o que fica em questão no caso do mamífero e do ca­melo (lá iremos).

Retorno parcial à mesmidade de Parménides em três etapas
9. Voltando ao contraste entre os gestos de Occam e o de Nietzsche aqui, vê-se que este retornou à ‘mesmidade’ entre dizer e pensar de Parménides, mas deixando ca­vada a sepa­ração entre o sujeito que diz-pensa e a realidade dita-pensada, ou seja só fez metade do caminho de retorno. Ora, eu creio que será necessário completar tal retorno para que este texto póstumo possa ter hoje o seu acabamento, para que o espanto so­bre a re­latividade do co­nhecimento científico e filosófico que a citação do meu título con­voca tenha o esclarecimento possível. Usaria aqui uma metáfora para dizer a operação de leitura a que o vou sub­meter, uma in­tervenção cirúgica de transplantação, um enxerto, uma metáfora operatória em suma, violenta, sem as neu­tralidades académicas das hermenêuticas: substituir a caduca ‘fisiologia’ dos nervos, das imagens e dos sons que Nietzsche tinha à sua disposi­ção no início do último quarto do século XIX pela concepção dos grafos neuro­nais devida ao neurólogo contemporâ­neo Jean-Pierre Changeux, a qual aliás elaborarei um tudo nada além dele[6] mas a partir dele. Os nossos cérebros são grafados, vias duradouras são inscritas nas sinapses dos neurónios[7] pela expe­riência antropológi­ca lentamente adquirida, aonde não podem dei­xar de predominar os usos mais correntes da nossa tribo em que nos tornamos es­pontaneamente hábeis. Eu proporia que haja dois eixos de com­portamentos singu­larmente importantes: aquele que vai da área occipital nº 17 da cartografia de Brodmann, aonde chegam os nervos ópti­cos, até (com pas­sagem pelo paleo-cortex e pelo cere­brelo) à base da área motora nº4, onde se comanda os músculos das mão e dos dedos, seria o eixo visão / mãos que joga em todos os ‘trabalhos’ em que tenhamos que manipular coisas com alguma atenção e habilidade (incluindo a escrita deste texto). O outro eixo vai das áreas 41 e 42 onde chegam os nervos acústicos até (também com passagem pelo paleo-cortex e pelo cerebrelo) ao mesmo terminal da área 4, onde também se comanda os músculos da voz, seria o eixo audi­ção / fonação da linguagem oral. Ora, este segundo eixo cruza-se sem dúvida com o primeiro nas áreas co­muns dos cérebros de primatas onde a linguagem se veio enxer­tar, nomeadamente a 44, dita de Broca e a 22, dita de Wernicke, sem que se saiba grande coisa do ‘como’ desse cruzamento (aí não há nem ‘imagens’ nem ‘sons’, apenas química e electricidade). Pressuponho que não se trate propriamente de nenhuma mistura do que vem dos olhos e dos ouvidos, já que me parece que a no­ção de eixos comporta­mentais implica a res­pectiva autonomia (são esferas diferentes, na terminologia de Nietzsche), mas dum qualquer ‘contacto’ parmenidiano que permita, por exem­plo, que se ensinem por um dos eixos ‘receitas’ do que pelo outro se fará: uma receita culinária, ou como se pro­grama uma máquina de la­var roupa ou a gravação de um filme com um ví­deo, se substitui um vidro numa janela, se diz como se vai da rua Alexandre Her­culano ao Terreiro do Paço, sei lá. São exemplos em que não é ne­cessário conhecer as essên­cias das coisas que se utilizam, mas em que há uma certa ‘mesmidade’ entre o que a receita diz-pensa e o que se faz naqui­lo a que os filósofos costumam chamar ‘realidade’. Ora, para tor­nar as coisas ainda mais curiosas, tal mesmidade existe em qual­quer língua em que a receita seja dita-pensada, desde que seja a dos grafos do eixo cerebral de fonação.
