quinta-feira, 31 de outubro de 2013

A questão dos exemplos nesta Fenomenologia




1. No lançamento do Heidegger, pensador da Terra na Fábrica do Braço de Prata a 30 de março de 2012, a convite e boa hospitalidade do Nuno Nabais e com a generosa e cúmplice participação da Irene Borges Duarte, pôs-se a questão dos exemplos em Filosofia, se são necessários ou porventura estorvos que distraem do que verdadeiramente conta. Claro que se trata de uma questão a que diferentes leitores darão respostas diversas, mas no caso do Heidegger a questão para mim prende-se com a relação do pensamento dele com a fenomenologia. Disse eu que a maior dificuldade desse pensamento é o grau de abstracção dos seus argumentos, quase como se de matemática se tratasse, e da raridade dos seus exemplos, sendo que estes me fazem sempre falta para compreender o que está em questão. E acrescentei no final que, tendo vindo tardiamente à filosofia, nunca estive nela com os dois pés, como aqueles que a recebem como primeira formação universitária, mas sempre com um pé dentro e outro fora. Ora, eu creio que no caso do Heidegger os exemplos, os meus em todo o caso, têm um estatuto filosófico próprio, se se tem em conta o seu motivo da diferença ontológica, entre o Ser (e mais tarde o Ereignis, Acontecimento) e os entes, aquele a nível ontológico, estes a nível ôntico. Aquele não é ente (nomeadamente não é Deus), é ‘nada’ que dá os entes e dissimula a doação, faz vir à presença cada ente e o deixa vir em sua autonomia temporal, retirando a ‘força’ da doação, da heteronomia doada.
2. Ora, que Heidegger tenha sempre procurado compreender o nível do Ser, muito lentamente progredindo até ao Ereignis de 1962 (conferência Tempo e Ser), é obviamente a sua grande força de pensador e é provável que, se tivesse dado mais atenção aos exemplos, se arriscasse a ser compreendido ‘por baixo’, se dizer se pode, como se queixou, por exemplo, do ‘humanismo’ de Sartre na Carta sobre o Humanismo a J. Beaufret. Só que esses entes correspondem ao nível da descrição fenomenológica pelo qual ele entrou, pela mão de Husserl e, se rompeu com o mestre, foi para indagar justamente, não dos entes, das coisas, mas do que as dá, do Ser pois. É então possível, e para mim necessário, a título de fecundar outros tipos de discurso com o pensamento heideggeriano, nomeadamente os científicos, é justo que se tente compreender como as categorias de doação com retiro ou dissimulação dessa doação, podem ajudar a pensar os discursos da biologia (exemplo que procurei ilustrar no colóquio de Fenomenologia de Évora, em Outubro de 2011, nomeadamente em debate com A. Damásio) ou da psicanálise, da antropologia, das ciências da linguagem. O nascimento parece-me claramente um bom exemplo, o melhor porventura, da sua busca pelo que faz vir à presença e deixa vir, em contraponto com o papel da morte para o Dasein em Ser e Tempo. E a aprendizagem, conascimento diz-se em francês o conhecimento, já que é ela que institui o sujeito enquanto sujeito falante e actuante na sua tribo. Questão crucial da Fenomenologia, que daria uma boa razão a Heidegger para ter largado Husserl: cada uso que se aprende, seja prático seja uma formação teórica, altera o sujeito, e é por isso que as noções sociológicas de ‘acção’ (Touraine) e ‘prática’ (Althusser) não são boas. Ora bem, a questão que eu ponho, para defender ainda mais a minha herética maneira de fazer exemplos fenomenológicos, é que presumo que o próprio Heidegger não terá dado por eles, por algumas consequências do seu pensamento, não terá dado pelos retiros a nível ôntico, que são o que estrutura a reformulação que tentei da fenomenologia. Não terá entendido que o ser no mundo altera o sujeito, que os usos sociais da tribo do Dasein o instituem na sua maior intimidade e singularidade, de que a voz é um bom exemplo, já que ela identifica a tribo pelo sotaque mas também a sua singularidade (‘sou eu’, ao telefone). Já agora, sem ele também dizer que se trata deste exemplo, a maneira como Derrida em De la Grammatologie, faz trabalhar a diferença de Saussure entre os significantes e os sons pela diferença fenomenológica de Husserl, reduzindo a empiricidade da voz singular (“le son entendu”) para reter apenas as suas diferenças como significante fenomenal, estrutural (“l’être entendu du son”), a diferença que se repete, não é senão uma análise fenomenológica da aprendizagem da língua, de como num bebé se institui uma voz inédita (e o mesmo se pode dizer da sua leitura do Esboço de Psicologia clínica de Freud). Também aqui exemplos de tipo fenomenológico podem permitir ajudar a pensar melhor as descobertas científicas mais importantes; aliás, sem passar por Derrida, seria mais difícil, talvez impossível usar Heidegger nessa tentativa de compreender o que chamei O jogo das Ciências, compreender aquilo que se passa fora do laboratório, no que chamei ‘cena’ (do tráfego, da gravitação, da alimentação, da habitação, da inscrição): considerando o gesto de tirar um fenómeno dessa cena para o examinar no laboratório em condições de delimitação da multiplicidade aleatória de causalidades e depois o gesto de o restituir, fazendo a teoria, não apenas do que se descobriu no laboratório (é o que os cientistas fazem em geral) mas também do que se passa na tal cena em que as regras científicas jogam em função do aleatório da cena.
3. Isto serve também para elucidar os que ficaram perplexos com a minha tentativa, dizendo que nem Heidegger nem Derrida eram fenomenólogos. Sem dúvida, mas passaram por lá e não perderam nunca a ligação a essa passagem obrigatória. Por exemplo, a dupla dimensão da différance, o seu enigma (no texto com esse título, nas Marges), corresponde justamente ao que é o mesmo (uma língua, uma espécie biológica, uma tribo) que releva das ciências respectivas e ao excesso fenomenológico que é o singular de cada voz falante ou de cada indivíduo.
4. Esta aplicação da différance permite tematizar esta relação entre o mesmo e o seu excesso (singular) em termos da minha ousadia em Física, a de propor que cada grave é constituído por forças (nucleares, electromagnéticas, gravitacionais) que contêm excessos energéticos (respectivamente: protões e neutrões, electrões, graves sujeitos ao princípio da inércia), segundo a célebre fórmula de Einstein, E = m.c2. Alguém que fala dirigindo-se a outro, usa uma certa energia de relação, com muitas cambiantes possíveis entre afecto e rivalidade, e a língua tem regras (ou leis, também se diz) que são justamente o que retém essa energia sonora (ou gráfica) de forma, digamos, civilizada. Quando a língua não consegue mais essa retenção, tanto pode dar choro como riso ou gritos de fúria, e por aí fora. Os códigos linguísticos, Barthes assinalava-o em S/Z, são leis, isto é, são forças que retêm energias singulares: assim as oposições filosóficas do logocentrismo de que Derrida nos ensinou a desconstrução, são forças políticas nos seus efeitos sociais, o logos preponderante era o do pai e patrão, preponderante sobre escravos, mulher e filhos, mas sujeito na cidade a pais-patrões de casas mais ricas. O direito, por sua vez, com suas leis e códigos, também implica teoricamente uma mesmidade (todos os cidadãos são iguais perante a lei) que deve reter e conter as energias dos cidadãos nas suas competições. Igualmente, julgo que se pode pensar que os cancros são excessos energéticos que se rebelam às forças do ADN que contêm os metabolismos celulares nas suas funções especializadas no respectivo órgão e na respectiva dimensão, a obesidade sendo um outro tipo de fenómeno de excesso que as forças ou códigos do ADN não contêm suficientemente. Ora bem, são estas forças que são susceptíveis de ciência, não os singulares que se movem nas respectivas cenas, ecológicas ou sociais, consoante o tráfego (e que já Aristóteles dizia que não são susceptíveis de ‘ciência’). Isto é, estes fenómenos não são nunca de ‘singulares’ sozinhos, de ‘coisas em si’, mas sempre de ‘seres no mundo’ com outros. 

A sexualidade na evolução e na história, uma hipótese fenomenológica






Adaptado dum texto mais largo, foi necessário omitir o que constitui a  argumentação essencial dele, o que poderá implicar menos facilidade de leitura. Espero todavia que seja acessível a sua linha de fundo, o fio da sexualidade como mecanismo excessivo e a necessidade do seu controle através da evolução biológica e da história dos humanos. Se me atrevo a meter-me nestes domínios reservados dos biólogos, com o risco de eles se escandalizarem ou, pelo contrário, de se rirem de mim, é por os ter lido e aprendido tanto, tão interessantes coisas, e de constatar ao mesmo tempo que esta literatura de biologia molecular não passa do nível da bioquímica, não chega a questões que são vitais para a reflexão fenomenológica.

