A propósito do mercantilismo
segundo Rodrik
1. O texto de Dani Rodrik chama-se “O
novo desafio mercantilista” (Público de 10.02.2013). Este professor de Harvard (por uma vez, boas notícias dum
economista desses sítios neoliberais, que só juram por Friedman) propõe
reabilitar o mercantilismo no essencial: aquele que tem sido praticado pelos
Asiáticos (Japão, China, Coreia do Sul, Taiwan) com excelentes resultados. Uma
primeira citação me interessa: contra uma parte da tradição mercantilista então
vigente, “a opinião de que a política nacional deveria ser orientada pela
acumulação de ouro e prata, [...] Adam Smith, A Riqueza das Nações, [...] mostrou, em particular, que o dinheiro não
deve ser confundido com a riqueza. Tal como ele disse, ‘a riqueza de um pais
não consiste somente no seu ouro e prata, mas nas suas terras, casas e bens de
consumo de todos os tipos’ ”. O título célebre do livro sugere que esta citação
diz o essencial do alvo do economista inglês. E uma segunda: “os mercantilistas
[...] enfatizam o lado produtivo da economia. Para eles, uma economia sólida
requer uma estrutura sólida de produção. E o consumo precisa de ser sustentado
por uma taxa elevada de emprego com salários adequados”.
2. Estas duas citações ilustram, para
o não economista que eu sou, as duas vertentes do que se passa hoje em Portugal
e na Europa quase toda. A primeira justifica, dois séculos mais tarde, uma como
que ‘predição’ (em termos científicos, entenda-se) de A. Smith: ele mostra como
a concepção, hoje predominante na especulação financeira, de a riqueza ser os
números em dólares ou em euros, ser o critério de ‘progresso económico’, está a
dar cabo da parte essencial da ‘riqueza das nações’ que são as terras, as empresas
e as famílias
e os bens de
consumo: essencial, porque o dinheiro só
vale em função dessa riqueza propriamente
económica. O neo-liberalismo monetarista parece coincidir
hoje com o que foi criticado por Adam Smith no mercantilismo: o que este
privilegiava – estrutura sólida de produção, consumo, emprego e salários
adequados –, é o que o neo-liberalismo está a deitar abaixo com a importância
demolidora da especulação financeira.
3. Dito isto, algumas reflexões.
Rodrik considera que “o modelo liberal tem perdido o brilho, de forma severa,
devido ao aumento da desigualdade e à situação difícil da classe média no
Ocidente, juntamente com a
crise financeira que a liberalização gerou” (eu sublinho). Espero bem que tenha razão, já
que, para quem trabalha em filosofia e portanto crê no peso histórico das
palavras teóricas, parece cada vez mais óbvio que a teoria neo-liberal, funcionando
como paradigma dos economistas no poder, dando-lhes a ver o que vêem (os
números crescentes da riqueza financeira nas bolsas) e cegando-os para o que o
paradigma
reduz (a riqueza
económica das nações), é a causa mais forte de toda esta crise, que a rapidez
dos meios electrónicos acelerou de forma nunca antes vista (nem em 1929, julgo
eu). O que chamo aqui ‘riqueza económica das nações’ – estrutura sólida de
produção (empresas produtivas) e consumo com emprego e salários adequados – corresponde
às duas margens do mercado: por um lado, a que lhe é anterior, a
produção técnica liderada pelo engenheiro e não pelo economista, e
por outro a que resulta dele, os que consomem o que foi produzido por eles, as
famílias da tal classe média, hoje ameaçada pelo desemprego e pela insegurança,
em vias de empobrecimento. Caramba! É difícil de perceber que os efeitos
nefastos do liberalismo correspondem a uma época de grande progresso
tecnológico electrónico e à formação de fortunas colossais por especuladores
que muitas vezes nunca administraram empresas nenhumas dignas desse nome? Que é
absurda uma crise destas em época de apogeu tecnológico com consumo de massas?
Que este progresso electrónico veio a seguir aos trinta anos de produção
económica que instauraram o grosso da classe média, os seus ordenados, as suas
férias pagas e a sua segurança médica e social, e que não há nenhuma razão tecnológica
que explique esta crise, se não fosse uma teoria económica virada para a
ganância financeira, para a guerra dos capitais pelos maiores números, a qual
teoria levou à desindustrialização do Ocidente em grande parte?
