sábado, 24 de março de 2012

Procurar compreender o descalabro


PROCURAR COMPREENDER O DESCALABRO

 Público, 5 Janeiro de 1993;  retomado na revista Argu­mento, vol. III, nº 5/6, 1993, dirigida por António Marques, em debate com A. Mar­ques, J. Paisana e J. Bragança de Miranda
 
  1. Um cartoonista citado recentemente pelo PÚBLICO dizia astuciosamente que afinal o Muro de Berlim unia, em vez de separar. Em linguagem de engenharia civil, dir-se-ia que se tratava dum muro de suporte que aguentava os dois lados de que era fronteira. Ruiu e foi o descalabro que se viu e continua a ver, acelerando também o do 3º Mundo que o socialismo durante um tempo masca­rara. Para não falar no outro 3º Mundo que irrompeu este ano em Los Angeles e na Alemanha que não cessou de ser de Leste. Não têm fal­tado as tentativas de análise, de pontos de vista diferentes, mas  es­tes em geral constituidos para explicar o que havia antes, quando o muro de suporte funcionava.
2. A interpretação mais célebre, a de Fukuyama, recorreu à filo­sofia de Hegel, e esse 'alto' ponto de vista pareceria o mais indicado, não fôra a obsessão do 'fim da história' como elogio da democracia deixar de lado o descalabro que aí está justamente a prometer relan­çar a história, e de forma nada optimista. As pós-modernidades dos anos 80 também parecem ficar mudas diante deste novo 'pós', o do Muro de Berlim. Mas ninguém parece ter dado pela possibilidade de dar atenção à importância da técnica no descalabro, nem ao (porventura) maior filósofo do século que finda. De facto, o tema que dominou o pensamento de Heidegger no último periodo da sua vida, após a guerra, foi o da técnica como acabamento  da metafísica greco-europeia e dominação  planetária, a sua busca a de delinear o pensamento, já não filosófico ou metafísico, que (nos) poderá advir, o pensamento da habitação abrigada na Terra. Não sou heideggeriano, como adiante se verá que o forço para onde ele resis­tia, mas quero crer que esta sua (e nossa) questão poderá ajudar-nos na busca de compreensão deste descalabro.
3. Traduzirei, em termos de antropologia da civilização[1], se se puder dizer, o tema da técnica como acabamento da metafísica ou onto-teo-logia na seguinte tese: a nossa civilização, em acelerada e imparável expansão planetária, caracteriza-se pela substituição das religiões (e das formas ideológicas que as substituiram na época mo­derna) pela técnica.[2] Para que se possa entender o alcance desta tese, tentarei esclarecer os seus termos e sugerir alguns dos seus efeitos como descalabro.
As religiões e os usos
4. As formas religiosas das sociedades de tipo tribal e daquelas de que a história se ocupa, desde os antigos impérios egípcio e meso­potâmico, foram muito variadas, mas creio que se poderá descrever o seu núcleo da seguinte forma. Tratava-se de sociedades tradicionais, no sentido em que o que as estruturava era a repetição  o mais fiel possível das práticas e crenças recebidas dos seus antepassados. O que estava em jogo era a sua sobrevivência de geração em geração e a tradição de práticas e crenças era a única garantia dessa sobrevi­vência: a inovação (a história, em nosso sentido) era uma ameaça, e quando acontecia, de forma marginal, tinha de ser integrada no con­junto tradicional que lhe dava sentido de sobrevivência. Repetia-se porque se tratava das práticas que tinham permitido a essa sociedade chegar ao ponto em que estavam, o que os antepassados fizeram es­tava testado pela experiência, pelo próprio facto de a sociedade ter sobrevivido à morte. As sociedades são de mortais que lutam para vencer a morte, os que morrem tornam-se antepassados, os que dão, pela tradição do que fizeram para sobreviver, a força de viver. Os espíritos e os deuses das religiões são os mais-do-que-antepassados que os prolongam, se dizer se pode, de formas diferentes, consoante as sociedades marcando, quer a continuidade, quer a ruptura entre deuses e antepassados. Os mitos e os rituais sagrados, re-actualizados em momentos de risco da vida social e/ou individual (nascimentos, iniciação, casamento, morte, épocas do ano agrícola, guerra e alianças, catástrofes, etc.), fazem a ponte entre os fazeres dos antepassados e os actuais, comungando nas mesmas forças-sentidos no que diz res­peito aos usos mais quotidianos.