Sexualidade e biologia
1. Para tentar compreender a evolução, tomemos a nossa espécie mamífera, composta de quatro sistemas: a) o da circulação do sangue que vai a todas as células do organismo fornecer moléculas de nutrientes e de oxigénio para o seu metabolismo incessante (é o único que funciona no feto); b) o sistema digestivo e respiratório que carrega o sangue com essas moléculas (começa com o parto e completa o sistema alimentar); c) o sistema de mobilidade, órgãos perceptivos, cérebro neuronal e músculos de locomoção, que busca na cena ecológica o que comer e beber para essa digestão, além de procurar escapar a ser presa de outros (desde o desmame e das primeiras autonomias, de andar, mexer e falar, da sua estruturação pela aprendizagem dos usos tribais); d) o sistema sexual, que busca a reprodução da espécie e não do indivíduo como os outros três, mas que nos mamíferos se veio inscrever parcialmente na anatomia feminina de forma inovadora (assinala-se com a puberdade). O belo livro de J.-D. Vincent, A biologia das paixões, coloca o motivo de estado central flutuante como o que faz a unidade do mundo hormonal, quer no que diz respeito ao sistema alimentar, glândulas de secreção interna do aparelho digestivo que largam hormonas na circulação do sangue, capazes de criarem unidades de acção fisiológica com receptores em células determinadas, quer no que diz respeito ao sistema da mobilidade, o hipotálamo igualmente secretando hormonas no cérebro, incluindo iguais às que o sistema alimentar produz (só as esteroides, produzidas neste, conseguem intervir no cérebro, atravessando a membrana que o isola). Região do paleo-cortex[1], o chamado cérebro dos peixes ou répteis, o hipotálamo, “cérebro do meio interior” (Vincent), tem papel central na homeostasia do sangue (temperatura, pressão arterial e de osmose, teores de oxigénio, açúcares, lípidos, prótidos, pH...) por via da secreção de hormonas no sangue, enquanto que o neo-cortex das aves e mamíferos  é o que tem papel central na aprendizagem de estratégias na cena ecológica; é a relação entre estas duas regiões de um cérebro duplo que se jogará entre as duas funções biológicas, da alimentação e da mobilidade: por um lado, o jogo de excitação hormonal que se relaciona estritamente com a lógica homeostática do sangue, equilíbrio a restituir, para cima ou para baixo, sempre que exceda os parâmetros limites, a fome por exemplo, e assim joga como uma espécie de motor retirado estritamente da cena ecológica, cego para ela, e, por outro lado, a lógica desta cena onde há que buscar presas para alimentação e segurança para não se ser caçado.
2. Se forem acidentes graves da cena ecológica a afectarem o sistema da mobilidade e a precipitarem modificações evolutivas do organismo, a questão é a de saber o nível em que essas modificações se podem fazer, não parecendo óbvio que seja directamente o do metabolismo celular (como é postulado pela teoria das mutações, que lhes acrescenta o ‘acaso’) mas o nível intermediário, do que se pode chamar círculo homeostático (entre teores máximos e mínimos), que diz respeito ao conjunto do organismo e se enlaça com as células especializadas. Com efeito, assim como uma célula que se reproduz não o faz apenas ao nível dos genes e dos cromossomas mas sim no seu conjunto com o citoplasma e respectivo metabolismo em funcionamento, também a transformação dum organismo que venha a ter incidências na espécie implica, de cada vez, substituir um círculo homeostático por um outro um pouquinho diferente que continuará a andar bem, sem que haja nenhuma razão a priori para excluir o jogo das oscilações entre os três sistemas enlaçados uns nos outros. Para ter lugar, essa substituição deverá contar, parece em boa lógica, com cumplicidades adentro do círculo homeostático, que todavia não façam parte do seu funcionamento normal nem das suas oscilações. Ora, acontece que as hormonas esteróides da sexualidade têm essa estranha lógica, de estarem dentro do sangue e de ao mesmo tempo pulsionarem para fora do animal, para o outro do outro sexo, de terem origem no metabolismo (de certas glândulas) e serem despejadas no “meio interior” (Cl. Bernard) em que a homeostasia é regulada, escapando no entanto à economia da nutrição, já que a sexualidade é a inversão desta, uma contra-economia, um desperdício desatinado. Com efeito, ao invés de todas as outras células especializadas, estas glândulas não estão ao serviço da alimentação de todas elas, formam outro ‘sistema’ ao serviço da espécie, em excesso em relação à sua lei fundamental de auto-reprodução. Se se compara com o que se passa em espécies assexuadas – os vermes que, a certa dimensão, se segmentam em dois mais pequenos, por exemplo, ou a hidra de água doce ou da esponja que fazem sair de si por gemulação uma hidrazinha ou uma esponjinha –, pode-se dizer que a reprodução sexual das espécies animais implicou a invenção da morte (dos cadáveres), da bipolaridade fêmea / macho, da filiação e da fraternidade e portanto do parentesco, das condições da aprendizagem[2]. Foi uma espécie de segunda invenção da vida, de que o resultado foi a imensa diversidade das espécies: com efeito, a divergência parcial dos genomas fêmea e macho e o terem que se fundir para que haja reprodução implica de si mesmo um mecanismo de variação que dificilmente poderia deixar de ter tido incidências na evolução. Ora, esta invenção contraria a economia das autonomias animais em que, ao invés das plantas e suas proliferações de ramos e folhas, cada órgão tem lugar e dimensão determinados num corpo bem cheio (tão estrita é esta dimensionação do corpo animal que obriga cérebro, pulmões e intestinos a circunvoluções de vária ordem para aumentarem a sua superfície de trabalho nesse volume restringido à partida). Ao contrário, anti-económica, a sexualidade multiplica e esbanja gâmetas e forças atractivas para que uma percentagem mínima se cruzem por acaso e proliferem.
3. A boca sendo órgão essencial da mobilidade para a captura de presas, ela é também a primeira etapa da transformação destas em moléculas que, após estômago e intestino delgado, passam ao sangue com destino a cada uma das células. É onde encontrou as hormonas segregadas pelas glândulas em adequação às variações dos teores desse sangue alimentador, após ter sido motor dos comportamentos de saciar fome e sede. Estas variações podem relevar, obviamente, do aleatório do que se come e bebe, das infecções possíveis, de outros ‘acontecimentos’ derivados da situação do animal no mundo a que as anatomias sabem melhor ou pior responder, como cães e gatos se sabem tratar. Mas o que define esta anatomia de nutrição de todas as células do organismo, incluindo as do sistema de mobilidade, é que, fazendo mediação com o sistema da mobilidade para cima e com o das células para baixo, é aonde se conjugam, já não as necessidades orgânicas de se estar no mundo da selva e das suas astúcias e aprendizagens, mas as necessidades de transformar os pedaços de presa comidos em moléculas de carbono mais simplificadas que sejam susceptíveis de serem aceites pelas membranas celulares como boas para a síntese de proteínas. Ora, aqui encontramos outro ponto em que o determinismo genético é fortemente ilógico no seu recurso ao acaso das mutações do ADN. Em cada célula, este tem que estar adequado, não apenas às moléculas que lhe chegam no sangue, em que um certo aleatório jogará porventura embora muito controlado pelo trabalho do aparelho digestivo, mas também às proteínas que são estruturais dessa célula segundo os seus tecidos e órgãos. Ora, estes são aqueles de que a mesma anatomia nos seus dois sistemas necessita (do adiposo ao neuronal haverá nos vertebrados duas centenas de tecidos em células especializadas); reencontramos aqui o que se chamou acima círculo homeostático, que na fenomenologia de Hegel se resolveria por ‘dialéctica entre sujeito e objecto’[3], mas que aqui, fora da ontoteologia, precisará deste motivo de círculo, bem como da sua mediação como regendo e regido por acontecimentos. Isto é, assim como ao nível do sistema de mobilidade na cena ecológica, as anatomias têm que ser adequadas à caça e defesa de se ser caçado e as suas variações evolutivas resultarem de catástrofes ecológicas, também a ligação deste sistema com o da nutrição deverá ter incidências sobre este, na chegada do sangue às células. Sendo provável, crê o leigo, que estas variações sejam muito mais lentas do que as do sistema de mobilidade, só no entanto esta característica de mediação (do “estado central flutuante”, Vincent) permitirá entender esta fascinante modificação evolutiva pela qual as células se foram especializando nos órgãos necessários à sua própria nutrição. Milhões de anos é a medida cronológica desta espantosa história.
4. Espantosa e fascinante: porque, descendo agora ao nível das células, os genes são submetidos à lei da conservação da sua própria célula! Os geneticistas que fizeram da mutação casual dos genes a chave da evolução sabiam-no à sua maneira, foram eles que me ensinaram: só que o problema aqui é filosófico, de lógica, a que a biologia não foge. É aonde a lição do primado dos ribossomas de Barbieri[4] sobre os ‘desoxiribo’ é fundamental, embora sem dúvida se vá aqui mais longe do que o grande biólogo italiano. Quando Randel[5] coloca uma proteína a ir dentro do núcleo ‘expressar’ o gene que, transcrito en ARNm, permitirá criar uma nova sinapse, e portanto sublinha claramente como um ‘acontecimento’ vindo de fora, uma aprendizagem, vai ter efeitos a nível genético, e quando Vincent e outros ensinam que esteroides podem ir juntar-se a genes para criar efeitos no metabolismo, parece ao leigo ser possível pensar que, em circunstâncias de crise catastrófica (à maneira de Stephen Jay Gould talvez), os efeitos dos três sistemas enlaçados entre si reactivem esse primado barbieriano dos ribossomas e dêem origem às mutações genéticas dos biologistas. Sendo pois certo que tem que haver mutações genéticas devido ao conservadorismo estrito do ADN, elas fazem parte dum conjunto de acontecimentos de fora para dentro que agem segundo os laços entre os dois sistemas: sem determinismos nem causas / efeitos. E o que são ‘acontecimentos’? na cena ecológica são conjugações de mais do que um vivo que produzem efeitos em cada uma deles: por definição escapam a qualquer definição susceptível de os determinar, é aliás por isso que as ciências precisam de laboratórios! E no entanto, quando os cientistas se tornam aplicadores de ciência, os biólogos se tornam médicos, têm constantemente necessidade de ‘análises’ de todos os tipos para encontrarem índices de como funciona tal ou tal homeostasia sanguínea ou tal ou tal fígado, consequências imprevisíveis de ‘acontecimentos’, não apenas de alimentação, por vezes também de ‘stress’ de habitação. Sem que o médico possa dizer exaustivamente como tal e tal acontecimento provocou este ou aquele sintoma, ele sabe em todo o caso da relação entre uns e outros.
5. Voltemos às hormonas esteróides que têm estranhas propriedades: sucede segundo J.-D. Vincent que as hormonas sexuais têm um papel decisivo na embriologia do cérebro, revelando uma possibilidade de hormonas machas virarem fêmeas e vice-versa, e ainda a possibilidade em certas circunstâncias de virem tomar lugar no genoma para a síntese de enzimas (Vincent, p. 294); têm também um papel fundamental nas metamorfoses dos invertebrados e dos vertebrados. O que estas propriedades bizarras sugerem é que, sempre que as modificações da cena ecológica fizerem pressão para modificações dos organismos (sabe-se desde as ilhas Galápagos de Darwin que as mesmas espécies evoluem diferentemente em cenas ecológicas diferentes[6]), haverá capacidade de a sua circulação do sangue receber essas hormonas e estas virem a ter efeitos inclusive de síntese de novas moléculas, além de que também os mecanismos de expressão genética e os próprios ribossomas podem ter incidências dessas. Hipótese de leigo, ligando leituras diferentes e pensando pela sua própria cabeça: o desperdício sexual seria parcialmente recuperado.
6. Por outro lado, e aqui com mais liberdade, já que não intervindo nos mecanismos biológicos, pode-se propor um outro argumento para esta interferência do sistema da sexualidade sobre os outros dois, a partir do facto de a ultrapassagem do curiosíssimo fenómeno das metamorfoses ter tido como termo – tanto nos invertebrados, os artrópodos, como nos vertebrados, as aves e os mamíferos – a formação de espécies endogâmicas de maneira bem mais estrita do que nas espécies menos evoluídas, como se a reprodução sexual, tendo entrado muito cedo na evolução, tivesse acabado por fazer parte de certa maneira da sua dinâmica, para além dos esforços permanentes de auto-reprodução de cada indivíduo a favor de e contra a lei da selva. O que parece significar que, quanto mais vai crescendo a variabilidade das regulações na cena ecológica, tanto mais o genoma ganha em poder enclausurante no que tem a ver com os acasalamentos reprodutivos. O que será um bom exemplo de efeitos que se compensam, um que alarga a diversidade e o outro que, indissociável e inconciliável com o primeiro, a aperta e controla. A este argumento junta-se um outro muito forte. No que é difícil de evitar chamar o cume evolutivo dos vertebrados, a evolução deu origem a espécies classificadas como ‘mamíferas’, em que o sistema de reprodução das espécies, até aí feito através de ovos postos no exterior, veio alojar-se no ventre e nas mamas das fêmeas : esta revolução da anatomia e da fisiologia do sistema alimentar feminino pelo sistema que lhe é alheio, o da reprodução sexual, não teria tido nada a ver com as hormonas esteróides, pergunta o leigo ?
7. Tratar-se-ia duma espécie de sublimação hormonal das esteróides, oh Freud! capazes de irem além das suas funções específicas no sistema da sexualidade – um sistema além do alimentar e do da mobilidade, estes economicamente ao serviço da auto-reprodução, aquele, excessivo, ao serviço da espécie. Como se, nos intervalos dos cios, lhes sobrasse tempo para outras funções do sistema alimentar, relativas às oscilações das ligações dos dois sistemas, como se, antes da psicanálise (e porque seria esta só humana?), já houvesse ‘sublimações’, isto é, deslocamentos das funções estritamente de reprodução sexual para outras de nutrição (nos humanos  também para a mobilidade), provavelmente desde a embriologia, onde parece que as esteróides têm funções interessantes de guias do crescimento do embrião.

