terça-feira, 13 de novembro de 2012

Limites ontoteológicos da Psicanálise, que ela todavia transgride


O que é isso de ontoteologia?
1. Terei que o dizer rapidamente, porque não é óbvio que se saiba, tal como Mr. Jourdain não sabia que fazia prosa. Desenhada por Heidegger a partir da sua posição de ser no mundo, a ontoteologia é toda a filosofia ocidental desde Platão e Aristóteles, isto é, toda a filosofia que foi aberta (e que bem não foi!) pela invenção da definição por Sócrates e sua escola. Ela arranca o que é definido ao seu contexto, ao seu mundo, destacando-lhe o seu eidos, a sua essência, mas também o definidor é arrancado enquanto conhecedor de tais definidos, definido como alma, e na Europa pós-cartesiana como sujeito ou consciência, a que, por via da segunda grande invenção ocidental, a do laboratório científico, se veio opor o objecto, por assim dizer, objecção ao paradigma do sujeito que procura conhecer. ‘Onto’ é poir o predomínio filosófico do ‘ente’. E porquê ‘teo’? Vem do gesto platónico da definição do ‘eidos’ celeste e imutável que a ‘alma’ conheceu aquando da sua estadia fora do corpo: esta primeira ontoteologia consiste na relação entre o Eidos celeste definido e as coisas terrestres correspondentes, relação essa inscrita na diferença entre o Céu e a Terra. O gesto da Physica de Aristóteles, de trazer as essências às respectivas coisas, a ousia sendo, primária, a ‘substância’ da dita coisa e, secundária, a sua ‘essência’, anulou essa diferença abissal nas ousiai assim arrancadas ao seu mundo, mas a maneira como a filosofia platónica de Orígenes, na Alexandria dos inícios do século III, se apoderou do discurso cristão, colocou-a de novo, criando uma figura divina feita da mistura de duas figuras celestes – o Deus autárcico grego (primeiro o do Timeu, depois o Um neoplatónico e mais tarde o Primeiro Motor aristotélico) e o Deus hebraico – criando-se assim uma figura ignorada dos Gregos, a de um Deus que conhece cada humano, cada passarinho, cada flor do campo: a ontoteologia será doravante plasmada nessa relação entre o Criador e a sua criatura. Agostinho, Occam, Lutero, Descartes, Leibniz, são dos pensadores mais importantes na colocação da estrutura cristã Deus / alma, que Hume e o newtoniano Kant desfizeram substituindo esta pelo sujeito virado para o mundo, sujeito / objecto que prevaleceu até hoje, sempre em torno da operação filosófica da definição e da experimentação científica em laboratório: assim se reformulou a ontoteologia em termos de filosofia do conhecimento. Em resumo, esta consistiu sempre, com grande variabilidade de posições segundo os pensadores e as épocas, na não consideração do movimento, e portanto do tempo, nem do contexto, no privilégio da relação ‘vertical’ das essências e conceitos sobreposta à consideração ‘horizontal’ do movimento da natureza e do da história[1]. Ora esta começa a afirmar-se ao longo do século XIX em que várias ciências – paleontologia e biologia, linguística, economia, história, filologia dos textos antigos – colocam a evolução e a história no seu coração, donde que, já antes da essencial temporalidade do ser no mundo heideggeriano, a alteração maior deste paradigma metafísico tenha sido devida a Marx, herege de Hegel, depois havendo Darwin, Nietzsche e Freud, como trabalhando todos – mais ou menos, que nestas coisas nunca nada é de vez – já em boa parte nas bordas dessa tão tenaz metafísica que, antes de podermos dar por isso, a todos nos impregnou nas diversas disciplinas do liceu, tanto científicas como literárias ou mesmo filosóficas.
2. Se pois Freud lhe transgrediu os limites, como tentarei sugerir através dos motivos que aqui nos convocam, foi todavia usando conceitos ontoteológicos, mormente centrado no de ‘consciência’, visível naquilo a que Rickman chamou uma “one-body psychology”[2], expressão que esclarece de maneira muito clara que não é só a noção de ‘consciência’ que está em causa, com a ‘alma’ no substrato, mas também a de ‘corpo’, que a muita gente parece mais ‘materialista’ do que ‘alma’, mas que na tradição joga em oposição a ela, o que significa (Derrida explicou-me isso na primeira vez em que pude conversar com ele, há quase trinta anos) que quando falamos em ‘corpo’, a ‘alma’ também vem, que ambos foram arrancados do mundo pela definição e não se largam. O que é muito claro que é a lacuna maior do paradigma da neurologia, como tentei sugerir numa leitura do excelente livro de A. Damásio, O livro da Consciência em português, excelência que justamente pede que se acrescente o ‘mundo’ como contexto ao ‘cérebro’ que ele descreve minuciosamente tendo em conta a evolução anatómica desde os protozoários; sendo também uma one-body neurology, deverá alargar o seu domínio de descrição de maneira a ter em conta o que se aprendeu, isto é, ter em conta que o cérebro é um órgão simultaneamente biológico e social. Se lhe faço alusão aqui, é para poder daqui a pouco beneficiar do que os neurólogos nos ensinaram (além de Damásio, Changeux e Vincent nomeadamente): com efeito, os motivos de ‘afecto, pulsão e inconsciente’ reenviam em parte ao motivo biológico das hormonas e dos neurotransmissores, estes quimicamente equivalentes àquelas mas jogando no sistema das sinapses neuronais em dimensão mínima, química que intervém nos efeitos dos grafos (J.