terça-feira, 22 de outubro de 2013

O que é a Filosofia?


O que é para ti a Filosofia? Perguntou-me o Luís Tavares, meu colega de blogue.

1. A Filosofia ?  é um nível precioso, embora bastante abstracto, para compreender as coisas em geral do universo, do universo terrestre (os astros e as galáxias são vistos da terra), nós humanos incluídos privilegiadamente, claro. Mas não tanto eu, FB. Isto é, não tenho uma busca predominantemente existencial, ao contrário de boa parte da gente nova que tive como alunos. Creio que a razão disto é eu ter chegado à filosofia muito tarde, pelos meus 23 anos e num contexto pessoal em que o cristianismo era predominante: ele foi-se esvaziando, laicizando se posso dizer assim, mas as questões existenciais não vieram nunca à baila da minha curiosidade. O meu ponto de partida foi mais de ordem histórica e civilizacional, implicando as ciências e o cristianismo. E como cheguei tarde e com um grande interesse, uma grande paixão espiritual não filosófica, aconteceu que as minhas primeiras questões foram teológicas (sobre o que sabia Jesus, humano e divino: a tese teológica que me ensinaram era inadmissível) e que para lhes responder li o primeiro dos evangelhos em Paris, no momento mais forte do estruturalismo.
2. Ora o estruturalismo foi a irrupção das ciências humanas – a linguística, a antropologia, a história, o marxismo, a psicanálise – na filosofia, o que implicou em mim o deslocamento progressivo da teologia para a linguística e semiótica, articulada esta com a antropologia e a história (como já fora a leitura do evangelho de Marcos), deslocamento que foi acelerado pela entrada na faculdade de Letras que me obrigou a largar a teologia pela filosofia da linguagem. A tese de doutoramento que aí fiz foi sobre a linguística saussuriana, já sob a égide de Derrida, o qual entrou em filosofia com uma questão inédita, a da escrita, para a qual, além de Husserl e Heidegger, convocou Saussure, Lévi-Strauss, Freud, e muita literatura da mais difícil. Esta, eu não a consegui, não tive nunca quem me iniciasse, rapaz novo, à estética, paradoxo do meu nome, assim como a ética nunca me interessou por razões de ter sido ‘existencial’ a minha entrada no mundo intelectual, me ter ficado ‘resolvida’ na sua problemática com o chamado ‘discurso da montanha’ (Mateus, cap. 5-7), o que chamei uma ética da fecundidade além do que podemos, uma ética de santos e de grandes apaixonados. Mas tanto o peso da teologia na primeiro período e o da história e da semiótica, como a influência da minha passagem pelo estruturalismo e a continuação pela desconstrução derridiana me deram como imagem de marca o coxear de quem tem sempre um pé na filosofia e outro fora. Foi na filosofia com ciências que este percurso desembocou.
3. A filosofia que faço é pois derivada de Heidegger e sobretudo de Derrida: um dos seus pontos chave é a consideração, em vez das ideias, das palavras no seu peso histórico, não se pensa senão por elas e pela tradição anterior ao pensador, interpelado pelas questões da actualidade. Foi por isso que me apareceu que o truque da filosofia, o que a distingue da restante literatura, foi a invenção da definição por Sócrates, Platão e Aristóteles, que inauguraram assim um texto gnosiológico aliado à geometria, destacado quer das narrativas quer dos discursos em torno do ‘eu / tu’ e do ‘aqui / agora’ (Benveniste), o que vim a caracterizar como cena da inscrição, com uma história ocidental relativamente autónoma em relação às cenas da alimentação (a evolução dos vivos) e da habitação (a história das sociedades humanas), com uma história – a história da escola –  que teve dois momentos decisivos, o encontro desta com a teologia cristã (Orígenes de Alexandria, Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino) e com o laboratório científico no século XVII. O primeiro teve como consequência que a filosofia, juntamente com a geometria e o direito romano, esteve no berço da Europa antes desta existir, o que é algo de rigorosamente inédito em toda a história das sociedades humanas, tanto quanto posso saber, o que deu à filosofia um lugar de instauradora da civilização moderna, alterado pelo segundo encontro, que teve como consequência a universalidade histórica da técnica, que domina esta mesma modernidade.
4. Esta dominação veio a dar um acabamento à história da filosofia greco-europeia, ao seu dualismo constitutivo – dentro / fora, alma / corpo, sujeito / objecto – pelo ser no mundo heideggeriano e sua viragem para o Ereignis, obrigando-a a sair da sua ‘interioridade’ gnosiológica resultante da definição para abraçar com Derrida a imensidade da sua ‘exterioridade’ civilizacional. Procurar compreender as coisas do universo terrestre, a matéria e a energia, os vivos, as sociedades, os textos, a gente, é a isto que eu brinco.

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