4. Rodrik diz que o mercantilismo
chinês e de congéneres corresponde à “construção duma economia moderna e à
criação das condições para a prosperidade a longo prazo”, assim como também
lembra que o liberalismo só triunfou em Inglaterra em meados do século XIX. O
que significa que o mercantilismo, onde “o Estado e as empresas privadas são
aliados e cooperam na procura de objectivos comuns, tais como o crescimento
económico interno ou o poder nacional”, foi quase sempre a regra: inclusive as
nações europeias que foram atrás do modelo industrial inglês, França, Bélgica,
Suécia e outras, recorreram ao Estado para fomentar caminhos de ferro e bancos
suficientemente fortes, explica Landes
na sua história da técnica europeia
.
Tudo isto parece-me significar que o Estado social faz parte intrínseca deste
novo mercantilismo como teoria económica que deveria suplantar o
neo-liberalismo.
5. O que é que me move nesta pretensão de crítica
do paradigma da ciência da economia? Não sou economista, mas isso parece-me ser
aqui uma vantagem, já que por regra os cientistas de paradigma normal, como
dizia Kuhn, são avessos a revoluções desse paradigma, é frequentemente alguém
de fora que as faz, ou melhor alguém que tenha um pé fora. Eu tenho os dois pés
fora, não tenho a menor pretensão de dizer o que deve ser a ciência económica.
Mas as minhas deambulações de filósofo da linguagem por várias ciências que a
revolucionaram, linguística, semiótica, antropologia, neurologia, psicanálise,
levaram-me a retê-las na sua dimensão filosófica – filhas da definição e dos
conceitos filosóficos – como componentes duma fenomenologia ambiciosa, capaz de
entender a estrutura do universo, nomeadamente a da terra e da vida. Ora,
foi-me dado assim perceber que a história dos humanos, desde a invenção da
agricultura e da criação de gado com que as sociedades domesticaram a lei da
selva que dominava os humanos
como os restantes animais, tem sido a história de procurar controlar pela
linguagem da razão a lei da guerra que da da selva herdámos. Saindo todos das religiões que criticaram, o
direito nomeadamente, mas também a filosofia e as ciências, é esse controle da
lei da guerra que buscam, dos excessos das rivalidades, tendo vindo a
alargar-se a zona da sua amplidão, regional, reinos, nações, globalidade do
planeta. Nesse sentido, a economia enquanto ciência tem como função primeira
domesticar a guerra dos capitais.
6. O que sei da economia é que é a ciência do
mercado e que este se situa entre a produção de bens e o seu consumo, entre as empresas e as famílias, digamos de forma
geral, e que são estas que são importantes em termos da habitação social dos
humanos na terra. Com efeito, o que move o engenho dos humanos é a invenção que permite melhorar as
produções, o que move os seus desejos terra a terra e corpo a corpo é a qualidade e o preço desses bens. O
dinheiro, como equivalente de trabalho produtivo, é um meio racional de proceder às trocas, vendas e compras
(a troca começou por se sobrepor às pilhagens e razias guerreiras). Ninguém
come dinheiro, numa ilha deserta ele não vale nada, onde continuam a ser essenciais o engenho e os desejos. [O problema da especulação financeira é ela reduzir totalmente a produção e o consumo e centrar-se no 'meio' que só entre ambos vale: trocam-se acções de empresas, mais de 50% para se ter poder sobre elas e sobre os que a constituem enquanto produtores, é este 'poder' que, antidemocráticamente em relação aos poderes legítimos eleitos, é o que se procura nas bolsas, além fronteiras nacionais, fora do alcance dos Estados respectivos. Seria necessário entender esta relação entre finanças à solta nas bolsas e economias de cidadãos que trabalham, entendê-la entre economia e direito.] Seja como for, creio que o erro
crasso da ciência económica actual é o de ter como elemento de avaliação o crescimento dos números em termos de dinheiro, em vez de ser a qualidade da produção e do consumo.
É certo que esta escapa ao economista, mas não deveria escapar que a
especulação financeira está a desvastar esta qualidade e que o carácter terapêutico
da ciência económica deveria encontrar meios científicos de vigiar por essa
‘qualidade’, a começar pelo emprego. Assim como a medicina busca que não haja
doentes como seu critério primeiro, a economia deveria buscar antes de mais que
não haja desempregados. Pela boa razão que os empregados são o esteio da
economia, os que a fazem com a cabeça e as mãos nas máquinas e nas matérias
primas, e que a ciência só intervém pelo facto de ser necessário capital para
que haja produção: lembremo-nos que os trabalhadores começaram por ser escravos
captados em guerra, que esse foi o esteio da economia da chamada Antiguidade,
que a moeda é um meio
histórico excepcional para domesticar a guerra.