-P. Changeux, O homem neuronal) que a aprendizagem inscreve nesse sistema, grafos que relevam assim da tribo aonde se nasceu e cresceu. Ora, sucede que o neurólogo está limitado laboratorialmente no acesso a estes grafos, já que, como Damásio sublinhou esplendidamente no seu livro, do que se ‘passa’, se ‘faz’ ou ‘acontece’ nos neurónios só o próprio sabe, dor, impressão ou consciência de: é a este acesso exclusivo ao que se efectua nos neurónios enquanto sua função biológica essencial, a sua internalidade, se dizer se pode, que o autor chama mente. O neurólogo dela não sabe  senão o que o seu paciente lhe disser, engane-se ou não, ou mesmo enganando-o. Já M. Jouvet (O sono e o sonho) o tinha esclarecido sem se dar conta: nas suas investigações sobre os sonhos, tinha sempre que acordar o paciente e perguntar-lhe se estava a sonhar, e se sim, a sonhar o quê. Ora, os sonhos são a matéria de eleição da psicanálise freudiana e se esta procurou explicar o que entendia no divã recorrendo a termos evocando energias nomeadamente (estes que aqui nos reúnem fazem parte deles), também teve que arrepiar caminho – entre o  Esboço de psicologia científica e a Interpretação dos sonhos, entre 1895 e 1899 – e renunciar a ligar o que de neurologia se ia sabendo ao que estava investigando. Do ponto de vista das respectivas metodologias, neurologia e psicanálise são irredutíveis, como o laboratório daquela o é ao divã desta e vice-versa.
3. Seja uma lista de exemplos filosóficos e científicos de predomínios ontoteológicos, como o da definida essência sobre o contexto donde foi retirada. O ente predomina sobre o Ser que o dá (seja a phusis, o mundo, o social); o planeta sobre o campo  das forças da gravidade; o indivíduo, vegetal ou animal, sobre a sua espécie, esta sobre o seu género, o indivíduo biológico sobre a lei da selva, o cérebro biológico dos humanos sobre a tribo que o instituiu, inscrevendo nele os seus usos; o indivíduo humano sobre a sua família e sociedade (que não existe, dizia M. Thatcher); a palavra sobre a frase, esta sobre o texto (de que é parte), este sobre o contexto que o produziu e de que se destacou. Como se a configuração Deus / alma / definição fosse o pólo solar, monoteísta, que ilumina cada ente, o elucida, esquecendo o campo ‘terrestre’ que o dá, o que Heidegger chamará Ereignis no final da sua obra: o ‘vertical’ predominando sobre o ‘horizontal’.
4. Em vez do motivo do afecto, seja a seguinte citação de J. Derrida: “a auto-afectação é uma estrutura universal da experiência. Qualquer vivo é capaz de auto-afectação. E só um ser capaz de se auto-afectar, pode deixar-se afectar pelo outro em geral. [...] Esta possibilidade – outro nome da ‘vida’ – é uma estrutura geral articulada pela história da vida e dando lugar a operações complexas e hierarquizadas” (De la Grammatologie, Minuit, 1967, p. 236). Só válida para os animais e não para as plantas, esta capacidade do ser vivo permite caracterizar os neurónios como as células que sofrem e fazem ‘afectação’ umas sobre as outras, formando uma grande rede de auto-afectação, e também de hetero-afectação por outros vivos na cena ecológica, como presas possíveis, predadores de que se foge, eventuais aliados. Auto-afectação é indissociável de hetero-afectação, a consciência de si em geral indissociável de o humano ser no mundo com outrem. Uma breve lista de afectos[3] assinala-o bem: começando pela angústia, “uma experiência de desmoronamento radical das escoras subjectivas” (p. 163), continua-se com o amor, ódio, ignorância, fúria / ciúme e inveja, depressão / luto e tristeza, alegria e mania, culpa / temor e piedade, entre outros. E, citando Lacan, "não devemos tomá-lo (o afecto) como substantivo, mas sim fazê-lo passar ao verbo" (p. 234), auto-afectar-se ou ser auto-afectado e ser hetero-afectado; o que implica a indissociabilidade entre a passividade das duas últimas formas verbais e a actividade da primeira. Ora é esta indissociabilidade – entre ‘ser-se afectado’ e ‘afectar’ – que a ontoteologia dissocia, entre o que se recebe do Outro, da tribo, e o que se lhe responde.
