domingo, 23 de dezembro de 2012

A Internet e os livros que contam

1. O livro de Nicholas Carr, Os Superficiais. O que a Internet está a fazer aos nossos cérebros, Gradiva, é o diagnóstico autobiográfico duma mutação de civilização. Como diz André Belo, “é um ensaio que denuncia as consequências negativas para a memória e o cérebro humanos da exposição excessiva, no trabalho intelectual, à Web e a tudo o que nos liga à Internet via computador, telemóvel, leitor de livro digital ou tablet. Elas traduzem-se, segundo o autor, na tendência para a dificuldade de concentração, na dispersão mental e no enraizamento do 'multitasking' como hábito intelectual. Essas consequências dão o título ao livro: superficial (shallow) é a leitura e a memória que resulta da hegemonia crescente da grande rede mundial de computadores na nossa maneira de trabalhar com o cérebro”. Destinado a quem acontece regularmente “usar uma técnica de leitura dos textos que consiste em fazer uma espécie de scan da página com os olhos, percorrendo rapidamente só as duas ou três primeiras linhas de texto, para descer ao parágrafo abaixo e fazer o mesmo travelling da esquerda para a direita para ver qual é o assunto seguinte, voltar a descer verticalmente ao longo da página, desenhando com os olhos um movimento parecido com um 'F', a quem de um modo geral, tem dificuldade em fechar o navegador, o FaceBook, o Messenger ou o email para se concentrar enfim no tal trabalho inadiável ou se ainda, em momentos de maior alienação, clica num link, aterra num site, e pergunta-se: "mas de que raio estava eu à procura antes de vir parar aqui?”.
2. Muito interessante. O que se diz da Internet vale também da alternativa entre ler livros ou revistas especializadas e jornais, entre ler jornais de referência com comentadores qualificados e só ver telejornais. Dizia René Thom, matemático da teoria das catástrofes, sobre a sua maneira de trabalhar que precisava de cerca de 4 horas para entrar na sua matéria, mas conseguido isso, nada o podia já distrair. É o outro extremo do internetista segundo Carr. Como escreve ainda A. Belo, “é nesta contraposição cognitiva entre a leitura linear induzida pelos livros e a leitura constantemente interrompida da Internet que o livro de N. Carr é particularmente persuasivo”.
3. O Expresso dedicou uma coluna de recensão ao livro (15/12/12), bastante ‘superficial’, no sentido do título, e cortou uma parte importante da carta que lhe enviei (22/12) a que, já agora que não tenho constrangimentos de espaço, acrescento uns pontos. Mutação de civilização, a da crise do livro que tanto tem sido falada, crise que como que encerra a época do humanismo: este, como salientava Sloterdijk, resultou de vários séculos de leitores, entre o XVI e o XX, guiarem os caminhos dos Europeus para a liberdade, a finitude, a cidadania, até se chegar à democracia. Foram sempre minoritários, é certo; os livros de pensamento que deveras contaram nesses tempos, poucos os liam, mas transmitiam-nos a uma população mais geral, duma maneira ou outra, e nomeadamente instituíram esse saber nas escolas. O que será a novidade hoje, é que esses leitores divulgadores, que continuam a ser uma minoria, pejorativamente ditos ‘intelectuais’, deixaram de ser ouvidos fora da sua tribo. Quem não conhece licenciados em direito e em economia que não lêem livros? A internet continua a leitura, mas impede-a também, que há leituras e leituras,  livros e livros, os que se perdem são os 'difíceis'.
4. Carr explica, da sua própria experiência e de amigos e colegas da suageração, a do babys boom,  que os hábitos de ler saltitando na Net - a Google ganha dinheiro  em publicidade a cada 'clic' que nós fazemos - lhes trouxeram a incapacidade de ler um livro por inteiro e a dispersão ao fim da segunda página de leitura, perderam o poder de se concentrar numa leitura seguida. Não sei quais serão as incidências desta mutação de civilização, da marginalização dos intelectuais e dos livros. É certo que  eles podem  conviver entre eles, lerem-se uns aos outros, mas há que dizer que também os interesses aqui são tão dispersos, que, apesar da Internet ser uma imensa facilitação, a coisa não está ganha sem mais. 
5. A ‘superficialidade’ da recenseadora manifesta-se na maneira como termina: "se ele próprio conseguiu escrever 326 páginas sobre isso, talvez ainda haja esperança"; o que significa obviamente que saltou as três páginas perto do fim em que ele conta como, para redigir o livro, teve que, ao fim de alguns meses de fracasso,  recorrer a medidas radicais: deixar Boston onde vivia bem conectado para as montanhas rochosas do Colorado, sem rede de telemóvel e com fraca Internet, largar as assinaturas dos Facebook e companhia, reduzir a consulta dos mails a uma só vez por dia e mesmo assim levou largos meses para se desintoxicar, até ser enfim de novo capaz de ler um texto científico sem divagar e de escrever horas a fio. E confessa que, uma vez acabado, reincidiu na doença.
6. Ou seja, o que resulta na prática deste diagnóstico autobiográfico em forma de drama, como chamada importante de atenção, é algo de parecido com as disciplinas de desintoxicação do álcool ou drogas equivalentes: a Internet é para ser tomada com conta, peso e medida. Para se ser intelectualmente capaz nas nossas actividades profissionais, temos que ler livros habitualmente, uns mais, outros menos, mas a leitura de bons livros é essencial à saúde intelectual. À gente nova, é de aconselhar também terem ‘tutores culturais’ que ajudem a beneficiar dos tesouros culturais de todo o género que hoje nos são postos à disposição nesta maravilhosa Teia, como os professores nos ajudam a saber utilizar bibliotecas onde há muitos milhares de livros.

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