Uma questão inusitada
8. Como pensar a incidência das mudanças das nossas sociedades nas mutações genéticas? Por exemplo, a formação da classe média durante o século XX nas sociedades desenvolvidas do Ocidente implicou que, pela primeira vez na história dos humanos, muitos milhões de pessoas recentemente escolarizadas passassem a ter usos que até aí eram fortemente circunscritos: quer a sedentariedade em sentido estrito, estar as longas horas de trabalho sentado a uma secretária em actividades monótonas mas sem grande esforço físico, quer as novas condições de alimentação e de higiene; isto contribuiu para terem inscritas nelas um novo tipo de fisionomia facilmente distinguível, quer do das elegantes burguesias instaladas, quer do das populações rurais e operárias quase analfabetas, com usos de trabalho fisicamente muito duro e prolongado que lhes marcavam de rudeza os modos, rugosas as peles, os rostos, rudeza essa que se diria transmitida também com os genes. Acontece que uma parte importante das novas classes médias era composta de filhos deste povo rude que tiveram a oportunidade de frequentarem a escola por alguns anos. Não sei se houve já inquéritos genéticos sobre esta questão: entre a gente de rostos e modos rudes e os seus filhos ou netos houve mutações genéticas equivalentes, isto é, que permitam correlacionar diferenças genéticas (relativas à pele mais cuidada, às diferenças alimentares, aos músculos dos braços e da posição sedentária prolongada, que sei eu) com diferenças de usos urbanos? Se for o caso, será claro que essas mutações equivalentes entre si relevam das alterações muito substanciais dos usos sociais e então haverá que considerar que o tempo de uma ou duas gerações dessa diferenciação é demasiado curto para resultar de mutações casuais que se repetiriam milhões de vezes, implicaria que se argumentasse com oscilações entre os vários sistemas para se entender o fenómeno. Mas tal argumentação será extremamente complicada.

Sexualidade e história
9. Ora bem, este excesso sexual que produz gâmetas e pulsões para o outro do outro sexo muito mais do que o que será de facto eficaz em termos reprodutivos, esta maneira de a biologia jogar com a estatística e de reintroduzir o acaso que a invenção da célula substituíra pela regulação genética do aleatório[7], este excesso – que na generalidade das espécies mamíferas é regulado pela periodicidade do cio das fêmeas, o qual desapareceu nas dos primatas – manifestou-se como fortemente problemático nas sociedades humanas, como todos fazemos experiência, o que desde os alvores implicou necessidade de disciplinas da parte dos nossos antepassados, a começar pelo interdito do incesto. Se é certo que a fome e a sede obrigam as unidades sociais a diligências quotidianas e à invenção de artes de caça, pesca e colheita, se doença e morte dos parentes e amigos provocam dores grandes, a sexualidade dos humanos parece ser a sua única função biológica que não existe para tolher faltas do organismo mas que é dela mesma afirmativa, excessiva além da própria reprodução, já que sem sintomas dos poucos dias férteis das mulheres em cada mês e não desaparecendo durante a gravidez nem o aleitamento: excessiva como erotismo. Foi este excesso que colocou questões às sociedades humanas que sempre tiveram que lhe pôr limites. É certo que a razão de ser desse excesso é a fecundidade que a sexualidade assegura, mas que assegura de forma não segura. A fecundidade é esta coisa habitual, mas extraordinária quando se pensa um pouco, de um par de humanos (de animais, invertebrados também) poder gerar outros humanos muito pequenos, necessitando de serem alimentados e protegidos durante vários anos enquanto crescem, de se poder multiplicar esse par várias vezes e de serem todos relativamente diversos uns dos outros, como se vai verificando à medida que crescem.
10. Ora, fecundidade e crescimento do que nasce pequeno são o que sempre provocou o espanto dos humanos, dos shamans, homens dos rituais sagrados, são a phusis, o poder dos vivos se moverem por si mesmos, kath’autôn, segundo Aristóteles. Em termos heideggerianos, a phusis (dos que crescem, desabrocham), a natureza (dos que nascem), é a doadora por excelência da fecundidade e do crescimento que esconde o seu poder para que eles sejam possíveis em sua autonomia. Essa doação revela-se fenomenologicamente no par que concebe e sobretudo na mulher que, grávida durante nove meses, ‘dá’ à luz o bebé e o aleita ainda uns meses largos. Ora, é destes seres preciosos porque fecundos que os vários clãs fazem doação uns aos outros, ‘levas tu a minha filha que outro me deu a dele’: cada unidade social, em suas linhagens patrilineares, tem no coração da sua fecundidade uma mulher vinda de outra linhagem, o que é patente que acrescenta diversidade, novo patamar no que a sexualidade promove desde a sua invenção até à das mamíferas. O laço social das sociedades humanas desde sempre que se faz desta troca exogâmica das doadoras fecundas: é a lição de Lévi-Strauss, o laço social tribal primeiro é o da ‘troca de mulheres’, correlativa do interdito do incesto. O que significa que essa doação das raparigas a outro clã, lei de exogamia, implica que ela seja preservada no seu clã de origem, que os machos deste (irmãos, pai e tios, primos paralelos) sejam interditos face a ela do excesso pulsional que faz parte intrínseca da sexualidade; ora, este excesso sendo quotidiano, também tem que o ser o do interdito, com o que tal implica de disciplina, que é necessária para a boa efectivação dos usos que têm a ver com a nutrição e outros aspectos da habitação. Não custa admitir que haja aqui algo como um deslocamento das energias pulsionais, para brincadeiras de criança primeiro, para aprender e ganhar habilidades espontâneas depois com que se fará a melhor figura possível diante dos outros, no seu clã mas também aos olhos dos outros: a figura freudiana da sublimação jogar-se-ia aqui também. A sua dimensão social manifestar-se-ia nas festas como excesso público de todos, quase como, em geral privado, o erotismo o é entre dois.
11. Além do interdito do incesto, será praticamente universal a condenação do adultério, nomeadamente onde não se admita o divórcio. Na Roma do século III da nossa era, cultos de origem persa (maniqueus) aliaram-se ao menosprezo platónico pelos corpos e seus prazeres, tendo contaminado fortemente a moral da religião cristã que veio a  ser imposta um século depois. As classes altas das diversas civilizações elaboraram etiquetas de disciplinação das pulsões sexuais e agressivas, como conta Norberto Elias no seu O processo civilizacional, no que à Cristandade medieval e Europa diz respeito (ele refere também a civilização chinesa): a história da criação do ‘super-ego’ moderno. Tratava-se dos cortesãos que passavam temporadas nas cortes reais e o interdito do incesto não jogava entre casais nobres diferentes. Esse ‘super-ego’ veio a revelar-se fecundo no advento do feminismo, quando as mulheres invadiram os empregos aonde até aí só havia homens e se tornou necessário regular as relações entre ambos os sexos.
12. Esta história moderna veio a encontrar condições de ligeireza de civilização após horrores sem medida, trinta anos de abundância e segurança social, assim como música à discrição, cinema e televisão, condições essas que favoreceram uma espécie de desenlace no ano mítico de 1968, desde o Japão à Califórnia passando pela França em greve geral de um mês, que rebentou com as clausuras familiares e deu origem a um regime de relações mais livres entre rapazes e raparigas, entre mulheres e homens, como também entre parceiros do mesmo sexo. Após episódios históricos de libertinagem aqui e ali, este desenlace pode aparecer então aqui neste contexto que prolonga a evolução dos vivos na história dos humanos – como se se tratasse de teleologia! – como remate desta tão longa história que vem desde a invenção da sexualidade, esta conseguindo enfim fazer vingar como erotismo esta ultrapassagem da sua função meramente reprodutiva. Não sem sombras, hélas!, já que parece ser o que, risco e insegurança, suscita insurreições de puritanismos furiosos e amedrontados nas zonas ortodoxas das civilizações monoteístas, desde os Tea Party aos pilotos que destruíram as torres de Nova Iorque: virá daqui algo a desmentir a teleologia?



[1] Paleo’ quer dizer ‘antigo’, ‘neo’ é ‘novo’, de desenvolvimento posterior na evolução a partir do primitivo.
[2] Não haverá razão para espantos quando se encontrarem estes motivos no discurso psicanalítico sobre a sexualidade humana enquanto sempre-já submetida à lei.
[3] ‘Sujeito’ exterior ao ‘objecto’ e por isso ‘contraditórios’. As duas leis dum duplo laço são inconciliáveis mas não são exteriores, já que indissociáveis: nenhuma delas existe previamente sem a outra. O ‘acontecimento’ não é contra o princípio da não contradição, é-lhe prévio, este princípio lógico aplica-se apenas – ontoteologicamente – a resultantes de ‘acontecimentos’.
[4] Teoria semântica da evolução, Fragmentos, 1985.
[5] Eric Kandel (prémio Nobel de medicina 2000), À la recherche de la mémoire. Une nouvelle théorie de l'esprit, *2006.
[6] O que parece excluir em boa lógica que o mecanismo da sua evolução consista apenas em mutações genéticas cegas.
[7] Exemplifique-se a diferença entre aleatório e acaso: que eu choque com um carro surgido repentinamente à minha esquerda, é aleatório, faz parte do possível na circulação automóvel cuja lógica do tráfego o deve impedir; que o condutor desse carro seja um colega de liceu que nunca mais tinha visto é um acaso que não tem nada a ver com a lógica da cena do tráfego.

terça-feira, 22 de outubro de 2013

O que é a Filosofia?


O que é para ti a Filosofia? Perguntou-me o Luís Tavares, meu colega de blogue.

