quinta-feira, 26 de setembro de 2013

A Bíblia Hebraica revisitada




1. Assim como os Filósofos escreveram a Filosofia grega, também os Profetas escreveram a Bíblia hebraica. Eis o paralelo que se pode estabelecer a partir da revolução paradigmática dos estudos exegéticos, sobretudo protestantes de língua alemã, relativos aos seus cinco primeiros livros, o Pentateuco, revolução essa que despoletou a partir de 1975 e de que dá fé, em língua acessível a latinos, o livro organizado pelo suíço Albert de Pury, Le Pentateuque en question. Les ori­gines et la composition des cinq premiers livres de la Bible à la lu­mière des recherches récentes, Labor et Fides, 1989, em que colaboram os principais obreiros desta renovação espectacular.
2. Na Bíblia hebraica, além desses cinco livros contando a pré-história lendária dos antepassados Abraão e Moisés, segue-se noutros cinco a história da monarquia inaugurada por David (por volta do ano 1000 antes da nossa era tomou Jerusalém e fez dela a sua capital) e que terminou em 587 com a derrota de Judá e Israel face aos Caldeus da Babilónia. Depois vêm os livros dos grandes Profetas, Isaías, Jeremias, Ezequiel e mais uns tantos menores, fortemente críticos da falta de justiça social dos monarcas e que reclamam falar em nome do próprio Deus de Israel, Yahvé. Durante o século XX, pensou-se que, das quatro redacções de que o Pentateuco é composto, a primeira era do tempo do rei Salomão, filho de David, a segunda contemporânea dos Profetas do século VIII, a terceira o livro dito Deuteronómio em grego, de cerca de 640, e a quarta já no século V provavelmente, após a restauração de Israel, na paz de vassalos que os Persas lhe garantiram entre vencerem os Caldeus em 539 até serem derrotados por Alexandre em 331. Esta última mão fez o acabamento do Pentateuco, a chamada Tora, a Lei de Moisés que ainda hoje é lida solenemente nas sinagogas.
3. O argumento fundamental da revolução paradigmática é este: nenhum dos Profetas fala de Abraão, de Moisés, da saída do Egipto, da aliança e outorga dos 10 Mandamentos no Sinai, o que implica necessariamente que os textos que contam essas lendas foram escritos apenas depois dos textos dos Profetas, o primeiro dos livros do Pentateuco sendo o Deuteronómio, o tal de 640. Explica-se assim, exemplo importante, que apareça por duas vezes, no cap. 12 do Génesis e no início do Êxodo, a figura antropologicamente impossível dum Deus sem povo que escolhe um: primeiro o seu antepassado Abraão, depois o seu líder libertador Moisés; trata-se pois duma figura teológica, que é a grande invenção profética, com o motivo da aliança – fabulosa ficção! – que Yahvé estabeleceu no deserto com o povo mediante Moisés, outorgando os 10 Mandamentos; o Deuteronómio prossegue com vários capítulos de leis que reformam o sistema de culto e estabelecem um direito comum cuja pérola é “que não haja pobre no meio de ti” (cap. 15, 4): a lógica da aliança é que se o povo for fiel à justiça da prática da lei, Yahvé garante-lhe a paz face aos inimigos. Esse texto foi usado pelo rei Josias para encenar essa aliança (2º livro dos Reis, cap. 22-23), tendo os Profetas concluído que a derrota de 587 veio da infidelidade de reis e povo.
4. Porquê essa cena-ficção se passa no deserto? Havia já três séculos e meio de monarquia em Israel, com agricultura e muitos usos e costumes arreigados. A cena passa-se antes desses usos, no deserto não há agricultura, o povo está como que nu diante de Yahvé: trata-se da operação filosófica de redução da realidade social – um tipo específico da Bíblia – para deixar à vista apenas a questão ética e espiritual da aliança, deixar sobressair a origem divina das leis que os Profetas propõem. E é aonde se pode estabelecer um paralelo com os Filósofos, nomeadamente é possível fazer uma comparação com a República de Platão, mutatis mutandis: em ambos os casos – Formas ideais celestes e Yahvé – trata-se fazer da separação entre o Céu e a Terra a medida ética quase infinita duma formidável reforma política da cidade dos humanos, cada um reinventando a origem das suas respectivas sociedades: a origem justa da polis no Filósofo, o deserto ancestral no Profeta.
5. Tiro três consequências apenas. a) Torna-se possível distinguir claramente a Bíblia hebraica – a referência maior dos Judeus – do Antigo Testamento como parte da Bíblia cristã, onde é apenas uma ‘letra’ que anuncia um ‘espírito’, o Novo Testamento: letra esvaziada do seu potencial ético-político, subordinada ao novo ‘espiritual’. Ou à inglesa, without: a Bíblia hebraica é a Bíblia com (with) o não ter (out) o cristianismo. b) A revolução paradigmática da exegese do Pentateuco e as consequências filosóficas que lhe acrescentei permitem retomar a primeira frase deste texto: assim como os Filósofos escreveram a Filosofia grega, também os Profetas escreveram a Bíblia hebraica. E assim como se pode estimar Platão e detestar o platonismo, creio ser possível aos intelectuais judeus que não acreditam no Yahvé do deserto procurarem, se quiserem, uma base sólida nos seus antepassados para se afirmarem culturalmente. Foi esse livro e a endogamia que ele preconizou que permitiu a inverosímil aventura da Diáspora, com tanta dor e perseguição. c) Se for verdade que a Bíblia hebraica e a Filosofia socrática são os dois pilares do pensamento ocidental, também para os intelectuais ocidentais em geral pode ser uma grande e saborosa novidade que os ali­cerces desses pilares sejam dois textos que pensam a cidade, busquem uma aliança do pensa­mento com a justiça.

 (http://phenomenologiehistorique.blogspot.pt/, Prophètes et Philosophes)

Público, 17 março 2013

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