7. É verdade que a democracia foi inventada pelos
Gregos num regime esclavagista, não impede que a sua lógica primeira,
restringida embora aos cidadãos de Atenas, foi a de evitar que as casas
poderosas (em terras e escravos) absorvessem as casas mais pequenas, dependentes
do trabalho dos donos. Ora bem, se a democracia moderna se refere a todos os
cidadãos, incluindo os trabalhadores por conta de outrem, percebe-se que, além
do direito e protegidos aliás por contratos de trabalho, a ciência económica
deva ter que ver também com a justa partilha dos resultados entre lucros e
salários, partilha essa para a qual não há critérios que não sejam políticos,
de acordos, consentidos ou impostos, de greves por vezes. Mas sobretudo, uma
vez que a economia não pode pretender evitar a falência de tal empresa nem o
despedimento de tal trabalhador, ela tem que velar pelo jogo da concorrência e
da competitividade de maneira a evitar que este jogo não elimine os mais fracos
por abuso dos mais fortes (as leis anti-monopólios, por exemplo). Tudo isto
creio ser razoavelmente pacífico. O que me parece escandaloso todavia, é que o
que não é senão um meio entre a ‘riqueza’, de troca entre a produção das empresas e o consumo das
famílias, Adam Smith dixit,
meio privilegiado justamente pela ciência económica como operador da necessária
redução que faz dela ciência, que o crescimento ilimitado desse meio se tenha tornado o critério principal dos
economistas, é algo de intrinsecamente perverso. Mesmo em termos de PIB não é evidente: já A.
Gorz assinalava que os números relativos às consequências dos desastres de
automóvel contribuem para aumentar o PIB, e que este baixa com as medidas de
prevenção rodoviária que conseguem diminuir o número de desastres. Mas que
as finanças especuladas tenham como consequência a crise da estrutura
económica, falências e desemprego, eis o que me parece ser a negação pelos
próprios fenómenos da economia como ciência. Como as vacinas e outros remédios
quando matam os doentes o são para a medicina. É a esta preocupação democrática que chamei ‘saúde da actividade
económica’ no texto “Economia, direito e moral”, em que o zelo do bem comum deve ser parte essencial da ciência económica, tal como a justiça no
direito e a saúde na medicina.
8. Esse texto termina propondo que reduzir os
tempos de trabalho para que toda a gente tenha emprego, é
o problema económico que os economistas não vêem, não vêem que foi assim com as várias etapas
de progresso tecnológico. Durante o século XIX europeu e americano, 10 a 14 e
mais horas de trabalho foram regra, como o sol a sol dos trabalhadores rurais,
ainda vigente entre nós no 25 de Abril. As 40 horas semanais foram conseguidas
durante o século XX. A questão parece ser actualmente a de computadores e
robots estarem a precipitar o desemprego de forma crescente e massiva: o que é
um bem do ponto de vista do trabalho vira-se contra o trabalhador que perde o
emprego e apenas a favor dos lucros que têm que crescer, não apenas por desejo
dos empresários mas por imperativos ‘científicos’ da teoria, explicitados ou
pressupostos apenas. "
Como pode uma economia em crise crescer, quando isso não aconteceu quando havia condições favoráveis? E se o crescimento
económico não existir?", perguntava Miguel Gaspar no
Público de 10 de janeiro, citando Krugman que citava Gordon, pretendendo que o crescimento, após três revoluções industriais, estará a chegar ao fim.