5. Tentarei articular a descoberta psicanalítica com questões elementares de biologia e antropologia, que nos servirão de ‘contexto’, por assim dizer, ao que em Freud segue a interpretação dos discursos no divã. Um mamífero é composto de quatro sistemas: a) o da circulação do sangue que vai a todas as células do organismo fornecer moléculas de nutrientes e de oxigénio para o seu metabolismo incessante; b) o do sistema digestivo e respiratório que carrega o sangue com essas moléculas[4]; c) o do sistema de mobilidade, órgãos perceptivos, cérebro neuronal e músculos de locomoção, que busca na cena ecológica o que comer e beber para essa digestão, além de procurar escapar a ser presa de outros; d) o sistema sexual, que busca a reprodução da espécie e não do indivíduo como os outros três, mas que nos mamíferos se veio inscrever parcialmente na anatomia feminina de forma inovadora, com periodicidade comandada pelo cio das fêmeas que desapareceu nas humanas, permanecendo as suas pulsões susceptíveis de irromper a qualquer momento. Tentar-se-á agora sugerir como é que estes quatro sistemas jogam na longa passagem do feto humano, ser no ventre materno, ao adulto, ser no mundo da sua tribo. No feto, apenas o primeiro sistema funciona, o sangue dele sendo carregado directamente pelo sangue da mãe através do cordão umbilical: pode-se pensar que se trata do tempo mais propício ao domínio do que Freud chamou o princípio do prazer. Com o corte do dito cordão no parto, os sistemas digestivo e respiratório entram imediatamente em funções, introduzindo-se um ritmo de oscilação entre a dor da fome e o prazer da sua saciedade, sem que o bebé possa fazer outra coisa do que chorar, impotência que durará o tempo suficiente para a organização da economia pulsional, nomeadamente durante o período de latência a que porá fim a puberdade, assinalando a entrada do sistema sexual. Este longo período, que vai desde o desmame e das primeiras autonomias, de andar, mexer e falar, é o da estruturação do sistema da mobilidade pela aprendizagem dos usos tribais, que farão entrar lentamente a criança no paradigma dos outros, retirando-a do seio materno dos primeiros tempos e reelaborando o domínio do princípio do prazer que terá que compor cada vez mais com o princípio da realidade, cuja lei paterna lhe é imposta progressivamente. Arrancado ao prazer do seio materno pela dor que implicam as tentativas de qualquer aprendizagem, esta necessitará de estriturar a energia, no que será sem dúvida o início do processo de recalcamento e de sublimação: poder-se-á encontrar o índice desta na aquisição da habilidade espontânea do novo uso, onde princípio de prazer e da realidade revelam um novo tipo de ritmos entre eles, em que a passividade da aprendizagem exibe o aprendido que se inscreveu como actividade energeticamente fecundada, sublimada. Em jogos, em fala, em corridas e outras habilidades.
6. Seja o processo da aprendizagem dos usos da tribo ao longo do crescimento e mesmo ao longo de toda a vida. Aprender é obviamente receber de quem nos ensina o que não sabemos, é pois uma passividade, mas o que assim se recebe de outrem ‘prende’-nos enquanto capazes doravante de fazer activamente o que se aprendeu, o que dantes se não sabia. O que vem torna activo o que era passivo, o que chamamos no calão filosófico europeu ‘sujeito’ é instituído como tal pelo que se aprende, como aliás as etimologias sugerem: os chamados ‘objectos’ fazem ob-jecção, são obstáculos aos que a recebem como sub-jecção. Há aqui obviamente mais do que apenas ‘afectação’ da cria mamífera que se vai sendo instituída como filho/a dos humanos. A aprendizagem da linguagem é ainda mais patente, já que por ela, o/a in-fans, o/a que ainda não tem fala, ganha a sua voz que lhe permite fazer o seu discurso com as mesmas regras linguísticas, por vezes bem retorcidas, com que falam os que lhe ensinam e lhe corrigem os desvios. Coisa esta de grande espanto, se se tem em conta que é segundo essas regras linguísticas que se pensa no seu foro interior, que se resolve e decide, se esconde a indecisão ou a angústia, os segredos mais íntimos: nesta passividade face ao tribal que dá a actividade mais pessoal, neste ‘eu’ que de ‘tus’ se gera, reside o enigma maior da condição humana, raiz do que chamamos e apreciamos acima de tudo como liberdade, que é assim possível colocar fora da oposição alma / corpo ou sujeito / objecto. É este enigma, tanto para o próprio paciente como para o psicanalista, que é indagado por ambos nas sessões laboratoriais do divã.

A teoria das pulsões à luz da antropologia
6. Uma maneira de dizer o que Freud nos ensinou : como é que é possível a aprendizagem, de tal maneira que nós façamos espontaneamente uma data de coisas socialmente necessárias e que as façamos à maneira da nossa tribo ? Como é que a nossa tribo nos fez para nós agirmos assim, livremente, por nós mesmos, sem nos sentirmos obrigados ? Se partirmos das pulsões de origem hormonal – impulsos mais ou menos fortes, desestabilizadores, que nos sucedem de vez em quando –, como é que elas se estabilizam, de maneira a não ficarmos seus joguetes, por um lado, e por outro a aproveitar a sua energia para outros fins, acima da biologia, mais ‘sublimes’ ? Como é que há sublimação, que das regras da língua tribal faz o ‘nosso’ pensamento, lubrificado pulsionalmente por prazer e dor ?[5] Que ciência haverá para estas questões além da psicanálise ? A difícil questão é a de saber articular o que de Freud aprendemos com uma antropologia tribal elementar, de maneira por um lado a evitarmos o dualismo e respectivas representações na descrição evocativa e por outro a compreendermos também que esse dualismo tenha vingado tão fortemente na nossa tradição[6]. O que aqui farei tem sem dúvida o motivo do ser no mundo como pressuposto mas também a consideração da linguagem[7]: a psicanálise como uma semiótica experimental do discurso neurótico em relação à energia sexual humana no seu laço à lei social, tem em conta também algumas correlações possíveis dos motivos freudianos com a neurologia, como por exemplo ‘pulsão’ com o hormonal.