1. A Filosofia ?  é um nível precioso, embora bastante abstracto, para compreender as coisas em geral do universo, do universo terrestre (os astros e as galáxias são vistos da terra), nós humanos incluídos privilegiadamente, claro. Mas não tanto eu, FB. Isto é, não tenho uma busca predominantemente existencial, ao contrário de boa parte da gente nova que tive como alunos. Creio que a razão disto é eu ter chegado à filosofia muito tarde, pelos meus 23 anos e num contexto pessoal em que o cristianismo era predominante: ele foi-se esvaziando, laicizando se posso dizer assim, mas as questões existenciais não vieram nunca à baila da minha curiosidade. O meu ponto de partida foi mais de ordem histórica e civilizacional, implicando as ciências e o cristianismo. E como cheguei tarde e com um grande interesse, uma grande paixão espiritual não filosófica, aconteceu que as minhas primeiras questões foram teológicas (sobre o que sabia Jesus, humano e divino: a tese teológica que me ensinaram era inadmissível) e que para lhes responder li o primeiro dos evangelhos em Paris, no momento mais forte do estruturalismo.
2. Ora o estruturalismo foi a irrupção das ciências humanas – a linguística, a antropologia, a história, o marxismo, a psicanálise – na filosofia, o que implicou em mim o deslocamento progressivo da teologia para a linguística e semiótica, articulada esta com a antropologia e a história (como já fora a leitura do evangelho de Marcos), deslocamento que foi acelerado pela entrada na faculdade de Letras que me obrigou a largar a teologia pela filosofia da linguagem. A tese de doutoramento que aí fiz foi sobre a linguística saussuriana, já sob a égide de Derrida, o qual entrou em filosofia com uma questão inédita, a da escrita, para a qual, além de Husserl e Heidegger, convocou Saussure, Lévi-Strauss, Freud, e muita literatura da mais difícil. Esta, eu não a consegui, não tive nunca quem me iniciasse, rapaz novo, à estética, paradoxo do meu nome, assim como a ética nunca me interessou por razões de ter sido ‘existencial’ a minha entrada no mundo intelectual, me ter ficado ‘resolvida’ na sua problemática com o chamado ‘discurso da montanha’ (Mateus, cap. 5-7), o que chamei uma ética da fecundidade além do que podemos, uma ética de santos e de grandes apaixonados. Mas tanto o peso da teologia na primeiro período e o da história e da semiótica, como a influência da minha passagem pelo estruturalismo e a continuação pela desconstrução derridiana me deram como imagem de marca o coxear de quem tem sempre um pé na filosofia e outro fora. Foi na filosofia com ciências que este percurso desembocou.
3. A filosofia que faço é pois derivada de Heidegger e sobretudo de Derrida: um dos seus pontos chave é a consideração, em vez das ideias, das palavras no seu peso histórico, não se pensa senão por elas e pela tradição anterior ao pensador, interpelado pelas questões da actualidade. Foi por isso que me apareceu que o truque da filosofia, o que a distingue da restante literatura, foi a invenção da definição por Sócrates, Platão e Aristóteles, que inauguraram assim um texto gnosiológico aliado à geometria, destacado quer das narrativas quer dos discursos em torno do ‘eu / tu’ e do ‘aqui / agora’ (Benveniste), o que vim a caracterizar como cena da inscrição, com uma história ocidental relativamente autónoma em relação às cenas da alimentação (a evolução dos vivos) e da habitação (a história das sociedades humanas), com uma história – a história da escola –  que teve dois momentos decisivos, o encontro desta com a teologia cristã (Orígenes de Alexandria, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino) e com o laboratório científico no século XVII. O primeiro teve como consequência que a filosofia, juntamente com a geometria e o direito romano, esteve no berço da Europa antes desta existir, o que é algo de rigorosamente inédito em toda a história das sociedades humanas, tanto quanto posso saber, o que deu à filosofia um lugar de instauradora da civilização moderna, alterado pelo segundo encontro, que teve como consequência a universalidade histórica da técnica, que domina esta mesma modernidade.
4. Esta dominação veio a dar um acabamento à história da filosofia greco-europeia, ao seu dualismo constitutivo – dentro / fora, alma / corpo, sujeito / objecto – pelo ser no mundo heideggeriano e sua viragem para o Ereignis, obrigando-a a sair da sua ‘interioridade’ gnosiológica resultante da definição para abraçar com Derrida a imensidade da sua ‘exterioridade’ civilizacional. Procurar compreender as coisas do universo terrestre, a matéria e a energia, os vivos, as sociedades, os textos, a gente, é a isto que eu brinco.

