PROCURAR
COMPREENDER O DESCALABRO
Público, 5 Janeiro de 1993;
retomado na revista Argumento, vol. III, nº 5/6, 1993, dirigida por
António Marques, em debate com A. Marques, J. Paisana e J. Bragança de Miranda
1.
Um cartoonista citado recentemente pelo PÚBLICO dizia astuciosamente que afinal
o Muro de Berlim unia, em vez de separar. Em linguagem de engenharia civil,
dir-se-ia que se tratava dum muro de suporte que aguentava os dois lados de que
era fronteira. Ruiu e foi o descalabro que se viu e continua a ver, acelerando
também o do 3º Mundo que o socialismo durante um tempo mascarara. Para não
falar no outro 3º Mundo que irrompeu este ano em Los Angeles e na Alemanha que não
cessou de ser de Leste. Não têm faltado as tentativas de análise, de pontos de
vista diferentes, mas estes em
geral constituidos para explicar o que havia antes, quando o muro de suporte
funcionava.
2. A
interpretação mais célebre, a de Fukuyama, recorreu à filosofia de Hegel, e
esse 'alto' ponto de vista pareceria o mais indicado, não fôra a obsessão do
'fim da história' como elogio da democracia deixar de lado o descalabro que aí
está justamente a prometer relançar a história, e de forma nada optimista. As
pós-modernidades dos anos 80 também parecem ficar mudas diante deste novo
'pós', o do Muro de Berlim. Mas ninguém parece ter dado pela possibilidade de
dar atenção à importância da técnica no descalabro, nem ao (porventura) maior
filósofo do século que finda. De facto, o tema que dominou o pensamento de
Heidegger no último periodo da sua vida, após a guerra, foi o da técnica como acabamento da metafísica
greco-europeia e dominação planetária, a sua busca a de delinear o
pensamento, já não filosófico ou metafísico, que (nos) poderá advir, o
pensamento da habitação abrigada na Terra. Não sou heideggeriano, como adiante
se verá que o forço para onde ele resistia, mas quero crer que esta sua (e
nossa) questão poderá ajudar-nos na busca de compreensão deste descalabro.
3. Traduzirei,
em termos de antropologia da civilização[1], se se puder dizer, o tema da técnica como acabamento da metafísica
ou onto-teo-logia na seguinte tese: a nossa
civilização, em acelerada e imparável expansão planetária, caracteriza-se pela
substituição das religiões (e das formas ideológicas que as substituiram na
época moderna) pela técnica.[2] Para que se possa entender o alcance
desta tese, tentarei esclarecer os seus termos e sugerir alguns dos seus
efeitos como descalabro.
As religiões e os usos
4. As formas
religiosas das sociedades de tipo tribal e daquelas de que a história se ocupa,
desde os antigos impérios egípcio e mesopotâmico, foram muito variadas, mas
creio que se poderá descrever o seu núcleo da seguinte forma. Tratava-se de
sociedades tradicionais, no sentido em que o que as estruturava era a repetição o mais fiel possível
das práticas e crenças recebidas dos seus antepassados. O que estava em jogo
era a sua sobrevivência de geração em geração e a tradição de práticas e
crenças era a única garantia dessa sobrevivência: a inovação (a história, em
nosso sentido) era uma ameaça, e quando acontecia, de forma marginal, tinha de
ser integrada no conjunto tradicional que lhe dava sentido de sobrevivência.
Repetia-se porque se tratava das práticas que tinham permitido a essa sociedade
chegar ao ponto em que estavam, o que os antepassados fizeram estava testado
pela experiência, pelo próprio facto de a sociedade ter sobrevivido à morte. As
sociedades são de mortais que lutam para vencer a morte, os que morrem
tornam-se antepassados, os que dão, pela tradição do que fizeram para
sobreviver, a força de viver. Os espíritos e os deuses das religiões são os
mais-do-que-antepassados que os prolongam, se dizer se pode, de formas
diferentes, consoante as sociedades marcando, quer a continuidade, quer a
ruptura entre deuses e antepassados. Os mitos e os rituais sagrados,
re-actualizados em momentos de risco da vida social e/ou individual
(nascimentos, iniciação, casamento, morte, épocas do ano agrícola, guerra e
alianças, catástrofes, etc.), fazem a ponte entre os fazeres dos antepassados e
os actuais, comungando nas mesmas forças-sentidos no que diz respeito aos usos
mais quotidianos.