10. Primeira etapa do retorno a Parménides. O que ela im­plica é substituir os ‘exemplos’ tradicionais sobre o conhecimento, que deixem de ser tinteiros ou bocados de cêra, coisas que apenas se vêem, para se tornarem usos de ver, ouvir e mexer as coisas, usos tais que sem eles o ‘sujeito’ não é sujeito de nada, porque nada sabe ou pode ver, entender ou fazer. E que deixem de ser também exemplos de palavras soltas, nem sequer de frases ou proposições ou enunciados, mas de dis­cursos ou textos, dos quais as receitas são um exemplo primário. Com a consequência assim de que são tais usos (que vão até à poesia e aos mitos, não se trata aqui de nenhum utilitarismo) são instituintes do sujeito, grafam nele as coisas da habitação no mundo que lhe permitem ser-no-mundo, como dizia Ser e Tempo. Quando pego num garfo e numa faca à mesa, ou num sa­bonete na banheira, ou ligo a chave do motor de arranque do meu carro, e faço estes gestos quase mecanicamente, não sou um ‘sujeito’ separado desses ‘objectos’, só sou sujeito desses gestos porque os aprendi: foi essa aprendizagem que me tornou ‘sujeito que diz pensa usa os ob­jectos da realidade’. Poder-se-á objectar que este retorno a Par­ménides é curto, que estes usos de que falo cabem muito bem no que Nietzs­che chama “antromorfismos, uma soma de relações humanas [...] que, após um longo uso, parecem a um povo firmes, canónicas e constrangedoras. [...] O homem es­quece seguramente que é assim no que lhe diz respeito; mente in­conscientemente da maneira de­signada e segundo costumes cen­tenários, e precisa­mente graças a essa inconsciência e a esse es­quecimento, vem ao sentimento da verdade”. Aceito a objecção, não sem sublinhar que esse esqueci­mento é, tal como a dissimula­ção enquanto ficção, uma descoberta filosófica deste texto: eu não posso falar, em meu nome digamos, tendo consciência do que digo e de que sou eu que o digo, senão por ter esquecido absolutamen­te as primeiras expe­riências de fala e de designação, fossem de ‘folhas’, fossem outras quaisquer, e assim identificar o não-idênti­co nos usos de cada dia. Após o re­curso a Changeux, não se trata já duma ‘objecção’ mas dum argu­mento positivo que descobre aquilo em que ninguém atentara antes de Nietzsche (imagino eu).
11. Vamos então ao exemplo do camelo e do mamífero. “Se alguém esconde uma coisa atrás dum arbusto, e procura nesse lu­gar preciso e a encontra, não há nada a louvar nessa investigação e nessa descoberta: todavia é o que se passa com a investigação e a descoberta da ‘verdade’ no domínio da razão. Quando eu dou a definição do mamífero e declaro, depois de ter examinado um camelo, ‘eis um mamífero’, é certo que uma verdade veio à luz do dia, mas ela é de valor limitado, quero dizer que ela é inteiramen­te antropomórfica e não contém um só ponto que seja ‘verdadeiro em si’, real e válido universalmente, abstraindo do homem”. Trata-se dum argumento típico da querela nominalista contra os ‘realistas’ medievais, aonde se davam definições e se observavam as coisas para ver se correspondiam ou não a essas definições. É possível que este argumento tenha valido entre 1350 (morte de Occam) e digamos 1950 a 70, época de ouro da biologia molecu­lar. A descoberta laboratorial do ADN e da sua mesmidade em to­das as células dum dado organismo e a quase mesmidade em to­dos os indivíduos da espécie dos camelos, e um pouco menos quase em todos os mamíferos, etc., esta descoberta deita por terra este argumento, permitindo falar de verdade científica. Quer dizer que o programa genético é a essência duma espécie? Não creio que se possa dizer assim, já que creio que a biologia moderna funciona fora da oposição essência / acidentes do aristotelismo (e não digo de Aristóteles, porque me palpita que uma operação de transplante da biologia contemporânea nos textos da Physica de Aristóteles poderia produzir algumas surpresas na nossa compre­ensão dos conceitos dela). Mas as técnicas de engenharia genética mostram bem como o discurso destas ciências chegou a uma ‘verdade’ dos seres vivos, a algo de “‘verdadeiro em si’, real e vá­lido universalmente, abstraindo do homem”. Segunda etapa do retorno a Parménides. Não terá o texto já respondido a ela com os argumentos kantianos sobre espaço, tempo e números do final do seu primeiro capítulo? Conceda-se, apenas para que se possa aceitar o desafio mais difícil de todos, o da verdade filosófica do tal edifício de conceitos erigido sobre a água corrente.