A técnica e os usos
5. É aqui que bate o ponto da substituição das religiões pela técnica. Esta também intervém essencialmente nos usos mais quoti­dianos  e os altera radicalmente. Foi assim que foi alterando, sempre a partir dos usos, a paisagem da Europa, modernizando-a desde os tempos da invenção da imprensa, a técnica da escrita. Um dos maio­res logros filosóficos em torno da técnica é a ideia de que ela é neu­tra. O que dá essa ilusão, é o facto de ela ser universal em relação aos usos e costumes de cada sociedade, às suas formas políticas e ideoló­gicas, e por aí fora. Mas justamente por ser universal (como o cris­tianismo o foi para a Europa), penetrou sem se alterar a si nos usos ancestrais e alterou-os, a pouco e pouco, mas substancialmente. Desalojou a religião e substituiu-a por ideologias nacionais e de pro­gresso, liberais e socialistas, e por aí fora; criou uma rêde de institui­ções económicas, comerciais e financeiras, substituindo a rêde das ca­sas (as antigas 'empresas') como tecido estrutural da sociedade, exigiu escolarização generalizada e regimes democráticos adequados aos no­vos tipos de conflito económicos, sociais e políticos, tendeu à unifor­mização das práticas e das crenças, como hoje se vê de sobejo. Enfim, deu-se como meta social o progresso contra  a tradição dos antepas­sados, obrigando as religiões cristãs aos 'aggiornamenti', a tornaram-se minoritárias e assembleias de gente de fé pessoal, como se diz, como condição de sobrevivência na paisagem secularizada. Neutra é que ela não é nem nunca foi.
6. Com efeito, foi o acabamento (tanto quanto hoje podemos ver) deste processo que se deu nos últimos trinta ou quarenta anos com o incremento dos meios electrónicos de comunicação e de compu­tação. Qual é a diferença essencial entre as religiões e as ideologias suas sucedâneas e a técnica? É que aquelas são englobantes de co­munidades segundo factores étnicos e linguísticos, ou seja culturais - isto é, opõem crentes das diversas religiões uns aos outros, como indígenas e estrangeiros -, enquanto que esta é disseminante. Aquelas faziam com que as, grosso modo, mesmas técnicas que havia (agrícolas, artesanais, etc.) em co­munidades diferentes se revestissem de roupas diferentes em cada uma, a ponto de só os indígenas as entenderem e saberem repetir, tornando os outros estrangeiros, como se de línguas diferentes se tratasse (como os folklores ainda hoje atestam com grande brilho es­tético), já que as forças-sentidos desses usos técnicos demandavam iniciações ancestrais. A técnica actual demanda uma imensa institui­ção de iniciação, a escola generalizada, que se repete, sem diferenças essenciais, em qualquer cidade moderna, onde garotos de etnias dife­rentes podem estar lado a lado a aprender, com o único problema da língua (por onde o inglês penetra como língua internacional da téc­nica). Demanda especialização, é certo, mas para o fabrico tecnológico, para o funcionamento das complexas instituições, não para o uso da maioria das técnicas do quotidiano, que todos aprendem rapidamente a mexer nos botões e a pô-las em andamento de forma satisfatória. Disseminante ainda no sentido que técnica exige técnica: redes de electricidade, de bancos e de distribuição comercial, e de meios de conhecimento e informação, e por aí fora, redes que são essencial­mente multi-nacionais como a própria técnica. E disseminante ainda no sentido em que, como dizem os franceses, nada pàra o progresso, os novos inventos, os novos modelos, incessantemente aparecem e se exigem mutuamente. Disseminante enfim, no sentido em que as for­mas culturais nacionais, as identidades forjadas por séculos de histó­ria, são rapidamente eliminadas na uniformização das cidades mo­dernas.