A técnica e os usos
5. É aqui que
bate o ponto da substituição das religiões pela técnica. Esta também intervém
essencialmente nos usos mais quotidianos e os altera radicalmente. Foi
assim que foi alterando, sempre a partir dos usos, a paisagem da Europa,
modernizando-a desde os tempos da invenção da imprensa, a técnica da escrita.
Um dos maiores logros filosóficos em torno da técnica é a ideia de que ela é
neutra. O que dá essa ilusão, é o facto de ela ser universal em relação aos
usos e costumes de cada sociedade, às suas formas políticas e ideológicas, e
por aí fora. Mas justamente por ser universal (como o cristianismo o foi para
a Europa), penetrou sem se alterar a si nos usos ancestrais e alterou-os, a
pouco e pouco, mas substancialmente. Desalojou a religião e substituiu-a por
ideologias nacionais e de progresso, liberais e socialistas, e por aí fora;
criou uma rêde de instituições económicas, comerciais e financeiras,
substituindo a rêde das casas (as antigas 'empresas') como tecido estrutural
da sociedade, exigiu escolarização generalizada e regimes democráticos
adequados aos novos tipos de conflito económicos, sociais e políticos, tendeu
à uniformização das práticas e das crenças, como hoje se vê de sobejo. Enfim,
deu-se como meta social o progresso contra a tradição dos antepassados, obrigando
as religiões cristãs aos 'aggiornamenti', a tornaram-se minoritárias e
assembleias de gente de fé pessoal, como se diz, como condição de sobrevivência
na paisagem secularizada. Neutra é que ela não é nem nunca foi.
6. Com efeito,
foi o acabamento (tanto quanto hoje podemos ver) deste processo que se deu nos
últimos trinta ou quarenta anos com o incremento dos meios electrónicos de
comunicação e de computação. Qual é a diferença essencial entre as religiões e
as ideologias suas sucedâneas e a técnica? É que aquelas são englobantes de comunidades segundo factores étnicos e linguísticos, ou seja
culturais - isto é, opõem crentes das diversas religiões uns aos outros, como
indígenas e estrangeiros -, enquanto que esta é disseminante. Aquelas faziam com que as, grosso modo, mesmas técnicas que havia (agrícolas, artesanais, etc.) em comunidades
diferentes se revestissem de roupas diferentes em cada uma, a ponto de só os
indígenas as entenderem e saberem repetir, tornando os outros estrangeiros,
como se de línguas diferentes se tratasse (como os folklores ainda hoje atestam
com grande brilho estético), já que as forças-sentidos desses usos técnicos
demandavam iniciações ancestrais. A técnica actual demanda uma imensa instituição
de iniciação, a escola generalizada, que se repete, sem diferenças essenciais,
em qualquer cidade moderna, onde garotos de etnias diferentes podem estar lado
a lado a aprender, com o único problema da língua (por onde o inglês penetra
como língua internacional da técnica). Demanda especialização, é certo, mas
para o fabrico tecnológico, para o funcionamento das complexas instituições,
não para o uso da maioria das técnicas do quotidiano, que todos aprendem
rapidamente a mexer nos botões e a pô-las em andamento de forma satisfatória.
Disseminante ainda no sentido que técnica exige técnica: redes de
electricidade, de bancos e de distribuição comercial, e de meios de
conhecimento e informação, e por aí fora, redes que são essencialmente
multi-nacionais como a própria técnica. E disseminante ainda no sentido em que,
como dizem os franceses, nada pàra o progresso, os novos inventos, os novos
modelos, incessantemente aparecem e se exigem mutuamente. Disseminante enfim,
no sentido em que as formas culturais nacionais, as identidades forjadas por
séculos de história, são rapidamente eliminadas na uniformização das cidades
modernas.