7. Não sendo necessário recordar a teoria freudiana das pulsões, é importante sublinhar como a distinção, na primeira tópica, entre dois tipos de pulsão, umas de autoconservação, como a fome ou a sede, e as outras ditas sexuais, insistia em que estas na época infantil se escoravam naquelas. Digamos que o bébé que acaba de nascer não é senão um ventre-pele, um ventre cuja pele banhou no calor do líquido amniótico, que sem dúvida não gostou nada da expulsão, que sente a pulsão de fome (dor) e chora, o seio da mãe trazendo-lhe a saciedade (prazer). Isto repete-se durante meses, este ritmo inscreve-se nele. O desmame será um novo golpe, após o do parto : ele re-marca neste ‘ventre-pele’ uma zona de prazer oral, ligada à sucção do seio materno, ao gesto e ao sabor, que, na próxima chamada de fome repetirá o seu prazer chuchando o dedo, sem seio nem gesto da mãe portanto, mas que não é possível senão pela ligação à sua marca, que o desmame, que é um uso antropológico, acentuou. De maneira semelhante, meses mais tarde, uma zona de prazer anal será re-marcada pela higiene de defecação, pelo uso social de reter os excrementos, em tensão até ao momento do alívio. O ventre-pele é assim duplamente remarcado, em cima e em baixo, a criança é incitada a pôr-se de pé e a falar, para o que terá que aprender a jogar com dois esfincteres, os músculos em anel da glote e do ânus (Fonagy), a inscrever assim a sua fala nos dois extremos do tubo digestivo, nessas duas zonas erógenas remarcadas. Ganha um princípio de verticalidade, de autonomia. Ele não se vê, são os outros que lhe servem de espelho (Lacan) e que produzem nele as ‘imago’ que lhe servirão de identificação[8], produção da sua imagem de si a partir da amálgama das imagens dos que o rodeiam. O Ego seria um conjunto de imagens de outrem (gente retirada), como os seus sonhos testemunham, e que fala.
8. Como é que isto sucede ? A sucção do seio e o seu prazer, depois da boca ter chorado muito, é uma cena simultaneamente fantasmática e real, indiscernivelmente biológica e antropológica, já diferente em relação ao ventre-pele. É o desmame, remarcando mais duramente e suscitando, numa espécie de resistência, a sucção do dedo, que impõe o deslocamento  para o dedo ou a chucha do ‘fantasma’ de prazer (fantasma : a boca no seio materno) aquando da abolição do gesto ‘real’ da mãe de dar o seio. O que a repetição deste gesto tinha ligado (como zona erógena) é desligado (substituição pelo alimento com colher) : o dedo ou a chucha em suplemento do seio permanecem ligados fantasmaticamente a este, agora sem a dependência da mãe, no que diz respeito ao prazer (a dependência continuando, é claro, no que diz respeito à satisfação das pulsões de fome e sede). Foi assim aberto um outro lugar para as pulsões, que as pode tornar fantasmáticas, isto é, sem fonte orgânica e não precisando de outrem para se aliviar, cujo prazer poderá vir a deslocar-se, do dedo a outros gestos, o de falar, o de beijar…, com o que a escoragem anti-dualista das pulsões eróticas sobre as de auto-reprodução se desfez. “Pulsões parciais”, diz Freud, como estas, e outras sem dúvida também, serão retomadas na puberdade pelas pulsões genitais, com fonte orgânica mas pluralidade de desejos ‘sem órgão’ e com alvos diversos de que farão o seu manancial, enxertando-se neles “après-coup” (Nachträglichkeit) de tal maneira que, nos sonhos e nas associações de ideias no divã psicanalítico, a sexualidade genital (ou outra talvez) dir-se-á como sendo infantil, arcaica. Foi nisso que, com efeito, ela se tornou tardiamente, “après-coup”. “A irredutibilidade do ‘atrasadamente’ (à-retardement) é sem dúvida a descoberta de Freud”, escreveu Derrida[9]. É o motivo da regressão : vai-se e vem-se no nosso passado, como nos sonhos. O que foi outrora abolido, recalcado nos termos de Freud, atrai o que, posterior, se aproxima demais e como que lhe faz ocupar um lugar aberto muito tempo antes, o ‘posterior’ vem-se colocar em posição arcaica. Para o profano que eu sou, é o ponto da grande sedução, senão inveja, do psicanalista, que saiba apanhar a boleia do sonho e ir, com o paciente, a esse passado que nunca foi presente, ajudar a desfazer os nós que doem, como se fosse um cirurgião do psiquismo. O ‘après-coup’, o atrasadamente, é esta maneira extraordinária de construir um edifício oscilante que, à medida que cresce em altura e ganha peso, reforça em simultâneo os seus inicialmente modestos fundamentos arcaicos. À maneira duma árvore, digamos, cujos tronco subterrâneo e suas raízes se vão enterrando à medida que o tronco do ar e seus ramos sobem para o alto céu. Sublimação ou entropia para as alturas, possibilidade inaudita de regressão para o arcaico, eis a grande amplidão da nossa condição oscilante.