quarta-feira, 16 de outubro de 2013

Hannah Arendt e o mal, radical e banal


         1. Graças sejam dadas a Margarethe von Trotta por este tão claro filme, tão filosófico e dramático, capaz de nos fazer compreender uma posição filosófica célebre e discutida em livros e artigos e que o contexto do filme ajuda a situar maravilhosamente bem. A expressão “mal radical” é kantiana e pode-se dizer que se trata duma laicização do motivo cristão de pecado original, já que Kant entende com esse motivo colocar uma questão tão antiga como a ética, a duma certa tendência que se poderá dizer inata para fazer coisas que se sabem ser más, o mal na raiz dos nossos desejos (célebre texto da carta do apóstolo Paulo aos Romanos, 7. 15-24). Freud, que não usa a expressão de Kant tanto quanto eu sei, foi no entanto acusado pelos marxistas pré-althusserianos de ter reintroduzido com o seu conceito de inconsciente o ‘pecado original’ cristão. Isto para sublinhar que se trata duma concepção relativa aos indivíduos (que Freud aliás alarga às famílias) e não para a Shoah, o que para Kant seria inconcebível. O que Hannah Arendt enfrenta é pois outra coisa, como ela diz na aula: o nazismo revelou uma possibilidade de mal radical inimaginável; não se trata apenas do nível individual mas social, em que milhares de alemães foram agentes activos dum mal além de todo o mal. Radical então significa ‘monstruoso’ e recusa toda e qualquer banalidade.
2. Não tendo ela podido assistir ao julgamento dos principais nazis em Nuremberga em 1945-6 (estava havia pouco tempo nos Estados Unidos, a adaptar-se, e era pobre para se deslocar à Europa, como o era para ter filhos, explica no filme que quando deixou de o ser já era velha demais), o julgamento de Eichmann oferecia-lhe a oportunidade de ver com os seus olhos, de saber como era o ‘mal radical’ num indivíduo que fora alto responsável nazi na eliminação dos judeus. Ora, Eichmann foi uma decepção para Hannah Arendt. O que é que ela podia esperar? Ele não era nenhum Hitler nem nenhum Goering, um nazi puro e duro, capaz de discutir, senão filosoficamente pelo menos politica e ideologicamente segundo as suas convicções, as razões da “solução final”; ou alguém que se mantivesse num silêncio desdenhoso diante dos que não seriam dignos de lhe ouvir uma qualquer justificação. Ou então, um homem arrependido de ter participado num genocídio, que pedisse desculpas diante dos descendentes das suas vítimas. Esperava em suma algo que estivesse à altura, se dizer se pode, do horror dos campos de concentração e das câmaras de gaseamento, e não um homem incapaz de se aguentar com as suas decisões históricas para o mal.
3. O que ela ouve, o que nós ouvimos no filme que transcreve uma parte das emissões televisivas do julgamento em que ele responde à acusação, foi Eichmann a explicar que só cumpriu ordens, exibindo um burocrata que discute tal e tal documento, que tem uma tarefa a cumprir religiosamente e não sabe, não quer saber do que sabe que se passa a seguir a tê-la cumprido, tarefa essa de encaminhar para os campos de extermínio que pertencia a outro departamento. O que ele diz, os seus esgares e tiques, mostram claramente a “banalidade” daquele homem que, explica H. Arendt, não sabe distinguir o bem e o mal, para quem as ordens do Führer são a lei, um homem que não pensa, conclui ela. Como quem não sabe, ainda em 1961, o que fez. Este Eichmann não é ‘digno’ do extermínio de 6 milhões de judeus (e de outros), a banalidade do mal é isso, ao maior dos horrores bastar – além de Hitler sem dúvida – uma quantidade de burocratas que nem sequer correspondem à noção kantiana de ‘mal radical’, já que mais não faziam do que ‘cumprir o seu dever’ de burocratas[1].
4. Ou seja, a filósofa espanta-se, e foi esse espanto que não foi entendido, espanta-se a partir duma elevada noção de pensamento, e é o lugar que tem Heidegger no filme, quando numa aula a que assiste a jovem Hannah ensina que pensamento não é conhecimento (que são as ciências que no-lo dão), não tem incidências práticas e úteis, é dum nível acima portanto da política também, pensar é o que caracteriza um humano em sua dignidade. A “banalidade do mal” só se entende desde essa altura do pensamento que Heidegger no filme patrocina de forma exemplar, me parece, M. von Trotta (ou quem lhe fez o guião) esteve claramente à altura filosófica de Arendt. E é o que não entendem os seus leitores que lêem o que ela escreve como a defesa de Eichmann! Ou terá entendido Hans Jonas, o filósofo que mais me incomodou no filme, ao cortar relações com “a aluna predilecta de Heidegger” (por ciúmes? diz uma personagem), que terá entendido e rejeitado o que haverá de ‘corte’ entre esse elevado pensamento e as coisas triviais e banais, posição esta que me parece merecer debate. Esta posição de privilégio do pensamento cabe bem com a ‘desculpa’ que Heidegger dá a Hannah pela sua colaboração com o nazismo: não tinha jeito para a política, enganou-se, foi uma ‘estupidez’, disse noutro contexto. E porquê não te explicas publicamente? exige-lhe ela, pergunta a que ele não responde. Nem no filme nem fora dele, foi-lhe fortemente censurado o seu silêncio sobre o holocausto. A meu ver, a explicação tem a ver com a sua concepção elevada de pensamento: trata-se dum silêncio que desdenha quem precisasse dessa explicação. Por um lado, para quem só soube do nazismo depois do holocausto, a ideia de Heidegger ter sido nazi mistura-se confusamente com a de ser ele também um ‘criminoso’, que tivesse que ‘pedir desculpa’ pelo Holocausto[2]. Dito isto, que poderia ele dizer que não seja o que qualquer um dirá sobre o horror? Banalidades, se se me desculpa, ‘descer’ das alturas do pensamento ao discurso moralista óbvio, discutir de antemão com gente como Farias e os Faye, pai e filho, com todos aqueles que se arrogam ingenuamente criticar Heidegger. Desdém não democrata, é claro, elitista. O problema é outro: como é que o pensador de Ser e Tempo foi capaz de pedir meças políticas ao autor de Mein Kampf?[3] Tenha-o lido ou não, foi aí que ele ‘desceu’, é a sua grande nódoa, mais uma da Filosofia, se for verdade que ele foi o mais importante pensador do século XX, que fez a viragem da ontoteologia da definição vinda de Platão e do cristianismo, da oposição sujeito / objecto europeia, para o ser no mundo. Arrependido de ter ‘descido’ uma vez, não terá querido repetir.
5. Há outra questão de que não sei minimamente para falar, a da colaboração com os nazis dos dirigentes judeus nas selecções de judeus, questão dura mas que houve sobreviventes que puseram no tribunal e de que se diz, logo que Hannah chega a Israel, que é essa a posição de muitos jovens judeus dos anos 60, críticos de não ter havido mais ‘resistência’ dos judeus. A resposta dela foi que essa ausência de resistência foi um dos efeitos nefastos do nazismo sobre as sociedades alemã e europeias, no caso sobre os próprios judeus.
6. Pode-se, indo além do filme, perguntar pelo ‘mal radical’ em Hitler, já que ele esteve obviamente na fonte do Holocausto. Porque é que ele foi anti-semita? O anti-semitismo estava razoavelmente propagado desde o século XIX e uma das razões ‘objectivas’ que o alimentava era sem dúvida a importância de judeus na alta finança (e indústria alemã), segundo uma tradição que vinha desde a Idade Média. O livro do Levítico (cap 25) da Bíblia hebraica proibia os judeus de emprestarem com juro aos seus compatriotas e essa proibição na Idade Média era respeitada por judeus e cristãos, sendo estes em muito maior número e não podendo por isso ter um papel de banqueiro como os judeus, já que, minoritários, estes podiam emprestar com juros aos cristãos. Por outro lado, a derrota da primeira grande guerra e a crise do marco dos anos 20 criaram um ressentimento tremendo entre os alemães; os judeus tiveram um papel de bode expiatório na ideologia nazi: as línguas semitas (hebreu e árabe) não pertencem às línguas indo-europeias que foram estudadas durante o século XIX e prestavam-se assim ao mito dos arianos puros de raça, descendentes sem mistura desses povos indo-europeus. ‘Ricos e de outra raça’ esses judeus, facilmente o ressentimento anti-semita alastrou a todos os outros, ‘culpados’ de corromperem a raça alemã! O livro do australiano K. Comish, The Jew of Linz (1998), que sublinhou que Hitler e o filósofo de origem judaica Wittgenstein andaram na mesma escola em 2003-4 (ambos nasceram em 1989, Heidegger também, e Salazar e F. Pessoa), sugere que foi a manifesta superioridade de Ludwig, o futuro filósofo, que desencadeou no adolescente Adolfo uma inveja, um ódio visceral que o anti-semitismo reinante terá alargado em seguida. A tese foi muito contestada, nem sequer é certo que tivessem estado na mesma turma que seria a ocasião da diferença de inteligências se manifestar em detrimento do futuro führer, mas ela é sugestiva em termos de ‘radicalidade’ do mal no sentido kantiano, isto é, de haver algo de visceral no anti-semitismo de Hitler, algo do ‘monstruoso’ que Arendt esperava encontrar em Eichmann e este não aparentou ter.
7. No final do filme, Hannah Arendt diz que ninguém criticou o que foi o seu erro: não há mal radical, só o bem pode ser profundo e radical, o que, se entendo bem, corresponde às concepções tradicionais desde Platão de que não se escolhe ‘o’ mal, mas sim um mal que aparece como bem sob qualquer aspecto individual, como o suicídio será um caso óbvio. Quanto ao bem profundo e radical, seria provavelmente colocá-lo, por analogia com a elevação heideggeriana do pensamento, ao nível da santidade, de que a tradição atribuiu a ‘raiz’ a uma fonte divina (como ainda Levinas e a sua concepção de rasto que tira a ‘raiz’ do humano: o mal seria o fechamento ao outro, o ateísmo em Totalidade e infinito).
8. Como pensar hoje esta noção de ‘radicalidade’ do mal, ter ele raízes nas nossas tendências mais íntimas, inderacináveis? Hoje, isto é, tendo em atenção o que se aprendeu com as ciências biológicas, contando com o conhecimento científico que Heidegger desdenhou, tendo eu pretendido (reclamando-me dele também!) uma aliança filosófica delas com para a própria filosofia, numa nova versão de fenomenologia (filosofia com ciências). Uma das coisas que a evolução nos ensina é a não opor mal e bem[4]. Todos os vivos são mortais, todos buscam essencialmente adiar a morte alimentando-se de moléculas à base de carbono que os animais só encontram noutros vivos a comer: o bem do leão é o mal da gazela e vice-versa, a fuga desta é a fome daquele. Para isso, a evolução foi criando órgãos de ataque e manhas de astúcia, músculos fortes, capacidades de luta e hormonas da fome que excitam justamente à predação, inclusive nos humanos. Mas estes desenvolveram muitos usos e costumes diversos, quer técnicos quer de regras de viver em grupo e em tribo social. Ora, do que a neurologia nos ensina, depreende-se que as pulsões hormonais, de ordem química, e portanto inatas – de raiz, como se procura para o tal ‘mal radical’ – têm que ser disciplinadas pelos usos e costumes de forma a impedir uma anarquia caótica, sem que se possa, creio, discernir entre o químico inato e o social racional adquirido: o que há de mais pessoal em cada humano releva da maneira como nele ambos se misturam. O Kant do “mal radical” também advogou uma “insociabilidade natural” de cada humano, aparentemente contra esta afirmação de que é o social, usos e costumes, que instituem o humano individual; mas ela presta-se a perceber que este predomínio da lei social a disciplinar a autonomia individual só pode fazer-se, sob pena de submissão total das gentes, se esta autonomia, esta lei individual, protestar contra a lei social: rebeldia ou insociabilidade. Como se faz ela? Enigma em cada um. Mas passa por certo pelas ‘vontades’ que se vão gerando em cada criança e adolescente segundo o paradigma da tribo, e que fomentam a aprendizagem como algo que permitirá ‘ser grande’, isto é, como os outros grandes. Mas por vezes contra estes grandes, rebeldia contra aquele(s) de quem se aprende. E onde pode despontar a muito frequente ‘vontade’, não apenas de ser grande, mas de se ser  ‘admirado’ ou invejado enquanto grande por outros, pelos outros. Em francês, esta ‘vontade’ em antropologia diz-se ‘envie’ e ser-se ‘invejado’ diz-se ‘envié’, o que permite melhor do que em português entender esta subtil mudança das ‘vontades’ para querer ser o melhor, o primeiro em..., ter melhores notas, desporto, ser a mais bonita, sucessos vários, ganhar dinheiro, e por aí fora, donde vêm as rivalidades, as competições, as guerras de que as histórias se fazem. Será a raiz do mal, que a química ajuda poderosamente? H. Arendt, na sua aula, contesta justamente a tese tradicional do egoísmo como raiz do mal. Não é isto que aqui se propõe, já que o ‘ego’ é gerado indescernivelmente pelo social no químico: é a sociedade que propõe o leque de lugares possíveis de preencher assim como as regras, os costumes, para lhes aceder. O ‘mal moral’ será o atropelo dessas regras para se ter o tal melhor lugar social, o mais invejável. Este mal é pois banal e radical (tem raízes), mas raramente é monstruoso, felizmente.
9. A dificuldade filosófica da questão vem, creio, da tradição ocidental cujas duas fontes, a filosofia grega e a tradição bíblica, opõem Bem e Mal. Em contraponto claro com a mitologia grega e os comportamentos bons e maus dos deuses e também com as tragédias pré-socráticas que tentam pensar os destinos humanos entre castigos divinos, arbitrários ou não, e excessos (hubris) humanos, a Forma ideal do Bem na República dará lugar no Timeu ao Demiurgo que forma o mundo até ao nível das almas humanas, enquanto se discute se haverá uma Forma ideal do mal, do lixo, da morte, e se contesta que haja ‘mistura’ entre as Formas ideais, contaminações portanto do Bem pelo Mal. Na tradição bíblica, o Deus antigo que abençoa e amaldiçoa cederá claramente na tradição apocalíptica vinda de Zaratustra à oposição entre Deus e o Diabo, sendo que desde o Génesis 2-3 que a oposição entre Bem e Mal é marcada, a própria morte sendo castigo dos humanos após uma criação boa. É provável que as posições variáveis da tradição filosófica tenham conhecido algumas excepções (Spinoza, Schopenhauer, Nietzsche), mas o que dela veio como dominância até nós, o que Heidegger chamou ontoteologia, implica uma exterioridade do Mal ao Bem que a respectiva personificação mitológica exibe com clareza. Mas se fosse assim, seria sempre fácil discerni-los, qualquer questão de ordem ética seria tão banal, tão simples de ser encarada como é a da monstruosidade hitleriana para nós que viemos depois, ao contrário do que parece ter sido o caso de Eichmann, uma espécie de cúmulo de banalidade.



[1] No Público de 9/10/2013, Irene Pimentel cita C. Browning, [Homens ordinários. O Batalhão 101 da Policia de Reserva e a Solução Final na Polónia (1992), Web] que confirmou esta tese da banalidade do mal estudando o comportamento dum batalhão de reservas responsável por massacres na Polónia. Apenas 10% se escusaram, e eram mal vistos pelos outros. Tratava-se, numa resenha na Web, de trabalhadores de Hamburgo de meia idade.
[2] A arguta Clara Ferreira Alves, que muito admiro, não escapa a este preconceito vulgar contra Heidegger no texto da Revista do Expresso de 12/10/2013.
[3] Deixou de pensar durante o nazismo, diz argutamente Clara Ferreira Alves.
[4] Ver Porque é que há mal?, neste blogue

quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Da Physica de Aristóteles à Fenomenologia reformulada