As resistências
7. Mas não sem
resistência a tal uniformização, e essa é um dos factores mais importantes do
descalabro actual. O fundamentalismo islâmico é o exemplo mais típico de tal
resistência. Não à técnica enquanto tal (sempre desejada e suposta neutra),
mas ao que ela traz consigo: escolaridade que transforma os usos e esbarra amiúde
com crenças seculares, instituições de tipo
ocidental e democracia que subvertem as
estruturas autoritárias de parentesco, estruturas islâmicas essas acima das
quais o Estado moderno nunca se conseguiu instituir duradouramente. Também a
Índia parece padecer duma tal resistência tenaz de civilização multi-secular.
Quanto aos países africanos, a resistência foi vencida no tempo do
colonialismo que destruiu impiedosamente as estruturas tribais para que a
descolonização, ao som de ideologias importadas, tenha amontoado as populações
em bairros de miséria em redor das cidades, sem que se veja a maneira de
'civilizar', em duas ou três gerações, o que na Europa demorou dez ou doze.
8. O problema
dos países ex-socialistas europeus é diferente. O leninismo foi uma forma
europeia de recuperar aceleradamente o atraso tecnológico em relação aos países
capitalistas e as circunstâncias histórico-geográficas da Rússia permitiram
que tal se fizesse da forma imperial a que o imperialismo czarista abrira a
via. O carácter disseminante da técnica, tendo começado por implicar a
escolarização em extensão, veio a obrigar ao mercado e à democracia[3] e a gerar o efeito Gorbatchov, precipitando o ruir do muro de
Berlim e Eltsine depois. Mas é o modo imperial estalinista, abafando as
identidades culturais, que explica em grande parte o surto nacionalista como
forma de resistência, a dizer que essa etapa europeia dos séculos XVII-XIX
também ali terá de ser levada a cabo, de forma certamente mais acelerada, mas
incontornável.
A soberania civil a adquirir
9. É este o
ponto que parece mais difícil de entender aos nossos olhos ocidentais,
ignorantes da nossa própria conturbada história. Como os usos técnicos de
antanho estavam misturados indissociavelmente a outros usos ancestrais, algo
destes resiste à modernidade, por um lado; e por outro, a própria entrada da
técnica e da escolarização implica uma subjectivização forte (fabricando o
indivíduo moderno, autónomo do parentesco) que remexe com as identidades antigas,
mas em forma de substituição conflituosa que também reactiva essas velhas
identidades estruturais, e as torna resistentes, em ordem a estabelecer, face
ao que, como modernidade, de fora lhes vem, uma
espécie de soberania civil, digamos, que lhes permita sobreviver como tecido
social e histórico.
10. Ora, esta
difícil mas decisiva questão é fundamental em todas as sociedades destes
segundo e terceiro Mundos: elas só são viáveis enquanto sociedades com um
mínimo de autonomia ou de soberania (por definição mesma de sociedade), e
estas formas de nacionalismo são a condição necessária, embora conflituosa, da
sua modernização. Neste sentido, obviamente que o caso mais dramático é o dos
países africanos. Mas para todos eles, há um factor perverso. É que o que mais
tem contribuido para acelerar o processo é a janela aberta sobre as sociedades
ocidentais que as televisões, como técnica, é claro, lhes oferecem, a
acicatar-lhes os desejos de serem 'como nós'. Ora, os mais sensíveis a esse
aguilhão são as elites desses países e é muito difícil evitar que, a distância
sendo muita e os desejos individuais sobremaneira, tais elites resistam à
tentação de se modernizarem elas, e não as massas (que demorará muito mais
tempo: o tempo da escolarização que permita a rêde de instituições sem as quais
não há democracia). Donde a corrupção dessas elites, que se conjuga com os
interesses a curto prazo dos que lhes exportam tecnologias. A história de
Collor de Mello é elucidativa, ainda que nos congratulemos com a solução
democrática conseguida: é difícil de avaliar os efeitos nefastos que ela teve
sobre o processo de modernização democrática, isto é para todos os brasileiros.