9. Recapitulemos. O ventre-pele ganhou um peito – a respiração do bébé que se assenta, que gatinha, que se põe de pé, que começa a falar e é auto-afectado por essa voz ganhando consciência de si –, uma cabeça que vê para manipular coisas, andar e procurar os seus alvos, o ventre-pele foi posto / pôs-se de pé. Mas permanece um anãozinho diante de gigantes, que têm com eles a força e a autoridade : o pulsional no entanto levá-lo-á a opor-se-lhes, a dizer-lhes ‘não quero’, ‘quero isto’, a fugir-lhes e a esconder-se, a dissimular-se e a descobrir astúcias pertinentes, razão que emerge lentamente com a arte de compor discursos. Se olharmos do lado da antropologia do sistema familiar, é a integração progressiva nele (andar, mexer, falar) que arranca a criança ao seu comércio primitivo com a mãe, de quem começou por ser um órgão a mais no útero : esta integração repete, mais lentamente, a primeira separação, a do parto, esta palavra nossa dizendo o que se aparta de ser ‘parte’ e aparece. Crescer é aparecer, deixar de ser parte de, fazer prova de pertinência e de competência. Em terminologia heideggeriana, vai deixando de ser um ser-no-seio-da-mãe para vir a ser um ser-no-mundo, a aprender-lhe os usos, cada um que aprende o tornando outro, com a autonomia da habilidade e do talento, e mais se separando da mãe de origem, ganhando o nome que lhe deram como seu nome próprio. É este processo inexorável de deslocamento antropológico que interdita o incesto, que instaura a lei social. É ele que produz o dito recalcamento, lentamente, não duma só vez, que irá ganhando força, como, dizia atrás, a árvore que cresce e com ela o tronco subterrâneo. Alguns incidentes familiares deste processo prestam-se a uma configuração edipiana, as suas marcas remarcar-se-ão por outros acontecimentos – sobredeterminações, dizia Freud, que tornam possível a regressão –, voltarão nos ditos e não ditos no divã, com o ar dum passado penosamente vivido. Dito de outra maneira : este processo de aprendizagem implica dele mesmo, enigmaticamente, o esquecimento (quase) absoluto daqueles de quem se aprende, de que não ficam senão vestígios oníricos : é este esquecimento que a consciência em análise ressente como um recalcamento muito doloroso, como se fora arrancado a ferros[10].
10. Não há pulsão ‘pura’ – a pureza sendo ‘interior’ na tradição filosófica europeia –, marcada na sua definição por aquilo que Freud chamou, desajeitadamente aliás, ‘objecto’, instância irredutivelmente ‘exterior’. As pulsões sucedem-se através da memória das dores / prazeres anteriores, pedem sempre já a satisfação que só virá mais tarde : dor, pede a repetição da sequência (dor)-satisfação que a apague. Ora, de cada vez que a dor é assim aliviada como prazer pela intervenção do outro (pessoa, gesto, coisa, ‘o objecto’ de Freud), este inscreve-se, é ligado à memória dos que já tinham aliviado; a próxima pulsão terá pois um outro a mais no caminho que ela repete, a repetição será modificada por um acrescento, com as condensações e deslocamentos correlativos. Este processo de repetição é assim singularizante, uma vez que altera o mesmo, fá-lo tornar-se sempre outro, segundo o que Derrida chamou iterabilidade. É este deslocamento que pede a repetição e impede que ela seja estrita, é ele que a altera : a condensação liga os ‘objectos’ outros, o deslocamento desliga-os mas guardando-os ligados em retiro, fantasmaticamente. A dor e o seu prazer diferido, a realidade e o fantasma erótico, inscrevem diferenças (fora / dentro) sem as dissociar : a inscrição retém, reserva, memoriza, liga, e difere, desliga, desloca, relança, dinamiza. “Délier ce qui avait été fortement lié, tressé, c’est détresser, angoisser” (desligar o que tinha sido fortemente ligado, trançado, é destrançar, provocar ‘détresse’, angustiar)[11]. A pulsão segundo Freud deseja a sua anulação como tensão ou dor, quer voltar ao seu ponto zero, à sua morte ; a diferança do prazer impede este retorno mortal, deslocando-o para outro gesto ou coisa : cada retorno é obrigado a um ‘detorno’, a um desvio, deslocamento, outra destinação : impedir a morte, relançar a vida, é isso a repetição, a iterabilidade. Mas, como é o efeito do outro que impede e relança, que difere o mesmo, ele impede tanto a submissão total do interior ao outro exterior quanto a coincidência pura do interior consigo mesmo ; a pureza, tanto interior como exterior, seria sempre a morte, degeneração autista num caso, alienação total no outro.