Paradoxo da verdade filosófica
12. Observe-se que nesta destruição do argumento nomina­lista pelo ADN há algo de paradoxal em termos de verdade filo­sófica, já que a biologia dá razão aos ‘realistas’ mais ou menos vencidos há seis séculos e tal, mas só lha pode dar por eles terem sido derrotados: isto é, foi necessária a verdade nomi­nalista e a posterior representação mental para que a ciência mo­derna e portanto também a biologia molecular fossem possíveis. O que significa que a questão duma ‘verdade filosófica’ não é a ser colo­cada apenas em termos de tal ou tal discurso, paradigma ou ar­gumento filosófico, serem verdadeiros, mas dos próprios ‘erros históricos’ da filosofia greco-europeia, como a contradição entre ‘realismo’ e ‘nominalismo’, fazerem parte dessa ‘verdade’.
13. Seja uma mão-cheia de conceitos filosóficos tirados do próprio texto de Nietzsche: teoria do conhecimento, sistema, natu­reza, excepção, intelecto, filósofo, pensamento, existência, ilusão, valor, meio de conservação, forma, sensação, excitação, sentido moral, consciência, pulsão de verdade, designação, leis da verda­de, palavras, correcto, convenção, substituições, inversões, socie­dade, conhecimento puro, expressão adequada, substância, coisa em si, essência. Não são nomes de coisas que se usem, fa­zem parte dos usos escolares de textos que, durante muitos dos séculos da longa história do Ocidente, ficaram às margens das so­ciedades e ainda hoje, se se der este texto de Nietzsche a ler a muitos licen­ciados de faculdades científicas e técnicas, a maior parte prova­velmente não o conseguirá ler até ao fim. Qualquer es­tudante de filosofia tem experiência de ver os seus amigos de outras áreas se admirarem com termos que se lhes tornaram mais ou menos familiares, e até por vezes de se rirem da inutilidade óbvia de andar a perder tempo com tais abstracções que quase ninguém compreende. Para não falar dos docentes de filosofia, especializa­dos uns em fenomenologia ou heideggerianismo, ou­tros em idea­lismo alemão e outros ainda em filosofia analítica, sem perce­be­rem grande coisa do que tanto interessa aos seus vi­zinhos.
14. O espanto de Nietzsche sobre o edifício dos conceitos erigido sobre água corrente diz respeito, não a cada um destes conceitos, mas ao tecido deles em argumentação, como ele próprio está escrevendo, que compara aos “fios de aranha, assaz fina para ser transportada com a onda, assaz sólida para não ser dispersa ao sopro de qualquer vento”. E no contexto desta admiração vá­rias vezes se lhes atribui a frieza das matemáticas, a rigidez, a co­notação da morte (conceito em osso, columbarium romano[8]): o extremo oposto das metáforas artísticas que o texto preza, que já Aristóteles elogiara por não se aprenderem com ninguém, serem devidas à boa natureza dos poetas. Não será justamente a longa transmissão destes conceitos ao longo dos tempos, de mestres para discípulos, além da morte se mantendo tão severas e rigoro­sas (“rigor mortis”, diz-se em medicina legal da primeira rigidez cadavérica), que justifica tais qualificações tradicionais (que irri­tam sobremaneira os matemáticos)? Ou seja: que ‘material’ é este, com que os homens da verdade, sábios e filósofos, edificam esta­velmente sem alicerces? Ou: como é que é possível lermos hoje um texto como este, passados 130 anos da sua escrita, inacabado, lê-lo nas suas fulgurâncias e fragilidades?

Onde é que há conceitos filosóficos?
15. A resposta passa por outra questão: aonde, fora dos es­pecialistas de filosofia, estão estes conceitos? Em que outros usos, que nem os do dia a dia acima evocados nem os dos poucos espe­cialistas que somos nós? A resposta é um tanto sociológica: ide ver os manuais das ciências e das técnicas, ide ver os códigos dos juristas, ide ler os textos das administrações dos grandes bancos e empresas, universidades, conselhos de ministros, as crónicas dos jornais e revistas. Encontrar-se-á nesses textos, além da lista de oposições de que partimos (1.2), grande quan­tidade de conceitos que só lá estão por terem sido coisa da discus­são filosófica, grega, medieval, europeia: se se os tirarem, prevejo que os textos de tão esburacados se tornem ilegíveis. Em termos de Kuhn: os paradig­mas de todas as grandes instituições do Ocidente, desde as ciên­cias até às religiosas e porventura às desportivas, são exemplos desses edi­fícios conceptuais erigidos sobre água corrente. Não são ‘argamassa’: é porque os usos profissionais dos que em tais insti­tuições trabalham, como nós também fazemos aqui nesta escola, foram previamente instituidos por esses concei­tos nos liceus e universidades onde, como se diz, ‘se formaram’. Terceira etapa do retorno a Parménides: tais edifícios conceptuais só funcionam porque dizem o ‘ser’ das instituições da civilização moderna, estas só são edifícios por via desses textos que pensam dizem os seus usos especializados, em que juristas, técnicos, cien­tistas, adminis­tradores e ‘tutti quanti’ fazem filosofia como Mr. Jourdain fazia prosa.