As resistências
7. Mas não sem resistência a tal uniformização, e essa é um dos factores mais importantes do descalabro actual. O fundamentalismo islâmico é o exemplo mais típico de tal resistência. Não à técnica en­quanto tal (sempre desejada e suposta neutra), mas ao que ela traz consigo: escolaridade  que transforma os usos e esbarra amiúde com crenças seculares, instituições de tipo ocidental e democracia que subvertem as estruturas autoritárias de parentesco, estruturas islâ­micas essas acima das quais o Estado moderno nunca se conseguiu instituir duradouramente. Também a Índia parece padecer duma tal resistência tenaz de civilização multi-secular. Quanto aos países afri­canos, a resistência foi vencida no tempo do colonialismo que des­truiu impiedosamente as estruturas tribais para que a descolonização, ao som de ideologias importadas, tenha amontoado as populações em bairros de miséria em redor das cidades, sem que se veja a maneira de 'civilizar', em duas ou três gerações, o que na Europa demorou dez ou doze.
8. O problema dos países ex-socialistas europeus é diferente. O leninismo foi uma forma europeia de recuperar aceleradamente o atraso tecnológico em relação aos países capitalistas e as circunstân­cias histórico-geográficas da Rússia permitiram que tal se fizesse da forma imperial a que o imperialismo czarista abrira a via. O carácter disseminante da técnica, tendo começado por implicar a escolarização em extensão, veio a obrigar ao mercado e à democracia[3] e a gerar o efeito Gorbatchov, precipitando o ruir do muro de Berlim e Eltsine depois. Mas é o modo imperial estalinista, abafando as identidades culturais, que explica em grande parte o surto nacionalista como forma de resistência, a dizer que essa etapa europeia dos séculos XVII-XIX também ali terá de ser levada a cabo, de forma certamente mais acelerada, mas incontornável.
A soberania civil a adquirir
9. É este o ponto que parece mais difícil de entender aos nossos olhos ocidentais, ignorantes da nossa própria conturbada história. Como os usos técnicos de antanho estavam misturados indissociavel­mente a outros usos ancestrais, algo destes resiste à modernidade, por um lado; e por outro, a própria entrada da técnica e da escolariza­ção implica uma subjectivização forte (fabricando o indivíduo mo­derno, autónomo do parentesco) que remexe com as identidades anti­gas, mas em forma de substituição conflituosa que também reactiva essas velhas identidades estruturais, e as torna resistentes, em ordem a estabelecer, face ao que, como modernidade, de fora lhes vem, uma espécie de soberania civil, digamos, que lhes permita sobreviver como tecido social e histórico.
10. Ora, esta difícil mas decisiva questão é fundamental em to­das as sociedades destes segundo e terceiro Mundos: elas só são viá­veis enquanto sociedades com um mínimo de autonomia ou de sobe­rania (por definição mesma de sociedade), e estas formas de naciona­lismo são a condição necessária, embora conflituosa, da sua moderni­zação. Neste sentido, obviamente que o caso mais dramático é o dos países africanos. Mas para todos eles, há um factor perverso. É que o que mais tem contribuido para acelerar o processo é a janela aberta sobre as sociedades ocidentais que as televisões, como técnica, é claro, lhes oferecem, a acicatar-lhes os desejos de serem 'como nós'. Ora, os mais sensíveis a esse aguilhão são as elites desses países e é muito difícil evitar que, a distância sendo muita e os desejos individuais sobremaneira, tais elites resistam à tentação de se modernizarem elas, e não as massas (que demorará muito mais tempo: o tempo da escolarização que permita a rêde de instituições sem as quais não há democracia). Donde a corrupção dessas elites, que se conjuga com os interesses a curto prazo dos que lhes exportam tecnologias. A história de Collor de Mello é elucidativa, ainda que nos congratulemos com a solução democrática conseguida: é difícil de avaliar os efeitos nefastos que ela teve sobre o processo de modernização democrática, isto é para todos os brasileiros. Os efeitos sobre a esperança.