11. Diga-se de outra maneira. O bébé não tem interioridade ainda, começa por ser uma cena com a mãe, torna-se depois uma cena com os outros no sistema familiar a que é ligado. O processo evocado é o duma desligação progressiva, de pequenos passos para a autonomia mas em que esta é doação dos outros – aprendizagem – que se apagam mas sem separação total, porque o que se desliga permanece ligado – de forma retirada, apagada, inconsciente – como atestam os fantasmas dos sonhos. A desligação da mãe é feita pela entrada a pouco e pouco no sistema dos usos familiares (e escolares), no mundo heideggeriano, segundo o duplo movimento de pedir e impedir : incita a buscar, a aspirar, a querer, por um lado, entrava, impede, interdita, por outro. Uma vez que é a integração nos usos quotidianos que lhe proíbe o incesto (a ‘mulher’ a quem ele estava tão ligado, que era ‘tudo’ para ele, no sistema não é senão a ‘sua mãe’ e de alguns outros, casada com um terceiro), é aonde ele aprende a tornar-se autónomo fazendo como os outros mas no seu lugar único, singularizando-se pelo seu talento, a sua idiosincrasia (palavra grega que diz as pequenas manias de cada um), a maneira que lhe é própria (idion) de pertencer à mistura (krasia) com outros (sun), a sua maneira de responder pelo seu nome no sistema de que é parte. Partindo (para a escola, para o liceu, para o primeiro emprego, casar-se), tratar-se-á sempre de ganhos de autonomia em relação aos outros desses diversos sistemas de usos, de desligações que permanecem ligadas de forma retirada. O que Freud chama Ego, a parte de memória do Id que é modificada por influência directa do mundo exterior[12], é constituída pelos vestígios dos outros, condensadas, amalgamadas, por vezes invertidas, sempre esquecidas : “[…] o carácter do Ego resultaria desses abandonos sucessivos de objectos sexuais”[13], dessas desligações dos outros, cujos rastos se tornam fantasmáticos, sexualizados. As três instâncias, o Id, o Ego e o Super-ego, que Freud retém, não podem ser ligadas entre si (e elas não são outra coisa senão essas ligações) senão por permanecerem estruturalmente ligadas, de forma retirada, esquecida, aos sistemas de usos (familiar, antes de mais), à heteronomia que lhe deu tornar-se o que ele é. Nomeadamente lhe deu tornar-se alguém capaz de decidir, capaz de pôr e de opor : por exemplo essencial, alguém em quem são opostos interior e exterior, que opõe o que eu quero ao que me resiste ou ameaça, os outros, o mundo, a realidade fora de mim. Contra a nossa experiência mais espontânea (ontoteológica), esta oposição interior / exterior é construída, derivada. Esta é uma das lições fundamentais da psicanálise, que o carácter ontoteológico dos conceitos do próprio Freud impede frequentemente de perceber : não estou certo, todavia, de que seja possível sabê-lo por outra via.

Retiro e regulação do aleatório
12. Seja um último ponto. O jogo de oscilações que nos é estrutural – que a psicanálise explicitou antes das outras grandes ciências como estrutura que resulta do Ereignis heideggeriano, da doação dissimulada de todo e qualquer ente terrestre[14] –, esta oscilação é pedida pela exigência de retomada energética dos organismos (sono), mas é perigosa para eles, coloca-lhes problemas de identidade. Por outro lado, ameaça-os da possibilidade de encontros inesperados com outros, o que exige que se esteja mais ou menos seguro de si. A ameaça é pro-vocação : a pulsão do outro, que me diz ‘vem !’, contagia a instabilidade pulsional do sonho. A teoria do Id-Ego-Superego de Freud busca dar conta da viabilidade destas oscilações e da necessidade do seu enquadramento. Por um lado, o recalcamento, nó do Id, exercido pela lei social, pelo interdito do incesto, retém o excesso de líbido, de energia sexual, diferindo-a, relançando-a pela promessa dum destino de adulto[15], que tem que passar pela aprendizagem dos usos tribais, das regras que organizam os encontros sociais. Regras, interditos, promoção de ideais, parece ser o que de maneira vaga Freud entendia por Superego, “formado não à imagem dos pais, escreveu, mas à imagem do Superego deles”[16]. Quanto ao Ego, dir-se-ia que é o que sobra entre ambos, como dizer ?, conjuntos estruturados de vestígios apagados das imagens dos outros, o que oscila entre eles: defesas, como se diz, por um lado, fragilidades oferecidas talvez também, do outro lado. Mais rígidos uns, mais maleáveis outros, ou nos mesmos em outras idades da vida, como dizer aquilo que é justamente a incrível variabilidade dos humanos, o que por vezes nos surpreende, nos comove, doutras vezes nos mete medo ?
13. Digamos assim : há o rame-rame dos dias, toda a gente o tem nos sistemas de usos em que está inserido, em que se joga ganhando-lhe os ritmos, os automatismos. Essas oscilações habituais são mais ou menos regradas, mais ou menos espontâneas, sem que haja que pensar nelas a maior parte do tempo, o aleatório que nelas há sendo tido em conta sem grande dificuldade : o Id-Ego-Superego de cada um foi estruturado para isso, singularmente, pelos sistemas de usos tribais. Pequenas coisas se passam, mais ou menos desapercebidas, que voltarão de noite, em sonho, acordam velhos desejos enterrados que se ‘realizam’ na cena onírica. Mas era uma vez. Estes elementos da véspera, como lhes chama Freud, podem jogar durante o próprio dia sem esperar a noite, abraçarem logo o mundo arcaico, alumiar uma paixão, ‘realizarem-se na realidade’, na realidade também arcaica de tal mulher, de tal homem, acontecimento, encontro inesperado. Ou outra espécie de acontecimento, uma situação de risco social em que haja que decidir depressa, a leitura dum livro que transtorna. Diante de tais situações, a estrutura oscilante pode mostrar-se, quer muito fraca, quer muito rígida, e talvez dê no mesmo, na catástrofe. Ou então haver metamorfose, amor louco, alteração profissional, conversão de vida, sei lá eu. Pode o id-recalcamento ter sido aliviado pelo outro, ou reforçado, o supergo reformulado, tornado mais ligeiro, é para isso que se faz psicanálise, não é ? ou o ego oscilar melhor, ou… ou… Se a psicanálise tem sentido, por certo que é na medida em que consegue intervir nestas engrenagens de oscilação que permitem que estejamos abertos ao acaso sem perda de identidade. Mais ainda, são estas estruturas oscilantes que nos enviam, nos destinam ao acaso, à possibilidade do desconhecido, destinam-nos à errância : destinerrância, escreveu algures Derrida, forjando uma palavra que impede de opor determinação e indeterminação, destino e liberdade. O duplo retiro, apagamento ou não consciente (recalcamento e superego), é a condição da regulação do aleatório entre mim e outrem.