16. E que ‘verdade’ terá um tal edifício, que, se justamente supõe uma longa história de definições e argumentos, funciona hoje para quem ignora umas e outros (todos nós para a maioria dos casos) ? Uma ‘verdade pragmática’, digamos, já que necessária à reprodução dessas instituições sociais. Não ‘absoluta’, é claro, já que estranha a priori a Chineses e outras gentes de civilizações não ocidentais. Relativa, pois, isto é, relativa à nossa história académica, à verdade inaugurada por Parménides, como se tentou dizer.
17. A tal indagação sociológica aos textos dessa instituição, a esburacá-los de todos os termos que tenham sido objecto de de­finição e discussão filosófica no passado é coisa que pode ser feita, haverá porventura metodologias que eu não conheço que o per­mitam, e os computadores facilitariam. Ao Nietzsche deste Sobre a verdade e a mentira no sentido extra-moral, que espanto não pro­vocaria uma tal verificação da verda­de da sua espantosa e es­pantada afirmação: “há que admirar o homem por ser um pu­jante génio da arquitectura que conseguiu erigir sobre a água cor­rente um edi­fício conceptual indefinida­mente complica­do”. Trata­va-se dum elo­gio da filosofia. O elogio de quem tenta e falha o primeiro passo para encetar a sua desconstrução.




[1] Comunicação ao Colóquio realizado na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 10 e 11 de Maio de 2001 Nietzsche para o século XXI, retomando vinte anos depois a leitura que fizera deste texto de Nietzsche em Leituras de Aristóteles e de Nietzsche. A Poética. Sobre a Verdade e a Mentira, Gulbenkian, 1994.
[2] O livro do Filósofo, Rés, Porto.
[3] As palavras e as coisas, ed. 70.
[4] “As categorias de Aristóteles são ao mesmo tempo de língua e de pensamento: de língua enquanto elas são determinadas como resposta à questão de saber como o ser se diz (legetai); mas também como se diz o ser, como é dito o que é, enquanto é tal como ele é: questão de pensamento, o pensamento, a palavra ‘pensamento’ que Ben­veniste utiliza como se a sua significação e a sua história fossem óbvias, não tendo em todo o caso nunca querido dizer nada fora da sua relação ao ser, à verdade do ser tal como ele é e enquanto é (dito). O ‘pensamento’ – o que vive sob esse nome no Ocidente – nunca poude surgir ou anunciar-se senão a partir duma certa configuração de noein, le­gein, einai e dessa estranha mesmidade de noein e de einai de que fala o poema de Parmé­nides” (J. Derrida, “Le supplément de copule, La philosophie devant la linguistique”, Marges, de la Philosophie, Minuit, 1972, p. 218 (há trad. port. na Rés), debate célebre com o grande linguista E. Benveniste, que, em “Catégories de pensée et catégories de langue” (Problèmes de Linguistique générale), se propôs ler a lista das dez ca­tegorias de Aristóteles como um bom “documento” para demons­trar que essas céle­bres categorias de pensamento não são senão ca­tegorias da língua grega.
[5] Gerber, A linguagem como arte, e Volkmann, Exposição sistemática da retórica dos Gregos e dos Romanos (citados por Lacoue-Labarthe, “Le dé­tour (Nietzsche et la Rhétorique)”, Poétique, nº 5, Rhétorique et Philoso­phie, 1971, pp. 53-76).
[6] Porque uma camada do seu texto padece, aliás confessadamente, da representação clássica.
[7] Ou grafados como séries de sinapses, a crer em E. Kandel (ver texto neste blogue).
[8] Nichos onde se depositavam as urnas funerárias.

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