O anarquismo civilizado
11. Mas o descalabro também incide sobre as sociedades oci­dentais, e a violência de Los Angeles e da Alemanha xenófoba tam­bém tem uma componente técnica, cujas razões não são essencial­mente diferentes das já aduzidas. Por um lado, o luxo ocidental atrai os emigrantes das sociedades de miséria e cria o paiol. Por outro, o carácter disseminante da técnica, a sua sempre maior expansão sem nenhuma perspectiva de globalidade, a sua capacidade de melhorar os níveis de consumo e o seu acompanhamento por um discurso de imagens de sedução e incitação aos desejos de consumir, a publici­dade agressiva, leva a distorsões terríveis (Reagan e Tatcher são os seus emblemas) enriquecendo uns e empobrecendo outros, impe­dindo ainda que massas dos mais pobres possam ser escolarizados convenientemente para poderem, mediante empregos que não há, aceder ao consumo. Donde a inevitável tentação à violência, com meios sofisticados que ainda a técnica lhes oferece: não é preciso ir à escola para os saber usar (basta ver filmes), nem os que os fabricam têm o menor interesse em saber como serão utilizados, apenas que se vendam. No limite, um rico fabricante de metralha-doras pode ser morto por uma metralhadora da sua marca, como John Lennon poude ser morto só por aparecer muitas vezes na televisão. As redes de droga obedecem à mesma lógica disseminante, etc. E a dominação da técnica que diagnosticou Heidegger impede que haja meios globais, quer ideológicos, quer políticos ou mesmo policiais, para defesa das sociedades assim ameaçadas. É o triunfo, inesperado, do anarquismo não ideológico, quando as ideologias se vão.
12. Espero que o leitor apressado não leia este texto como um discurso contra a técnica ou a favor das religiões e dos nacionalismos. Deverei apenas dizer que o elogio liberal do mercado como devendo, ele só, resolver os problemas da nossa civilização é a maior cegueira intelectual do nosso tempo, aquela de que dão mostra os que, crendo-se intelectuais e constatando-se impotentes, diagnosticam a morte dos intelectuais. Infelizmente, não estaremos à altura deste tremendo desafio, mas que falta os intelectuais não fazem! Clinton, convocando-os, dá-se conta disso.
13. É este um texto triste, não adequado à quadra do Natal. Que podemos esperar? Por certo, não haverá saída sem a técnica: "donde o perigo, também cresce o que salva", dizia Holderlin citado por Heidegger. O que não sabemos - o que o pensador alemão procurava antever sob o termo de Ereignis  (Acontecimento em alemão) - é o que, com a técnica, há que haver a mais.


[1] Este texto tem vários pressupostos que não são habituais, e que tento explicitar num livro a publicar, quando a crise do mercado editorial o permitir, Da Grécia à Europa, civilização, filosofia, economia. Tratei pela primeira vez de questões afins no capítulo "Crise e metamorfose da civilização" de Linguagem e Filosofia, algumas questões para hoje, INCM, 1987.
[2] Essa substituição é correlativa de uma outra: a da rêde das casas como economia agrícola e pecuária, artesanato, etc., pela rêde de instituições empresariais que caracteriza a economia moderna, reduzindo drasticamente as funções de antanho do parentesco à família pulverizada e em crise do nosso tempo. Era do parentesco que dependiam as formas religiosas.
[3] Começa-se a entender hoje que o que o marxismo não soube é que técnica e mercado capitalista são indissociáveis. O que todavia hoje ninguém sabe é o tipo de Estado e de direito que hão-de corresponder ao regime de dominação planetária  da técnica. Actualmente parece que a democracia só funciona eficazmente em termos de nações.