Retorno à questão da ontoteologia e da sua transgressão
14. Voltando à questão dos parágrafos iniciais. Tal como Damásio encerra a sua descrição do processo neurológico nos limites ontoteológicos do corpo e do cérebro, procurando sistematicamente mostrar como o cérebro ‘cria’, a mente, a consciência, o Eu (o Self), na linha da autopoiésis que o biólogo chileno Francisco Varela tornou célebre nos anos 80 do século passado e que reconduz, sem o saber porventura a physica aristotélica dos seres vivos como os que crescem por si mesmos, kath’auto, também assim Freud e a sua one-body psychology. Sem dúvida que os mecanismos admiráveis que a biologia molecular nos revelou nos seus gloriosos anos 50 e 60, do ADN e do ARNm, nos permitiram enfim compreender o ‘segredo da vida’ após vários séculos de esforços de admiráveis sábios europeus, ultrapassar enfim o vitalismo herdado que tanto resistiu, mas fizeram-no mostrando como esses mecanismos são de alimentação e respiração, isto é, supõem constantemente o acesso de moléculas vindas de fora, isto é, implicam que não há nas nossas anatomias e fisiologias nada que não seja de origem heteropoiética. O paradoxo consiste em que os biólogos pareçam não o entender, ficarem como que a meio caminho do que descobrem. Ora, a razão desse paradoxo é filosófica, reside na filosofia que eles receberam no liceu e na universidade nas próprias aulas de biologia, reside no coração do seu paradigma.
15. Nunca ouvi dizer, mas as minhas leituras nestes domínios são obviamente muito limitadas, que haja biólogos permeáveis à descoberta pelo químico belga Prigogine, Prémio Nobel de 1977, das “estruturas dissipativas” no metabolismo celular: se o forem, saberão que esse metabolismo, enquanto vivo, implica produção positiva de entropia (ou neguentropia) e que para tal há necessidade de uma fonte de alimentação externa. Ora, eu creio que essa entropia positiva (que contraria a tradicional da termodinâmica de Clausius, que supõe sistemas fechados) tem algum parentesco com o motivo freudiano da sublimação. Estas alusões aos limites ontoteológicos de biólogos e neurologistas permitem sublinhar como Freud, conhecendo os mesmos limites filosóficos e apesar da justeza relativa da critica de Heidegger contada por Laporic, como Freud foi todavia levado a transgredir aqui e ali esses limites. Um dos pontos tem a ver com a sua teoria da sexualidade, que ele não ‘inventou’ mas ‘descobriu’ nas associações livres dos seus pacientes, quando as suas resistências a dizer – esquecimentos, lapsos ou outros actos falhados, intervenções súbitas da consciência vigilante que se auto-censura, silêncios, desmentidos, risos, choros, negações, etc. – se lhe deram como sintomas energéticos (diferenças de sentido e diferenças de força indissociavelmente) que assinalam uma clivagem, uma margem, um limite que não se pode passar, uma fronteira fractural, digamos, entre o que se diz e o que não chega ao dizer. Além dessa fronteira encontram-se os nós discursivos escondidos que manifestavam os sintomas neuróticos que levaram a pedir a terapia. Ora, é nessas repetições e resistências diversas que a sexualidade se manifesta como sexualidade censurada, interdita, tingida muitas vezes de agressividade, sexuali­dade incestuosa e de ciúmes correlativos : isto é, ela manifesta-se como ligada à lei social. Censurada, não apenas em relação ao analista, mas antes de mais e sobretudo em relação à consciência vigilante do sujeito, que se ofusca com aquelas revelações e não quer crer nelas. O interdito do incesto, que Lévi-Strauss veio a reconhecer como obrigando à exogamia, à aliança entre famílias, formando o nó constitutivo do social, é descoberto por Freud como o que, lei paterna vinda de fora, cria o inconsciente, isto é, um recalcamento que gera sublimação e é pois a própria dinâmica dos psiquismos humanos.
