terça-feira, 13 de novembro de 2012

A questão da especulação financeira


A questão da especulação financeira
1. Para se entender o que se chama correntemente ‘especulação financeira’, termo mais correcto do que designar as bolsas por ‘mercados’, será necessário fazer o contraponto entre as duas principais correntes de teoria económica do século XX, entre Keynes e Friedman. Não é necessário ser economista para se saber que a economia política que o primeiro propôs teve efeitos muito benéficos nos 30 anos que se seguiram à última grande guerra, efeitos de construção social e económica que evitou a oposição entre estas duas dimensões da habitação humana. O adjectivo ‘política’ que se apõe à sua teoria económica ao serviço do social, isto é, da habitação dos humanos, consistiu em fomentar a solidariedade com o crescimento económico e a respectiva liberdade de salários crescentes também : tratou-se da coisa democrática em termos de economia, esta correlativa no campo jurídico com a afirmação de contratos de trabalho dignos, que respondiam à grande tradição liberal clássica que contestara a concepção aristocrática e hierárquica de sociedade colocando o eixo social no contrato entre duas vontades livres e responsáveis, numa sociedade de contratos entre cidadãos. Foi a isto que na Europa do século XX se chamou social democracia, em que a economia é apenas ciência dos mercados e não de toda a sociedade, é apenas ciência do que se joga entre instituições que vendem e compram, entre elas e famílias, mas não é ciência da educação nem da saúde, nem da segurança pública nem da justiça ou da administração do Estado como regulador social imprescindível. Ciência dos mercados é aquela que sabe da redução que a moeda, operadora de trocas, efectua de tudo o que não é mercado e que por isso tem que ter necessariamente em conta as outras dimensões sociais que lhe escapam. É aliás este o ponto de vista de quem governa no lugar do Estado ou dos municípios : nessa época keynesiana dos chamados Trinta gloriosos anos, ainda estas instituições eminentemente políticas tinham poder de intervenção junto das grandes empresas que se estavam alçando à globalização neocolonial.
2. Após estes trinta anos acelerados, houve uma diminuição do crescimento que levou Friedman a achar que a economia americana estava ‘estagnada’, ponto de vista que o leigo considera absurdo, já que é sempre plausível, não apenas que os índices de crescimento não tenham que ser eles próprios sempre crescentes (o que seria uma maldição para um planeta com fortes limites), mas plausível que aceleração seja seguida de abrandamento, como é até sustentável que se pode não crescer sem que a habitação das gentes se ressinta : não apenas crescimento sustentável mas também decrescimento sutentável, são os critérios da habitação que devem decidir, não os dos economistas. Com efeito, o progresso em termos de crescimento económico deve-se ao progresso técnico laboratorial, mesmo os chamados ‘serviços’ dependem de melhores máquinas e dispositivos técnicos. Friedman deslocou a ideia de crescimento da técnica para o capital, pondo o acento da economia enquanto ciência na moeda, que é com efeito a medida das trocas económicas e por isso mesmo o operador de redução do que é trocado e da identidade de quem troca, redução das mercadorias e dos mercadores, para se poder jogar com os números correspondentes a essas trocas (desenvolvi noutro lado este argumento[1]). Os números e a matemática em geral é para isso que servem, para reduzir as ‘qualidades’ e reter as ‘quantidades’. E enquanto se tratasse de trocas, de mercado no sentido tradicional, que é apenas uma estrutura adentro da estrutura social global, é correcto cientificamente que a economia reduza tudo o que não são os números, foi o que ela sempre fez. O problema é que essa maneira de fazer implica limites ao saber que assim se consegue : se é a vida que vale, alimentação e habitação, esses números são para a fazer valer. Ora com Friedman, monetarista, foram os números que foram colocados como critério enquanto crescessem, o que corresponde aos desejos de toda a gente e por isso não pareceu desajustado. Mas esses desejos são problema, que não é estritamente económico mas político, porque eles entram em guerra e dão origem a uma ‘cena’ própria, a duma guerra de desejos, de ganâncias de ser rico, de ser mais rico do que o concorrente. Essa guerra, em que tradicionalmente os ‘patrões’ querem ter mais lucros e para isso travar os salários de quem trabalha, tradicional ‘luta de classes’ que Marx teorizou, essa guerra deslocou-se – com o crescimento das multinacionais e do seu neocapitalismo, as suas emigrações das unidades de fabricação para zonas de baixos salários facilitadas pelo desenvolvimento dos transportes e das redes electrónicas – para as bolsas enquanto instituições de troca de capitais, também elas beneficiando da electrónica para o seu incremento : guerra de capitais. E é onde a especulação se desenvolveu por assim dizer freneticamente, como uma espécie de jogo de apostas, de euromilhões para ricos, em ecrãs-espelhos em que os números deixaram de saber o que espelham, a sua referência económica nos mercados propriamente ditos : onde se vende e se compra o que se produz, o que tem a ver com as técnicas, engenheiros e cientistas, por um lado, e por outro com todo o tipo de assalariados e seus consumos familiares, tudo coisas que interessam aos governos que têm que fazer escolhas políticas relativas à habitação das gentes. Ora, na economia, não há máquinas nem edifícos, mas investimentos, não há produtos nem mercadorias, mas estatísticas de trocas, não há trabalhadores mas salários que aparecem como ‘custos’ ; o