1. “É preciso estilhaçar o todo”, proclamou Nietzsche contra Hegel. Está feito, é essa a nossa situação, condenados a não saber senão estilhaços. Sem que pareça haver quem se escandalize com esta derrota do pensamento, todos se resignam talvez sem darem por isso, compreendendo confusamente que este estilhaçar propício a todos os relativismos é efeito do desenvolvimento das ciências que se multiplicaram em especialidades incontáveis, incontroláveis, desafio a qualquer hipótese de saber unificado. Diante desta avalanche de saberes que os filósofos doravante ignoram, as filosofias recebidas, em torno do sujeito e do objecto, não tinham possibilidade de se defenderem – que o ‘sujeito’ é filho da ‘alma’, oposto ao corpo, à linguagem, ao trabalho, à sociedade, a todos estes ‘objectos’ que as ciências têm dado a conhecer –, perdida a capacidade sistemática de que Hegel terá sido o último artesão. Ora, foi o ‘todo’ dele, tentativa de domesticar o relativismo ao abarcar a história, reino da relatividade por excelência, da indeterminação, que foi visto por muitos, à tort ou à raison, como a fonte dos totalitarismos tremendos da primeira metade do século XX, que foram levados assim à recusa da própria empresa sistemática e da sua determinação.
2. Como responder a esta dupla desconfiança? À falta de tradição filosófica satisfatória sobre as novas questões científicas, só se pode obviar recorrendo ao saber oferecido pelas próprias ciências, pelas biologias, linguísticas e semióticas, antropologias, economias, ciências sociais, psicologias com neurologias, recorrer assim ao próprio material estilhaçado, às grandes descobertas das ciências do século XX, o que pode ser feito desde que se recorde que todas estas disciplinas tiveram origem na filosofia (além da geometria e da astronomia) e que só se puderam autonomizar das questões metafísicas com o corte de Kant entre filosofias e ciências: pode-se recuperar essa dimensão filosófica delas após que esse corte tenha conseguido os seus propósitos e manifeste agora, como seu efeito crepuscular, este escândalo dos saberes estilhaçados. E como o fazer? Só com recurso à filosofia que no século XX se deu como questão justamente essa articulação das “ciências europeias” em crise (Husserl) através dos seus discípulos dissidentes, Heidegger e Derrida, que puseram a ‘diferença’ antes da ‘substância’ e assim tornaram possível pensar uma sistematização que tenha a indeterminação no seu âmago. É que no fundo as ciências é de ‘estilhaços’ que se ocupam, é delas que nos dão a conhecer as artimanhas.
3. Aconteceu assim, à lenta experiência da escrita buscando, que o motivo derridiano de duplo laço se revelou adequado para explicar fenomenologicamente – aliança de filosofia com ciências – o movimento de tudo o que se mova, seja máquina, ser vivo ou estrutura social. Espanto dos espantos: encontrava-se uma réplica moderna inesperada para o que tinha sido a antiga Physica de Aristóteles, uma filosofia do ser em movimento (donde derivou uma metaphysica do ser enquanto ser) tornada caduca pelo progresso das ciências europeias, que nasceram dela e com ela romperam após uma longevidade de cerca de vinte séculos. É certo que ‘movimento’ e equivalentes noutras línguas modernas não incluem facilmente o sentido de ‘crescimento’ (duma planta ou animal) ou de ‘mudança’ (de qualidade: uma matéria que muda de forma, uma trans-forma-ção), como fazia o kinêsis grego, não impede que parece não ter havido, fora da Physica de Aristóteles (nem provavelmente no aristotelismo medieval, metafísico mais do que ‘físico’), nenhuma filosofia que tenha tomado a questão do movimento dos vivos como sua questão central, na modernidade que a partir de Descartes e Galileu reduziu o movimento ao deslocamento na extensão, no espaço (de tal maneira que uma boa Enciclopédia como a francesa Universalis não tem entrada para ‘mouvement’, remetendo para a cinemática, isto é, para a Física europeia).
4. Mas a análise desses movimentos chocou com uma dificuldade, senão uma aporia. A invenção da vida, da célula, foi a dum ‘mecanismo’, uma assemblagem de moléculas reunidas a partir dum mar de moléculas equivalentes, uma nova unidade capaz de se reproduzir adentro desse mar de moléculas, que a podem alimentar mas também destruir. O que significa que a célula é uma estrutura de auto-reprodução, uma estrutura conservadora, o que não anuncia nenhuma evolução, bem pelo contrário: a invenção da célula é a negação da futura evolução. Igualmente, uma espécie evoluída endogâmica é a negação da evolução que houve até ela ainda que os seus indivíduos sejam razoavelmente diferentes uns dos outros; a endogamia defende-a da introdução de genes que alterem a estrutura da espécie, igualmente conservadora: que os diversos órgãos e tecidos especializados funcionem como devem para garantir a auto-reprodução de cada indivíduo e não se metam a inovar, a cancerigenar. Também as sociedades tribais que Lévi-Strauss estudou são, disse ele, “frias” de resistirem a qualquer mudança, “contra o Estado”, acrescentou P. Clastres, o que não anuncia nenhuma história de sociedades complexas; e também nestas, casas, famílias ou instituições são estruturas de auto-reprodução quotidiana que exigem que os seus membros se conformem aos usos estabelecidos como rotina disciplinada e não se ponham a inventar comportamentos surrealistas, cada um seguindo a sua própria cabeça. Como é que conservação estrutural e inovação são logicamente compatíveis, é aqui a questão, que pedirá uma nova aliança entre filosofia e ciências (Prigogine), uma fenomenologia em que às ciências actuais se restitua a dimensão filosófica que tinham antes do corte kantiano entre ambas. Para entender essa aliança, haverá que abrir brevemente o espaço da desconstrução da ontoteologia (Heidegger) e respectivo logocentrismo (Derrida) da tradição filosófica e científica ocidental, iniciada pela fabulosa invenção da definição por Sócrates, Platão e Aristóteles, como se fez o percurso histórico entre duas filosofias do movimento.