16. O outro ponto de transgressão da one-body psychology ontoteológica, foi aludido acima, tem a ver com a introdução, sob o feio termo de ‘objecto’, dum elemento exterior no conceito de pulsão (Trieb). São quatro elementos que a definem no texto “Pulsões e seus destinos” de 1915: a) a pressão (Drang), uma tensão que provoca dor e tende a descarregar-se b) num alvo (Ziel), o que alivia da dor e provoca prazer; c) a sua fonte (Quelle) somática que é excitada e d) que se descarrega graças a um objecto (Objekt). Os dois primeiros, dor e prazer, formam a diferença energética (entrópica) constitutiva da pulsão, estão na origem dos dois célebres princípios do prazer e da realidade de 1911, enquanto que a fonte somática correspondendo sem dúvida à bioquímica das hormonas (J.-D. Vincent, Biologia das paixões) tem como contraponto algo que a palavra ‘objecto’ denota como exterior, um órgão fisiológico comandado geneticamente sendo assim correlacionado com algo de antropológico, de social: o conceito de pulsão escapa pois à oposição interior / exterior, é-lhe prévia, impede de fechar o psiquismo numa interioridade solipsista[17], introduz nele o mundo, como também o interdito do incesto. Ora, é a exterioridade deste elemento antropológico que vai permitir as identificações narcísicas e edipianas que instaurarão o Ego. Como fiz alusão acima, contra a nossa experiência mais espontânea, esta oposição interior / exterior é construída, derivada. Ao menos nestes dois pontos, Freud abriu caminho ao ser no mundo heideggeriano.

Colóquio filosofia e psicanálise, Universidade Nova de Lisboa, 8/11/ 2012

vídeos da comunicação e do debate por Luis Tavares
 





[1] A definição na Physica aristotélica de ousia enquanto capaz de compreender o movimento dos vivos representa a excepção, a escapadela à ontoteologia ; todavia, quando Tomás de Aquino introduz Aristóteles na teologia cristã e por via de consequência na filosofia europeia, fá-lo esbatendo a Physica, tratando a ousia apenas segundo a Metaphysica, o ‘movimento’ considerado como acidente (E. Gilson, Le Thomisme, Vrin, 1947, p. 47 n.). Heidegger levou uns 20 anos a recuperar o Aristóteles da Physica (“Ce qu’est et comment se determine la physis”, Questions II, Gallimard, [1940, 1958], 1968).
[2] Laplanche e Pontalis, Vocabulaire de la Psychanalyse, P. U. F., 1967, p. 404
[3] Devida a Marcus André Vieira, A ética da paixão: uma teoria psicanalítica do afeto. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, segundo uma recensão de Letícia Nobre in Ágora: Estudos em Teoria Psicanalítica (WWW), com print version ISSN 1516-1498, Ágora (Rio J.) vol.4 no.1 Rio de Janeiro Jan./June 2001
[4] O que se faz respectivamente no intestino e nos pulmões, os dois órgãos que com o cérebro fazem trocas do exterior e tiveram que encontrar solução para o mesmo problema anatómico: aumentar ao máximo a superfície de trocas num volume determinado.
[5] A diferença entre a língua materna que flui já em crianças pequenas e os fortes sotaques e erros de quem aprendeu uma língua estrangeira.
[6] O filósofo brasileiro Z. Laporic, “Além do inconsciente: sobre a desconstrução heideggeriana da psicanálise”, conta a crítica por Heidegger quer da metapsicologia freudiana, de inspiração kantiana, quer da sua clínica, crítica essa que aproxima dos textos de Winnicott.
[7] O que não é o caso nem de Freud nem do Heidegger de Laporic, que põe em questão, como o seu desenho da ontoteologia pede, o mentalismo das representações na metapsicologia freudiana, sem parecer pensar que essas representações, surgidas para dar conta de análises clínicas de discursos de pacientes, são susceptíveis de serem interpretadas doutra forma, não devem ser pura e simplesmente negadas. Duas leituras fabulosas de textos de Freud por Derrida, uma citada na nota 7, a outra do “Para além do Princípio do Prazer” em La Carte postale de Socrate à Freud et au-delà, Flammarion, 1980, não o impedem de escrever no primeiro desses textos sobre a sua “reticência teórica em utilizar os conceitos freudianos sem ser entre aspas, que pertencem todos, sem excepção, à história da metafísica”, já que “um pensamento da diferença ocupa-se menos dos conceitos do que do discurso” (1967, p. 294).
[8] J. Lacan, Écrits, Seuil, 1966, p. 94.
[9] “Freud et la scène de l’écriture”,  L’écriture et la différence, Seuil, 1967, p. 303.
[10] No Livro da Consciência, Damásio distingue neurónios de consciência (a esta chamando ‘mente’) de “disposições não conscientes” que foram “educadas” (p. 332), ou seja redes neuronais sem a sua internalidade mental: sendo contra a correlação que estabelece entre neurónios e mente, parece que essas “disposições não conscientes” seriam susceptíveis de terem sido ‘conscientes’ nos primórdios e ‘esquecidas’ posteriormente.
[11] Mercedes Allendesalazar, Thérèse d’Avila, l’image au féminin, Seuil, 2002, citada por T. Joaquim.
[12] 1995, p. 9.
[13] Freud, “Le Moi, le Sur-Moi et l’Idéal du Moi”, 1968b, p. 198.
[14] Como tentei sistematizar em Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida, de que uma parte deste texto é uma adaptação.
[15] Onde há lei, há promessa: o interdito não pode impedir o retorno à transgressão, pode apenas obrigá-lo a um desvio.
[16] Suite aux Leçons d'introduction à la Psychanalyse (1932), citado in Laplanche et Pontalis, 1967, p. 473.
[17] Como é a alma e a consciência na crítica do velho Heidegger ao seu mestre Husserl nos seminários de Questions IV.

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