que continua a haver é a rubrica ‘capital’, que é dela mesma dada em termos monetários, quaisquer que sejam as formas de propriedade respectivas e que em regra já não são governadas pelos proprietários mas por gestores, que são tanto mais compensados monetariamente quanto os crescimentos de lucros que obtiverem e que por via de consequência trabalham em função desse crescimento, os olhos postos nos ‘accionistas’, os que jogam nas bolsas. É isto a especulação financeira. E as consequências da aceleração electrónica dela[2], das alucinantes sessões de trocas em momentos de crise ou de euforia, aquela gente frenética a olhar os ecrãs, já não com revólveres mas com telefone em punho, têm sido as crises que vêm pontuando a última dezena de anos do século XX e a primeira do actual, em que vendem nos impropriamente chamados mercados, tornados hoje vigilantes censores das economias propriamente ditas, tanto as ‘acções’ com valor económico como os desejos, sem que se saiba distinguir entre umas e outros antes que haja ‘crash’.
3. Ora, foi sem dúvida a própria electrónica, quer robótica quer informática, que justificou os novos crescimentos da produtividade. A proposta de Friedman adequou-se à transição da 2ª para a 3ª fase da revolução industrial, aos tempos de pós Maio 68, como Luc Boltanski[3] mostrou que a flexibilização das complexas burocracias e hierarquias das grandes empresas, com reformas desmanteladoras (por exemplo, deixando muitas tarefas a pequenas empresas subcontratadas com mais empenho na produtividade) mas também com  a desindustrialização, as tais deslocações para países de salários baratos e outras estratégias castigadoras das próprias sedes nacionais, americanas e europeias, tornando-se cada vez mais claro que os capitais não têm pátria nem outra lógica do que a monetarista ; ora, foi a estas problemáticas locais que Keynes respondeu. A sua grande dimensão, por outro lado, torna as multinacionais nómadas e gigantescas incontroláveis pelos Estados, por definição locais e adstritos às problemáticas de habitação, locais elas também. Como se todos os países (enquanto nações democráticas), a começar pelos Estados Unidos, se estivessem a tornar neocolonizados. « O capitalismo prospera, a sociedade degrada-se », alertava Boltanski. O ponto está em que, à falta de uma teoria global das sociedades e da sua globalização, a economia arroga-se esse papel, ignorando que a sua redução monetária a torna incapaz de o cumprir cabalmente. Assim como nos regimes totalitários se chamava ‘partido único’ ao que se apoderara do poder, em óbvia contradição – o ‘partido’, sendo parte, não pode senão ser parcial ­–, também esta economia totalitária recebeu o epíteto de ‘pensamento único’, clara contradição com o que é a inevitável parcialidade do pensamento (em tempos relativistas como raramente os terá havido !) : uma tal doutrina económica renega-se como pensamento. Onde Keynes construiu uma economia para a habitação da terra, Friedman está contribuindo para a destruir, isso vê-se a olho nu, porventura melhor quando se não é economista. E quando de todos os lados, ecologistas, cientistas dos climas, gentes da saúde, políticos e activistas que querem dar conta da fome, nos alertam para os limites da terra e dos humanos – seus filhos que se querem senhores dela –, é a ideia fixa de que só o ‘crescimento’ nos pode salvar que tem que ser cada vez mais discutida. Com efeito, é sempre aonde os números duns ecrãs ocultam a habitação, que se abrem, testemunhadas noutros ecrãs, as crises e as suas discussões sem saída : doenças e stress, poluições, desempregos, falências de empresas e de Estados e de esperança.
4. Crescer, é normal nos vivos, mas chegado ao estado adulto esse crescimento pára para dar lugar a outros horizontes. As duas primeiras fases da revolução industrial terminaram em abrandamentos, o de 1870 a 1898 e o de 1974 a 1992 e ambos suscitaram surtos de neoliberalismo anglosaxónico que tiveram como resposta, no 1º caso, proteccionismos opostos que desembocaram em nacionalismos e em duas terríveis guerras. No caso actual, não poderá suceder que a desindustrialização da Europa e Estados Unidos tenha como consequência que capitais apátridas se revelem terem perdido para pátrias asiáticas a sua base económica ‘secundária’, sem a qual os ‘terciários’ serviços são como uma cidade sem alimentação, e se venham a desvalorizar dramaticamente à maneira dum crash ? Seria o suicídio das economias ocidentais, desvastadas pelas multinacionais que as neocolonizaram, fomentando ao mesmo tempo excessos de consumo que resultaram em dívidas monumentais, suicídio devido aos friedmanianos não terem reparado em que há mais vida para além do capital e da sua bolsa. Será o que nos está já a acontecer, perdidos entre a bolsa e a vida ? Se os emergentes, como se diz, forem os futuros senhores do planeta, herdarão do nosso esvaizamento o problema de saberem até onde crescer, quais os níveis de ‘vida’ que a terra poderá aguentar.
publicado na revista Actual, do Expresso de 23/06/2012




[2] Congratulo-me com a confirmação de João Caraça: “a finança pôde beneficiar em pleno das novas redes electrónicas da informação, exactamente pelas suas características informacionais, intangíveis. A informação financeira circula pelo mundo à velocidade da luz. A rentabilidade do capital financeiro passou a ser o principal critério da actividade económica. A importância do sector cresceu de tal modo que provocou a separação (auto-separação, melhor dizendo) da finança do resto da economia” (Público, 24/10/2011).
[3] Boltanski, Luc e Chiapello, Ève, 1999, Le nouvel esprit du capita­lisme, Gallimard

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