domingo, 22 de dezembro de 2013

O Estado, entre alianças e rivalidades




1. Dois sociólogos escreveram há uma quinzena de anos que não havia uma definição de sociedade que servisse para todas as épocas (Dubet e Martucelli, Dans quelle société vi­vons-nous?, Seuil, 1998). Creio que é um d/efeito filosófico que as ciências europeias herdaram ao se situarem na oposição sujeito / objecto, no caso conceitos como acção (Touraine), prática (Althusser), habitus (Bourdieu); a sua desconstrução pode dar lugar ao motivo de ‘usos sociais’ em respectivos paradigmas, implicando aprendizagem, o ‘sujeito’ modificado por cada uso aprendido. Definir-se-á então sociedade em geral como o sistema mais ou menos complexo de paradigmas de usos que se repetem em múltiplas unidades locais, aprendidos por cada nova geração como condição da renovação da sua população. Ora, a aprendizagem traz consigo dois princípios: por um lado, o de aliança entre as unidades locais que trocam entre si (o/a jovem torna-se um/a dos nossos), e por outro o de rivalidade, já que as habilidades ganhas servirão, além da aliança, para ocupar os lugares de prestígio da sociedade; indissociáveis e inconciliáveis entre si, eles são a condição da coesão social. Um texto de P. Clastres equilibrava por assim dizer estes dois aspectos duma sociedade entre as trocas de Lévi-Strauss e a guerra de todos contra todos de Hobbes: troca-se adentro da sociedade (mulheres, discursos, bens), faz-se guerra para fora (Guerra, religião, poder, Ed. 70, 1980). Mas no coração das trocas também a rivalidade joga: se recebo um presente, tenho que dar um equivalente ou melhor, sob pena de desconsideração social. obbesO que significa que estes dois princípios jogam a todos os níveis das sociedades, desde o dos irmãos ou dos colegas até ao das grandes guerras com aliados dum lado e doutro.
2. A guerra não era só apanágio das tribos a que Clastres se referia, foi-o de todas as sociedades históricas, em que a nobreza era a casta dos guerreiros, os quais também prevaleciam para dentro sobre escravos, servos ou súbditos. Se constatamos que, fora 1914-45, nos dois últimos séculos não houve guerra entre as principais nações (Polanyi: “o comércio doravante estava ligado à paz”), ela prevaleceu como fenómeno regional mas sobretudo deslocou-se para o mundo da economia e das finanças, cuja palavra chave é a competitividade (rivalidades) num mercado de trocas (alianças), assim como entre lucros e salários. Um bom exemplo de como os dois princípios se podem compatibilizar sem se anularem é a maneira como são organizados os desportos, competição por definição, através de regras e árbitros que as fiscalizam: regras arbitradas são regulação. Eis o que permitirá abordar a noção de Estado, ao nível geral que convém ao filósofo.
3. Digamos que as sociedades contemporâneas são complexos de actividades especializadas diversas que se interpenetram frequentemente mas de que é possível ressalvar a autonomia relativa entre eles de sectores como alimentação e saúde, construção, transporte, fabricos variados, etc. Três todavia se diferenciam por serem estruturalmente necessários, transversais, a todos os outros: os que têm a ver com as aprendizagens (escolas, livros e outros meios de comunicação), os que têm a ver com o dinheiro (mercado e finanças) e o Estado que tem a ver com a regulação do conjunto (leis, administração, tribunais, segurança, defesa, etc.)
4. A democracia impôs-se na modernidade como a maneira mais ética e razoável de o Estado ser organizado a partir da sociedade civil, embora haja regimes e tradições diferentes. Qual foi a razão de fundo da sua invenção pelos Gregos nos séculos VI e V antes da nossa era (Sólon, Clístenes, Péricles)? Numa sociedade esclavagista em que os nobres adquiriam escravos na guerra para trabalho agrícola (então base da riqueza), as suas casas ganharam preponderância tal que esmagavam as casas pequenas, por vezes ficando escravos por dívidas (Sólon anulou-as). A democracia foi essencialmente o travão a essa dominação como ameaça de vida precária da maioria das casas e dos  cidadãos, para obviar à desigualdade social quando a sua dimensão ameaça destruir a própria cidade: ela nunca interessou por ela mesma às casas guerreiras, desapareceu da história até as burguesias a imporem às aristocracias, o comércio às guerras.
5. Sem dúvida que a pertença à U. Europeia torna as coisas ainda mais complicadas, mas quando Rui Tavares chama a atenção para que, entre os objectivos dela, está “o pleno emprego”, isso lembra-nos que o emprego é parte essencial da democracia, juntamente com o Estado social. Acontece que nos dois outros sectores transversais, o princípio da rivalidade afirma-se como selecção no sentido de fomentar, na escola, os mais competentes para virem a ocupar lugares de topo, na finança, os mais ricos porque os que mais beneficiam da aliança dos cidadãos que trabalham para eles: são os que não precisam de serem protegidos senão da implosão social. Em épocas de tanto desemprego, é bom que quem tem responsabilidades de regulação saiba que o jogo entre estes dois princípios não pode ser o de se perfilhar um contra o outro, mas o de se ter ambos como vectores imprescindíveis do alvo democrático, a aliança sendo a boa solidariedade para que todos tenham direito a viver melhor e assim se garanta o próprio conjunto social. Eis o que deve guiar o guião da reforma do Estado, como é certamente o que guia o árbitro dos árbitros, o Tribunal Constitucional.

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