“Face ao desemprego e ao uso das novas tecnologias, a diminuição radical
dos horários de trabalho é uma solução de bom senso evidente. Todavia não há
nenhuma instância que possa aplicar essa regulação”, dizia em 1989 Serge Latouche (“Essai sur
les limites de l’analyse régulationniste dans le contexte de la crise
contemporaine”, La Revue du Mauss nº 3, 1989, p. 63). Em todo o caso, como André Gorz antecipou no seu
Adeus ao
proletariado em 1980
,
será tecnologicamente possível organizar-se a sociedade em duas grandes esferas
de tempo: a da heteronomia onde se trabalha em vista de salário e a da autonomia
onde se vive segundo a sua liberdade, onde se faz aquilo de que gostamos sem ser preciso que nos paguem, um tempo livre activo, as instâncias municipais
facultando meios variados para facilitar esta esfera (oficinas para reparar
maquinaria solidariamente, por exemplo que ele dá, a que se pode acrescentar
bancos de tempo, com gente que ensine coisas interessantes, ou músicas, pinturas,
vídeos, feitos pelas pessoas, e por aí fora).
9. Este aumento duma esfera de vida autónoma
com possibilidades solidárias pode bem ser uma utopia razoável para o século
XXI, pelo menos para as populações ocidentais (as outras é mais complicado). Mas é claro que as
dificuldades são muitas, já que é impossível tornar viável uma reforma social
dos horários de trabalho apenas numa região, num país, como sublinhava Latouche. Terá que ser algo que
implique a U. E. e os E. U., a América latina e a Ásia, os países muçulmanos,
as Áfricas. Vê-se bem que os países ditos emergentes quererão chegar ao nível
de vida dos Ocidentais, enquanto estes deverão melhorar a sua vida mas frugalmente,
de forma a baixar os números económicos. A favor desta utopia estão as questões
ecológicas e climatéricas, as ameaças deste sistema industrial sobre as
condições de habitação da terra, que deverão ser parte nevrálgica das motivações
políticas. São ou deveriam ser conhecidos os argumentos para um decrescimento
sustentável: “esgotamento dos recursos energéticos -
(petróleo, gás, urânio, carvão) ; valor decrescente de numerosas matérias-primas;
degradação ambiental: efeito estufa, aquecimento global, perda da biodiversidade
e poluição; degradação da flora, da fauna e da saúde humana; evolução do padrão
de vida dos países do hemisfério norte em detrimento dos países do sul, no que
diz respeito a transportes, saneamento, alimentação” (Web), ver Serge Latouche, Pequeno tratado do decrescimento sereno, ed. 70. Só que tem-se visto
como é difícil que os políticos, sujeitos a eleições periódicas e à pressão das
populações, chegarem a ‘acreditar’ no que os cientistas da terra e do clima vêm
avisando há algumas décadas e a porem em prática as reduções industriais
preconizadas. Num texto de 2007, “A economia política por vir como ciência
terapêutica”, neste blogue também, aventei o exemplo das reformas de Keynes só
terem sido possíveis no rescaldo da última guerra e de portanto ser necessária
uma crise forte para se reformar este capitalismo selvagem à Friedman:
ingenuidade minha, que a crise veio, e de que maneira, e viu-se que os remédios
propostos são neo-liberais e atacam-se ao Estado social, e que as populações em
crise votaram à direita, sem aliás que a esquerda se mostrasse capaz de fazer
outra coisa.
10. Mas continua a ser certo que só a violência de
crises poderá obrigar a reformas, as quais provavelmente não virão logo de cima
mas poderão eclodir de baixo. O exemplo maior, quer-me parecer, é o da maneira
como a Auto Europa e outras fábricas mais pequenas de que se não fala, ao terem
menor vazão para os seus produtos, em vez de despedirem uma dada percentagem de
pessoal, aplicam essa percentagem a tempo de trabalho de todos, um dia a menos
por semana no caso duma fábrica em Cascais com 70 empregados de que conheço um
deles. A redução do salário repartida por todos vale mais do que o despedimento
duns tantos, as pessoas não gostam do que lhes falta mas percebem que é justo e
solidário. O mesmo pode ser feito na Função Pública, mas vê-se a ‘estupidez
economicista’ de quem quer aumentar as horas de trabalho e despedir 50 mil! É a
confissão mais clara da cegueira do ‘crescimento’ que aliás só tem gerado
recessão. Sem dúvida que isso não chegará, mas altera o clima social e levará a
pouco e pouco a reavaliar necessidades (e inutilidades habituadas). A questão de
fundo (não sei dizer nada sobre a dívida) é saber se as coisas
caminham para recuperar as 40 horas de trabalho ou se, pelo contrário, se
verificará que o desemprego ocidental, resultante de computadores e
robots,
é irrecuperável com tantas horas e que se virá a
concretizar menos tempo de trabalho necessário, com fim também da produção de
muita bugiganga.