Breve história da diferença, de Platão a Derrida




1. Tentarei apresentar esta questão em algumas das suas ocorrências históricas num breve resumo, a partir do que se pode chamar a diferença ontoteológica. Diria que esta consiste na diferença e oposição entre o inteligível e o sensível, nomeadamente na alma oposta ao corpo e ao mundo no platonismo, e na correlação directa entre ambos com exclusão do contexto, do mundo. Supondo ainda a diferença entre o céu e a terra que só o heliocentrismo de Copérnico e Galileu veio dissipar, ela resulta inevitavelmente da definição, só terminando com o ser no mundo. De Heraclito não sei, mas a oposição entre o Ser e o não ser de Parménides, entre o que dura eternamente e o corruptível terrestre, é sem dúvida parte da herança de Platão que ‘aplica’, digamos, a definição ao celeste, discernindo as suas famosas Formas ideais (Eidê) como eternas[1], por um lado, e indo, por outro, tomar a outras tradições o motivo de alma imortal, que as contemplou antes de tomar corpo. Então a diferença e oposição entre o inteligível e o sensível está colocada e estará para durar: a alma é simples, nem gerada nem mortal, em oposição ao corpo composto, entre geração e corrupção[2]. E a linguagem – dispensada do conhecimento das coisas no Crátilo, inadequada enquanto aprendida no Ménon que apela à reminiscência para o saber espontâneo do jovem escravo – também está deste lado do terrestre.
2. A herança de Parménides será colocada em causa no célebre parricídio do Sofista, na sequência do Teeteto que põe pela primeira vez na cronologia dos diálogos platónicos a questão do conhecimento das coisas terrestres, impulsionado sem dúvida pelas discussões que o seu jovem aluno Aristóteles (alusão a elas em Parménides 135c) coloca e abrindo-lhe o caminho, no Filebo e no Timeu, para a sua Physica. Aristóteles critica a separação céu / terra entre as Formas ideais e as coisas correspondentes: a essência e a substância coincidem na mesma ousia (segunda e primeira respectivamente nas Categorias), por um lado, por outro a alma não é mais inata nem imortal, é a forma da matéria, matéria esta que individualiza o ente (hilemorfismo) a quem sucedem ‘acidentes’ (particulares). Mas esta crítica da separação não atinge a oposição entre o inteligível a que tem acesso a alma humana (simples) e o sensível do seu corpo (composto), sendo por este que começa todo o conhecimento no De anima, dos órgãos dos sentidos ao intelecto pela imaginação e donde está ausente a linguagem, o logos tão presente noutros textos; é que ela impede a oposição inteligível / sensível (dirá Derrida), a trave mestra da diferença ontoteológica.
3. A filosofia grega oscilando entre Platão e Aristóteles foi transmitida à Europa por via da teologia cristã, que é textualmente filosófica (textos gnosiológicos) e ganhou a sua estrutura a partir de Orígenes de Alexandria (185-253): o platonismo, então vigente entre os intelectuais por razões sobremaneira espirituais, apoderou-se dos textos bíblicos de origem hebraica. Aporia deste encontro entre gnosiológicos de essências intemporais e narrativos e históricos com fundo mitológico reformulado, entre a ‘catolicidade’, o universal acima das línguas e usos antropológicos particulares, e o carácter histórico da ‘salvação’ (vida e morte de Jesus), aporia que se inscreve assim na oposição inteligível / sensível, o que implicará na teologia de Orígenes (e até ao Aquino) a redução do sensível (e do narrativo corporal, conservado nas leituras litúrgicas) pelo inteligível da alma, só este sendo digno do Deus celeste grego, inteiramente separado do terrestre dos humanos que não conhece (Platão, Plotino), mas que veio a misturar-se com o Deus bíblico, interveniente na história e conhecedor do íntimo de cada humano, do singular de cada coisa, de cada passarinho. Na diferença céu / terra partilhada por Gregos e Judeus, repete-se a relação vertical de Platão entre as Formas ideais e as coisas suas cópias, mas agora como relação entre um tal Criador omnisciente e omnipotente e cada uma das suas criaturas: ontoteologia no seu maior esplendor, ‘esmagadora’ num Agostinho de Hipona (354-420). A substituição (de grande parte) de Platão por Aristóteles na obra de Tomás de Aquino (1225-1274) reformula a relação criatural, elevando a ‘matéria’ (hulê) como “criação boa” (Génesis, cap. 1) e valorizando em consequência a temporalidade e a autonomia relativa das criaturas na sua causalidade horizontal (Physica de Aristóteles), o Criador respeitando as suas essências ao criar-lhes a existência, respeitando mormente a capacidade de conhecimento e de decisão moral livre dos humanos (o que tornará possível quer o laboratório científico do século XVII quer a filosofia da história do XIX). Guilherme de Occam (1285-1349), que se opõe ao poder temporal da Igreja, critica a essencialidade ‘in re’ aristotélica e contrapõe-lhe o carácter singular de cada coisa, de cada humano (com um argumento ontoteológico: Deus conhece os singulares sem intermédio das essências) e justapõe o conhecimento por nomes (mentais) às coisas singulares, reabilitando implicitamente o papel do narrativo. Assinale-se de passagem que os Gregos clássicos não traduzem, donde, como Heidegger explicou, que Platão e Aristóteles não pensam ‘por conceitos’, no logos a língua grega não se dissociando do pensamento; só com a tradução em outras línguas, latim e não só, é que será introduzido o motivo do signo, com o lekton incorporal (o significado das palavras), além do nome (honoma) e da coisa (pragma). O latim medieval funcionando como língua universitária, apenas com Occam se fará a repartição conceptual que transformará a diferença ontoteológica. Ele abre assim o futuro debate entre racionalistas e empiristas do sec. XVII, os primeiros acentuando platonicamente o papel de Deus no conhecimento (ideias inatas, ocasionalismo, monadologia), os segundos tendendo a despedi-lo, propondo que ao conhecimento só se chega partindo aristotelicamente dos sentidos, como Kant consumará, após a reviravolta que Hume opera: da alma que se posiciona verticalmente diante de Deus ao sujeito voltado para o mundo, seguindo a abertura da nova física de Newton.
4. Se for verdade que foi Descartes (1596-1650) quem ‘inventou’ a ideia moderna, fê-lo mantendo a substancialidade do inteligível (res cogitans) e a do sensível (res extensa), o pensamento que ‘eu sou’, por um lado, e, por outro, o corpo, lugar, mundo, que posso ‘fingir’ que não tenho. Vamos então à reviravolta que Kant (1724-1804) opera da diferença ontoteológica, numa filosofia que depende de Newton (cuja mecânica rebate o cepticismo de Hume) e alia a racionalidade (de inspiração platónica, geométrica) dos sujeitos com a empiricidade (de inspiração aristotélica, laboratorial) dos fenómenos, mas estes já sob elaboração daqueles pelas famosas sínteses a priori (primeiro das formas de espaço e de tempo, dos conceitos em seguida). Deixando de lado o papel da linguagem (os signos são assinalados de raspão por trás dos conceitos do entendimento), ele pode ultrapassar, ao nível da razão (pura) do conhecimento, a oposição entre sujeito e objecto (sem dúvida pela implicitação do laboratorial newtoniano na matriz da crítica), mas é para a deslocar para a relação entre o fenómeno conhecido (que terá que passar pela definição no entendimento) e o númeno desconhecido, como quem mantém a diferença entre a essência aristotélica e as coisas concretas em seus acidentes não susceptíveis de ‘ciência’. Portanto, a história não sendo ainda científica, a aporia ontoteológica mantém-se na ‘pureza’ da razão que define: sem mãos (a razão prática e a estética são outras regiões) nem corpo nem mundo nem linguagem, onde a descendência cartesiana se diz (a alma em Kant, embora sem papel no conhecimento especulativo, também permanece ‘simples’). Mas é nele que melhor se percebe o papel da representação – da sensação à ideia – do objecto no sujeito (sem linguagem tão pouco, como se assinalou na ‘psicologia’ aristotélica): é de jogos de transformação das representações que se ocupam as sínteses a priori.
5. Deslocada para o fenómeno / númeno a diferença-oposição inteligível / sensível do sujeito / objecto (aquele sendo tal que não há já objecto senão antecipado por ele, nem este sem sensações daquele antecipadamente sintetizadas), encontra-se uma nova forma da diferença ontoteológica que estará na raiz das futuras fenomenologias, a diferença fenomenológica entre o aparecer em que consiste o ‘fenómeno’ dado à intuição da sensibilidade e a coisa empírica aparecendo, que existe mas não é conhecida, que seria o ‘númeno’. Do ponto de vista da sua posterioridade filosófica, estará aqui uma novidade decisiva do kantismo, onde se alojou a diferença ontoteológica entre o inteligível e o sensível, correlativa aliás da que há entre o entendimento e a sensibilidade (o conhecimento tem que passar pelo sensível particular de tal coisa, como em Aristóteles pelos acidentes, como condição de aceder ao inteligível, conceito ou essência). Em toda esta história, que continuará, é sempre o corpo ‘composto’ que ‘objecta’ ao sujeito ou à consciência, herdeiros da ‘simples’ alma. Donde vem então esta nova formulação da diferença ontoteológica entre o inteligível e o sensível que reata com Aristóteles? Sem ter a certeza de que se possa argumentar com os textos, creio que ela vem (sem se explicitar muito provavelmente, senão há muito que isso seria sabido) da física de Newton, de quem Kant depende estruturalmente, como foi demonstrado por Jules Vuillemin. Quero crer, como tentei dizer noutros textos, que o laboratório da física newtoniana corresponde à maneira como uma equação física, pertencendo a uma teoria do conhecimento de “filosofia natural”, tem que separar do contexto da cena da chamada realidade (como em filosofia faz a definição) um dado ‘fenómeno’ como teste experimental e objecção, experiência esta que consiste na realização dum dado movimento entre duas posições no espaço e no tempo e nas respectivas medições técnicas, estas vindo preencher as variáveis dessa equação, resolvendo-a. Só que esta experimentação laboratorial não está agora ao serviço de definições de essências (que continuam a ser necessárias para o labor da teoria) mas sim do estabelecimento de correlações mensuráveis entre algumas das dimensões físicas dos fenómenos assim trazidos a essa experimentação. O facto de essas medidas postularem o consenso científico de unidades convencionadas (hoje aceites universalmente), como espectacularmente faltava na primeira grande experiência de Galileu que ‘mediu’ o tempo em unidades de peso de água, mostra que o que realmente se conhece nos laboratórios de física são as “diferenças e proporções” (Galileu) entre os resultados das experiências verificando as equações (em qualquer laboratório que as repita), e não as ‘substâncias’ relativas às dimensões medidas, tempo, espaço, massa, e por aí fora. Essas diferenças e proporções geométricas (medidas) são ‘nada’ de substancial: a empiricidade experimental, indispensável já que sem ela não há conhecimento físico nenhum, não intervém neste directamente, é reduzida pelo trabalho matemático da física. A Física de Galileu, Newton e tantos outros sábios do sec. XVII é a primeira forma de conhecimento na história do Ocidente que escapa à diferença ontoteológica: nem Deus nem sujeito conhecedor nem objecto corporal intervêm no conhecimento produzido enquanto tal; os próprios conceitos teóricos, indispensáveis ao funcionamento do laboratório, à determinação das experimentações a fazer, continuarão a ser caso de discussão entre cientistas, de reformulação teórica, sem que tal afecte a cientificidade, ao contrário do que sucede, por exemplo, com o alcance técnico dos instrumentos de medida (raiz da diferença entre as físicas de Newton e de Einstein). Na matriz da critica da razão pura, a diferença entre o fenómeno e o númeno será a resultante filosófica deste estatuto laboratorial da física, mas em discurso de linguagem duplamente articulada e sem se interrogar sobre o estatuto escritorial desta. Na física, como veremos, foi expulsa a diferença onteológica do laboratório (entre teoria e experiência, por exemplo, indissociáveis nos paradigmas de Kuhn) mas ela manter-se-á entre ele e a cena da ‘realidade’.
6. Conhecendo mal Hegel (1770-1831), limitar-me-ei a um ponto. Vindo após a manifestação da revolução francesa e contemporâneo dos começos da revolução industrial, isto é da aceleração da ‘história’, reino do particular e do acidental desde Aristóteles, ele pega frontalmente em mãos a aporia da teologia cristã introduzindo a história numa filosofia que se quer busca de saber absoluto, portanto universal. Mas em vez de pensar o papel da técnica nessa aceleração, da técnica que se manifestará como histórica, construída máquina após máquina, e se introduzirá universalmente nas diversas sociedades humanas, escapando assim à aporia e portanto à ontoteologia (a oposição sujeito / objecto e todas as contradições metafísicas ligadas a ela não são pertinentes para descrever a sua essência de técnica, pelo contrário, é ela que tenderá a relativizar esses dualismos), Hegel retoma a diferença fenomenológica para caracterizar a experiência dialéctica, a do movimento da consciência natural ligada à coisa empírica para a consciência de saber absoluto: esta retém o aparecer do fenómeno e desliga-o do objecto empírico aparecendo, para atingir o seu ‘ser’, de forma que o novo objecto verdadeiro brote dela e nela, consciência (Heidegger, 1962, pp.147-8). Se o passo da consciência ao objecto era o duma exterioridade contraditória destinada a ser ultrapassada, esta ultrapassagem faz-se numa ‘interiorização’ que mantém o privilégio do inteligível (simples) sobre o sensível (composto) como constitutivo do ‘absoluto’ (recuperando a teologia cristã que Kant despedira da filosofia).
7. Husserl (1859-1938), filósofo com formação matemática, retoma um século depois de Hegel a diferença fenomenológica mas mais perto da preocupação kantiana com as ciências exactas, já não a física mas a mais ‘pura’ matemática, retomando assim  a problemática grega aquém do laboratório. A diferença em relação a Kant é ínfima, mas capital (Paisana): não parte do disperso caótico das sensações que levará a caminhada de Kant para a ‘unidade’ mais alta, síntese por síntese, mas da intuição sensível dum objecto que permanece o mesmo durante as várias percepções que se lhe podem fazer e permitirão a intuição categorial que diz que ‘este objecto é tal’: do sensível ao entendimento, intervém o ‘ser’ que permite a cópula do juízo ‘é’ e a linguagem em que este se manifesta. As análises fenomenológicas consequentes far-se-ão de actos imanentes à consciência, a qual não se opõe ao objecto visto que, não substancial, só é consciência por ser consciência de qualquer coisa, em sua estrutural intencionalidade: o sentido do objecto enquanto tal objecto é visado pela intenção significativa da consciência, duma forma que se diria de antecipação a priori sem as formas transcendentais kantianas. Só que ‘consciência’ e ‘objecto’ como correlato à partida significa a ontoteologia, com o lugar do ‘theos’ ocupado pelo sujeito em posição monoteísta, de absoluto (desde o cogito), pressupondo a definição que arranca o objecto ao seu contexto, ao seu mundo, arrancado também o sujeito na descendência filosófica da alma: é esta a crítica da ruptura de Heidegger em Ser e Tempo, que se manifestou, a seus olhos, no recuo em relação às Investigações lógicas que foi a relativa aproximação de Husserl a Descartes, após ter feito a redução fenomenológica da empiricidade mundana do objecto aparecendo para reter a fenomenalidade do seu aparecer, a diferença fenomenológica; foi o ter mantido a exterioridade do mundo e da linguagem que tornou possível esse ‘recuo’ até Descartes. Heidegger  (1889-1976) largará Husserl em direcção ao mundo e ao Ser, Derrida retomará a sua redução mas aplicando-a à linguagem, completando o que Heidegger não ‘acabou’.
8. Tudo isto é dito em forma de resumo, que pouco acrescento ao que com mais detalhe escrevi em textos mais extensos[3]. O ser no mundo de Ser e Tempo (1927) é o retorno filosófico ao mundo dos humanos, donde a definição o arrancara como ‘alma’ que contemplou ou conhece essências intemporais; mas não retorno aquém da filosofia, à literatura por exemplo, às narrativas ou às conversas, pois que o humano, dito com o termo clássico em alemão filosófico Dasein, o existente presente aí no mundo, é pensado como ente temporal que cuida do seu mundo e interroga o sentido do seu ser (sem alma nem deus nem definição); segundo o gesto primeiro da filosofia grega que define, indaga-se não da sua ‘causa’ (que seriam os seus progenitores, se se tratasse de biologia ou de antropologia) mas da sua ‘origem’, e esta será dita doação do Ser, em que o ‘poder’ dessa doação se dissimula, se retira, para deixar ser o ente. É o que elaborará como diferença ontológica entre Ser e entes ao longo de três dezenas e meia de anos, diferença entre o Ser como Nada de ente que dá entes temporais, até que a conferência Tempo e Ser (1962) substitua o Ser doador pelo Ereignis, Nada de Acontecimento que, ao nível ontológico da diferença, faz doação dos acontecimentos ônticos, retirando a sua força para deixá-los ser, acontecimentos entre entes com tempo e ser. Leitor de Nietzsche, de Parménides e Heraclito, todos aquém da definição, e também de Aristóteles que des-escolasticiza, restituindo-o como pensador da Physica, relê os momentos principais da história do Ser, da história do pensamento filosófico ocidental, soletrando etimologias gregas e do antigo alemão, não em filólogo mas em pensador que revisita as palavras para as pôr a repensar para nós, uma história assim das ‘palavras’ e não dos ‘conceitos’. Mas também não (ou quase não) pensador dos textos, e é onde se pode entender o limite que não conseguiu ultrapassar da sua fabulosa tentativa, a medir-se com Platão e Aristóteles como ninguém ousara nunca e ainda hoje raros terão entendido. Heidegger reintroduziu a linguagem, já em Ser e Tempo mas aí de forma hesitante, namorou-a o tempo todo como “a casa do ser”, aonde inteligível e sensível não são já susceptíveis de oposição (só há ‘ser’ pensado, como queria Parménides), mas quer-me parecer que nunca conseguiu que ela interviesse no pensamento de forma a inquietá-lo, e terá sido por isso que o Dasein, ser no mundo, não chega nunca a despegar-se da figura ontoteológica do ‘sujeito’, não chega nunca a ser biológico (mortal que não é nunca definido como vivo, ironiza algures Derrida), não chega nunca a alimentar-se (é no entanto o ponto mais forte do ‘cuidado’!) nem a ter que aprender a usar os usos do mundo e a sua fala, não se desprende do cordão umbilical de forma a ser constituído (biologicamente) pela Terra e instituído (socialmente) pelo Mundo, para usar as duas categorias da Origem da obra de arte. Pensador das palavras do pensamento e não dos seus textos escritos, Heidegger ficou na borda exterior da metafísica, escreverá Derrida no texto de 1966 sobre Lévi-Strauss (La structure, le signe et le jeu dans le discours des sciences humaines) que o deu a conhecer aos Estados Unidos e em França como crítico do estruturalismo, da sua figura principal.
9. Derrida (1930-2004) entrou em filosofia por uma porta que fora fechada por Platão e nunca contestada porventura antes de Maurice Blanchot (1907-2003), a porta do texto escrito, que é o da sua tradição de geração em geração e por vezes saltando muitas gerações sem leitores à altura. O que poderia parecer um tema ‘local’, após muitos outros que vinte e cinco séculos de filosofia foram tratando, pensando, discutindo, um tema relativo a um instrumento, uma técnica de linguagem, revelar-se-á um dispositivo de desconstrução da história do pensamento ocidental e das suas instituições que não deixará pedra sobre pedra, nenhum pensador tranquilo na sua maneira herdada de pensar e escrever: porque é enfim o ‘sujeito’ que é desalojado da sua casa tradicional, razão da hostilidade quase unânime que levantaram contra ele filósofos de todo o calibre. Qual é a diferença entre a linguagem oral e a escrita alfabética? Irredutível: uma na intimidade de quem pensa, em categorias linguísticas (da sua língua) e podendo nem sequer dizer sons, a outra imediatamente susceptível de publicidade, desligando-se de quem a escreveu, permanecendo inclusive após a sua morte. Mas susceptíveis da mesma gramática (historicamente, a linguística, relativa embora ao oral, foi tratada como gramática, como escrita) e ambas aprendidas de fora, do mundo em que se nasce e como condição de se vir a ser ‘ser no mundo’. O que Heidegger sempre soube sem dúvida mas sem o saber, linguagem e pensamento são ‘instituídos’ por aprendizagem vinda do mundo, o Dasein tornando-se ser no mundo (por aprendizagem do cuidado de outros usos também). Sem o dizer assim, é o que resulta do principal gesto de De la grammatologie (1967, p. 90ss), cruzando simultaneamente Saussure (“na língua não há senão diferenças, sem termos positivos”, os sons e portanto as grafias não fazem parte das línguas), Heidegger (a temporalidade dos seres no mundo que falam) e Husserl (a redução fenomenológica do aparecendo para não reter senão o seu aparecer fenomenal). Aplicando a redução aos sons da fala, da voz, retêm-se as diferenças entre eles que na voz são necessariamente temporais, sucessivos linearmente, permitindo diagnosticar a diferença, já de si espacial, como também temporal – différance, escreve introduzindo o tempo que joga em ‘différer’ (diferir: ser diferente e adiar) –, como relação ao outro (que se escuta, à voz de quem a redução se aplica) e como inscrevendo uma voz inédita que de escutas assim aparece a falar (a fala – voz e discurso ao mesmo tempo – supõe ter sido inscrita: a escrita como origem da linguagem). Quando distinguir como enigma da différance uma economia e um excesso indissociáveis (Margens. Da Filosofia, texto sobre a différance), será possível dizer como a aprendizagem da fala se faz pela economia estrutural espácio-temporal que dum vai a outro de dois falantes com redução das vozes respectivas como excesso singular dessas economias, economia como língua social, excesso como fala individual, indissociáveis e inconciliáveis. Neste enigma da aprendizagem da linguagem, em que o que é recebido passivamente é simultaneamente activo como falante, reside então a différance como ‘solução’ da diferença ontoteológica entre o sensível e o inteligível. A linguagem (e não só, veremos), sendo constituída por diferenças de vozes sensíveis, não é sensível (tal como a diferença entre cores não é uma cor), mas sendo diferenças de vozes sensíveis, não é também inteligível; sendo diferença entre compostos não é composta mas também não é simples. A linguagem é o que, desde o Crátilo, resiste a esta oposição tenaz, o inteligível pensamento constituído por diferenças entre audíveis, sensíveis palavras. Ora, com a aprendizagem como prévia ao ente humano, é o mundo (e não já apenas o ‘ser’), o que denominarei ‘cena’, que é prévio ao ‘ser no mundo’. 
10. As coisas definidas e os sujeitos que as definiam para as pensarem no seu eidos, com primado da visão que vê formas, aspectos, mostram como a chamada realidade foi sempre a da sua mútua exterioridade, cada coisa e cada sujeito ‘já lá’, na sua integridade, face a face: a diferença ontoteológica é esta exterioridade, o privilégio do dentro sobre o fora. A representação do objecto no sujeito, percepção, conceito, ideia, supõe essa exterioridade que é a nossa evidência espontânea: as coisas e os outros fora de nós, o nosso ‘eu’ como consciência íntima desse ‘fora de nós’ e simultaneamente consciência de nós. Como se estivéssemos sempre a partir do zero do que vemos, sempre a ver pela primeira vez. Mas basta ver um filme sobre uma sociedade asiática ou africana, ou sobre Rio de Onor, para se perceber que não se percebe quase nada desses mundos estranhos, quase como se fosse uma língua estrangeira: ouve-se e não se entende, vê-se e não se percebe, estranha-se. O que significa que é necessário ter já visto para perceber, ter ouvido já para entender. Foi aliás o que Kant, que nunca saiu de Köningsberg, pretendeu resolver com as suas sínteses a priori. A tão difícil de descobrir ‘memória’ para os neurologistas (que continuam a não querer saber dos grafos que genialmente Changeux propôs[4]) resulta da aprendizagem e é condição do ser no mundo de qualquer animal: as coisas que vemos, as pessoas que amamos, só as vemos e amamos porque já em nós a verem-se e amarem-se. Mas a différance (ou trace, suplemento, duplo laço) de Derrida vai além desta possibilidade do face a face de seres no mundo, permite, em aliança com algumas descobertas científicas do século XX (como com a linguística acima), indagar das géneses e desenvolvimentos temporais dos vivos, das sociedades, das respectivas histórias e das dos textos, que tudo releva de excessos singulares sobre economias que se repetem, doadas de maneira retirada que deixa economias e excessos serem em seus percursos aleatórios de vida que aprenderam a regular. O que mais me resistiu enquanto leitor de Derrida, diga-se para prevenir possíveis desânimos, foi a maneira como leu textos de literatura de vanguarda do século passado.
11. O próximo passo a dar diz respeito às incidências desta história da diferença filosófica nas diversas ciências, como estas guardam obstáculos epistemológicos nelas deste passado de oposição entre sujeito e objecto, entre teoria e experiência que Kuhn ultrapassou. Seja uma lista de exemplos filosóficos e científicos de predomínios ontoteológicos, como o da definida essência sobre o contexto donde foi retirada. O ente predomina sobre o Ser que o dá (seja a phusis ou natureza, o mundo, o social); o planeta sobre o campo  das forças da gravidade; o indivíduo, vegetal ou animal, sobre a sua espécie, esta sobre o seu género, o indivíduo biológico sobre a lei da selva, o cérebro biológico dos humanos sobre a tribo que o instituiu, inscrevendo nele os seus usos; o indivíduo humano sobre a sua família e sociedade (que não existe, dizia M. Thatcher); a palavra sobre a frase, esta sobre o texto (de que é parte), este sobre o contexto que o produziu e de que se destacou. Como se a configuração Deus / alma / definição  (ou sujeito / objecto) fosse o pólo solar, monoteísta, que ilumina cada ente, o elucida, esquecendo o campo ‘terrestre’ que o dá, o que Heidegger chamará Ereignis no final da sua obra: a ontoteologia é o predomínio do ‘vertical’ sobre o ‘horizontal’ (como do ‘dentro’ sobre o ‘fora’).
12. Qual é a originalidade do passo de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, em relação à gramatologia deste último? Foi o de ter trazido o motivo do duplo laço, que o pensador francês deslindou lendo gramatologicamente textos de Hegel, Genet e Freud mas que aplicou apenas a questões de ética e política, que o preocuparam sobretudo nas suas duas últimas décadas de escrita, tê-lo trazido ao domínio gramatológico que é o das ciências, tendo em conta a maneira como estas, tendo inventado o laboratório, não souberam ou não puderam sair dele para terem em consideração a cena do mundo aonde tinham ido buscar os fenómenos que analisaram[5]. Ora, o que assim se introduziu como possibilidade de reformular a fenomenologia foi a questão do movimento, que estava no coração da Physica de Aristóteles, e que a viragem heideggeriana e derridiana permitia inverter: as diferenças antes das substâncias. Haverá pois que procurar relacionar este duplo laço com a inicial différance e com a trace. O leitor português terá vantagem em ler primeiro um apanhado dessa obra, o Manifesto (http://filosofiamaisciencias.blogspot.com).



