1. A insensibilidade à ‘coisa
pública’ (em latim ‘res publica’), revelada na proposta do que fazer da RTP por
alguém com um currículo invejável de financeiro lá fora, sugere que há aqui um
problema que não é o de ser-se ‘inteligente’, ‘competente’ na sua disciplina,
mas um problema que tem a ver com as “ciências económicas e financeiras”.
Thomas Kuhn ensinou-nos que o paradigma duma ciência normal faz disciplinar o olhar dos seus praticantes, aquilo
que eles vêem e aquilo que eles não vêem, mas Abel Salazar ia mais longe: “dum
médico que só sabe medicina, podes estar certo de que nem medicina sabe”, o que
transposto dá: “dum economista que só sabe economia, podes estar certo de que
nem economia sabe”. A questão é pois mais geral, percebeu-se já quando foi da
comparação entre trabalhadores privados e públicos, estes com mais garantia de
estabilidade de emprego do que aqueles, donde não haver grande injustiça nos cortes
que os atingem, discussão puramente economicista em que nunca se perguntava
qual era a função da função pública que tais diferenças justificariam, como só
se tratasse de comparar trabalhadores, empregos.
2. Não sendo jurista, proponho abordar esta
questão em termos de economia política. Nos anos 60 e 70 do século passado, a
palavra chave do progresso era a de produtividade, que se referia à produção e tinha a ver com a
diminuição do seu tempo sem perca ou até com melhoria da qualidade do produto:
digamos que era um termo de engenheiro, tinha a ver com o que se passava
adentro das fábricas, e a qualidade dos produtos, que a publicidade anunciava, visava os que os compravam,
obrigava os engenheiros a ter em vista os usos desses produtos. Esta correlação
entre produtores e consumidores concretizou-se na espantosa ascensão social que
se deu das classes médias – que produziam e consumiam –, que então cresceram e
hoje são despojadas do nível de vida alcançado. Essa palavra foi substituída
por outra hoje dominante, a de competitividade, palavra de economista, já que visa o mercado
como competição entre adversários cujos números se quer ultrapassar, tal como
no desporto, por exemplo, com suas regras e árbitros. E o problema é que justamente
estes números reduzem a
qualidade (é a eficiência deles e
o seu limite), quer a dos produtos, quer a dos que produzem e a dos que os consomem:
para as empresas de hoje pouco importa o ramo desde que seja negócio que dê
lucro.
3. Esta palavra competitividade ajuda a perceber a diferença entre o que se exige
a quem trabalha na competição privada e a quem trabalha na coisa pública. Estes
pertencem a um corpo ‘público’, com vários órgãos e diferentes escalões, que
legisla e regula a competição privada; basta referir um dos problemas
político-jurídicos maiores, o da corrupção por interesses ‘privados’, para se
perceber que há uma exigência ética, além de profissional, que incide sobre
estes ‘funcionários públicos’ e que justifica em grande parte, quero crer, a
estabilidade de emprego: se estiverem sempre a mudar, não haverá administração
pública com um mínimo de estabilidade.
4. Pode-se então colocar a questão do “serviço
público”, ou do “sector público” (na Constituição) de televisão e rádio. O que
um economista parece ter dificuldade em compreender é que as rádios e
televisões são hoje financiadas duma forma perversa, dependente da
‘publicidade’ pela qual os interesses ‘privados’ querem chegar às assistências,
aos ‘públicos’ num outro sentido da palavra, e como essa necessidade obriga
televisões e rádios a destinarem-se cada vez mais às maiorias, às massas, como
dizem os Americanos mass media, a banalizarem os seus ‘produtos’. Trabalhar aí, se se é gente criativa,
implica lutar contra a corrente, que lhes pede só o que seja fácil, atractivo,
traga espectadores quantos mais melhor. Vendo apenas regularmente o telejornal
da RTP2 e ocasionalmente documentários ou debates políticos, não tenho
competência para dizer em que é que deve consistir um serviço público de
televisão, que parece não interessar os economistas, que devem julgar que se trata
de ‘conteúdos’ a encaixar nos de rotina televisiva. Mas como tem dito quem é
especialista destas áreas (por exemplo, o jurista professor do ISCTE J. P.
Figueiredo, “RTP: Privatizar ou não privatizar, eis as questões”, Público 25/08, uma súmula informada das principais
questões), percebe-se claramente que se trata de ter uma gestão de serviço
público em toda a programação,
atenta à elevação educativa (Adelino Gomes, Público 01/09), até em programas de entretenimento
infantil (Mª Emília Brederode Santos, Público 28/08), tanto mais necessária quanto vivemos em
época de fortes especializações e toda a gente, economistas incluídos, precisam
de se cultivar, já que cada vez se lêem menos livros e jornais de referência,
como se sabe. Trata-se pois de fazer o que as empresas privadas não fazem, ou
pouco. O que significa que a responsabilidade política aqui é ter o maior
dos cuidados em quem é nomeado para a RTP pública: não apenas um gestor de finanças, que também é
preciso, mas sobretudo um gestor de televisão, não apenas um ‘economista’ que
compita com as outras televisões mas sobretudo um ‘engenheiro’ que cuide da
qualidade televisiva, como foram João Soares Louro e Fernando Lopes, de boa
memória.
P. S. – um pequeno argumento economicista: que não
haja nenhuma televisão generalista que se tenha candidatado à transmissão dos
jogos de futebol da 1ª Liga, não é indicativo de como o mercado publicitário
está saturado e é extremamente arriscado querer alterá-lo radicalmente?
Aprendizes de feiticeiro...
Público, 9/9/2012
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