Os efeitos sobre a esperança.
O anarquismo civilizado
11. Mas o
descalabro também incide sobre as sociedades ocidentais, e a violência de Los
Angeles e da Alemanha xenófoba também tem uma componente técnica, cujas razões
não são essencialmente diferentes das já aduzidas. Por um lado, o luxo
ocidental atrai os emigrantes das sociedades de miséria e cria o paiol. Por
outro, o carácter disseminante da técnica, a sua sempre maior expansão sem
nenhuma perspectiva de globalidade, a sua capacidade de melhorar os níveis de
consumo e o seu acompanhamento por um discurso de imagens de sedução e
incitação aos desejos de consumir, a publicidade agressiva, leva a distorsões
terríveis (Reagan e Tatcher são os seus emblemas) enriquecendo uns e
empobrecendo outros, impedindo ainda que massas dos mais pobres possam ser
escolarizados convenientemente para poderem, mediante empregos que não há,
aceder ao consumo. Donde a inevitável tentação à violência, com meios
sofisticados que ainda a técnica lhes oferece: não é preciso ir à escola para
os saber usar (basta ver filmes), nem os que os fabricam têm o menor interesse
em saber como serão utilizados, apenas que se vendam. No limite, um rico fabricante
de metralha-doras pode ser morto por uma metralhadora da sua marca, como John
Lennon poude ser morto só por aparecer muitas vezes na televisão. As redes de
droga obedecem à mesma lógica disseminante, etc. E a dominação da técnica que
diagnosticou Heidegger impede que haja meios globais, quer ideológicos, quer
políticos ou mesmo policiais, para defesa das sociedades assim ameaçadas. É o
triunfo, inesperado, do anarquismo não ideológico, quando as ideologias se vão.
12. Espero que o
leitor apressado não leia este texto como um discurso contra a técnica ou a
favor das religiões e dos nacionalismos. Deverei apenas dizer que o elogio
liberal do mercado como devendo, ele só, resolver os problemas da nossa
civilização é a maior cegueira intelectual do nosso tempo, aquela de que dão
mostra os que, crendo-se intelectuais e constatando-se impotentes, diagnosticam
a morte dos intelectuais. Infelizmente, não estaremos à altura deste tremendo
desafio, mas que falta os intelectuais não fazem! Clinton, convocando-os, dá-se
conta disso.
13. É este um
texto triste, não adequado à quadra do Natal. Que podemos esperar? Por certo,
não haverá saída sem a técnica: "donde o perigo, também cresce o que
salva", dizia Holderlin citado por Heidegger. O que não sabemos - o que o
pensador alemão procurava antever sob o termo de Ereignis (Acontecimento em
alemão) - é o que, com a técnica, há que haver a mais.
[1] Este texto tem vários pressupostos que não são habituais, e que
tento explicitar num livro a publicar, quando a crise do mercado editorial o
permitir, Da Grécia à Europa, civilização, filosofia, economia. Tratei pela primeira vez de questões afins no capítulo "Crise
e metamorfose da civilização" de Linguagem e Filosofia, algumas
questões para hoje, INCM, 1987.
[2] Essa substituição é correlativa de uma outra: a da rêde das casas como economia agrícola e pecuária, artesanato, etc., pela rêde de
instituições empresariais que caracteriza a economia moderna, reduzindo
drasticamente as funções de antanho do parentesco à família pulverizada e em
crise do nosso tempo. Era do parentesco que dependiam as formas religiosas.
[3] Começa-se a entender hoje que o que o marxismo não soube é que
técnica e mercado capitalista são indissociáveis. O que todavia hoje ninguém
sabe é o tipo de Estado e de direito que hão-de corresponder ao regime de dominação
planetária
da técnica. Actualmente parece que a democracia só funciona eficazmente
em termos de nações.