[1] É o que o personagem Parménides no diálogo com o mesmo nome censura ao jovem Sócrates, jovem de mais.
[2] Veremos como ‘razão’ moderna desta diferença (não necessariamente da ‘oposição’) a irredutibilidade que há entre a abordagem neurológica do cérebro, dos seus neurónios e sinapses, e a abordagem do discur­so pela psicanálise e outras psicologias, ou ainda entre os neurónios acessíveis à aparelhagem do laborató­rio e a ‘internalidade’ deles, segundo Damásio apenas acessível ao próprio animal.
[3] 1ª parte do capítulo 13 de Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, retomada integralmente na 3ª parte de La Philosofia avec Sciences au XXe siècle.
[4] Sem todavia parecer ter tirado ele próprio todas as conclusões dessa proposta, como se percebe dos diálo­gos que travou com Ricœur e com o matemático A. Connes. Voltaremos à questão com o neurólogo Ran­del.
[5] Foi aliás a consideração das cinco principais descobertas científicas do século XX, iluminadas pelo duplo laço, que me pôs na pista, apenas os anos de escrita daquele texto me tendo permitido lentamente dar-me conta do alcance do que fazia, que, pela força dos grandes que lia, foi muito mais longe do que eu poderia ter alguma vez presumido. Como testemunhas, dois textos provisórios que escrevi e o que neles permanece de insatisfatório.