domingo, 23 de dezembro de 2012

Despedimento de 50 mil


Somos chocados com o despedimento anunciado de 50 mil funcionários públicos, com o que isso representa de aumento do desemprego como chaga social. Ora, embora isso não costume ser apresentado como solução mais ou menos provisória, lê-se por vezes nos jornais que empresas europeias, e entre nós a Auto-Europa, têm adoptado uma redução do tempo de trabalho de todo o pessoal, garantindo assim que não se despede ninguém, o que significa repartir a solução ‘corte nos custos’ por toda a gente, o tempo que for necessário; significa uma solução positiva de solidariedade entre as pessoas em vez duma chaga sobre uns tantos. Um amigo meu trabalha numa fábrica no concelho de Cascais com 70 trabalhadores que há um ano que trabalham apenas 4 dias por semana, contentes por apesar de ganharem menos terem evitado o desemprego e da solução ser colectiva. Em termos de função pública, essa diminuição teria óbvias vantagens, não apenas por guardar trabalhadores experimentados em funções que frequentemente não têm equivalência em empresas privadas, mas inclusive porque poderia, na escola porventura, dar mais trabalho a professores não colocados, em vez desta aberração de se querer que o pessoal trabalhe cada vez mais quando o desemprego cresce. De qualquer forma, ninguém pode garantir que uma parte do desemprego actual tão elevado não resulte da tecnologia electrónica, robots e computadores, e que estejamos em época de transição para uma semana de 4 dias de trabalho como continuação do avanço civilizacional dos últimos dois séculos. O que agora seria provisório em certos sectores poderá ser definitivo daqui a algum tempo para toda a gente.
Carta Público, Outono 2012

Desemprego: flagelo ou promessa?



Desemprego: flagelo ou promessa?

1. O espanto dos economistas com o aumento do desemprego que não cabe nos seus modelos alargados até 20 anos, faz pensar que será pouco tempo, que deveria ser de 200 anos, isto é, deveriam repensar a economia em termos de história da civilização. O que está a ser vivido como flagelo intolerável poderá então aparecer como promessa, nessa perspectiva positiva ser possível encontrar outras medidas.
2. Dois textos estarão na base do pensamento ocidental sobre a sociedade: o livro bíblico do Deuteronómio e a República de Platão, bem diferentes entre si mas ambos reformadores por motivos de justiça social e com base numa ética de solidariedade exigente; o primeiro com uma ‘promessa’ de abundância como resposta a essa solidariedade, as utopias do segundo só nos dois últimos séculos ecoaram e fracassaram, como o povo israelita também tinha sido incapaz do que lhe fora proposto pelos seus profetas.
3. No entanto, por outras vias históricas, o século XVIII reformulou este motivo da promessa, ao inventar a máquina como abundância social e ligeireza de vida, como possibilidades imensas de produção de coisas ‘impossíveis’ até aí e como substituição da pena que o trabalho sempre representou para os humanos por uma energia inédita, não mais biológica dos músculos humanos e dos animais domésticos, reelaborada da que a terra e o céu nos fornecem. [Ora, esta promessa da ligeireza de vida destinava-se apenas aos que até aí se sujeitavam, como escravos e criados, ao ‘servil’ de que os nobres se abstinham: foi a burguesia, nem aristocrata nem popular, quem esteve em condições (únicas na Europa, nem na China nem na Índia nem no Islão havendo classe equivalente) dessa invenção por razões filosóficas que agora não vêm ao caso].
4. O que é que espanta os economistas? É difícil escapar à ideia de que o desemprego que grassa desde os anos 70, na Europa pelo menos, é o fruto do enorme progresso da automatização electrónica, das economias de traba­lho humano trazidas pelos robôs e pelos computadores. Enquanto que no após guerra a produção de bens bara­tos, automóveis, electro­domésticos, apartamentos em betão armado, se dirigia à população que os produzia e recebia também a sua parte, os seus salá­rios de produtores sendo o seu orçamento de consumidores. E foi isso que permitiu a expansão das classes mé­dias, como se diz, os trabalhadores de escritório e de outros servi­ços, toda a gente lucrou com isso. Ora bem, a vaga electrónica ac­tual atingiu sobre­tudo o trabalho humano, o dos operários e dos escritórios. E eis o es­cândalo: este cumprimento parcial mas fulgu­rante da promessa da máquina – não em recessão, mas com au­mento dos bens produzidos, dos PIB – foi feito não como liberta­ção, como redução substancial do tempo de trabalho, quantas ve­zes tão monótono e embrutecedor, mas como catástrofe social, como exclusão de partes significativas da população activa desses frutos tão esperados. O que me espanta a mim é que não apareça nas discussões que andam em torno deste flagelo a parte de promessa que nele se esconde; quantificar não apenas os números das dívidas e do crescimento dos lucros, mas também o modelo da diminuição das horas de trabalho, que dê para repartir salários para todos: há matéria em França desde 1995 para se perceber as possibilidades e dificuldades dessa via. Economistas, ao trabalho!
Fernando Belo

O que é o ‘público’ da República ?




1. A insensibilidade à ‘coisa pública’ (em latim ‘res publica’), revelada na proposta do que fazer da RTP por alguém com um currículo invejável de financeiro lá fora, sugere que há aqui um problema que não é o de ser-se ‘inteligente’, ‘competente’ na sua disciplina, mas um problema que tem a ver com as “ciências económicas e financeiras”. Thomas Kuhn ensinou-nos que o paradigma duma ciência normal faz disciplinar o olhar dos seus praticantes, aquilo que eles vêem e aquilo que eles não vêem, mas Abel Salazar ia mais longe: “dum médico que só sabe medicina, podes estar certo de que nem medicina sabe”, o que transposto dá: “dum economista que só sabe economia, podes estar certo de que nem economia sabe”. A questão é pois mais geral, percebeu-se já quando foi da comparação entre trabalhadores privados e públicos, estes com mais garantia de estabilidade de emprego do que aqueles, donde não haver grande injustiça nos cortes que os atingem, discussão puramente economicista em que nunca se perguntava qual era a função da função pública que tais diferenças justificariam, como só se tratasse de comparar trabalhadores, empregos.
2. Não sendo jurista, proponho abordar esta questão em termos de economia política. Nos anos 60 e 70 do século passado, a palavra chave do progresso era a de produtividade, que se referia à produção e tinha a ver com a diminuição do seu tempo sem perca ou até com melhoria da qualidade do produto: digamos que era um termo de engenheiro, tinha a ver com o que se passava adentro das fábricas, e a qualidade dos produtos, que a publicidade anunciava, visava os que os compravam, obrigava os engenheiros a ter em vista os usos desses produtos. Esta correlação entre produtores e consumidores concretizou-se na espantosa ascensão social que se deu das classes médias – que produziam e consumiam –, que então cresceram e hoje são despojadas do nível de vida alcançado. Essa palavra foi substituída por outra hoje dominante, a de competitividade, palavra de economista, já que visa o mercado como competição entre adversários cujos números se quer ultrapassar, tal como no desporto, por exemplo, com suas regras e árbitros. E o problema é que justamente estes números reduzem a qualidade (é a eficiência deles e o seu limite), quer a dos produtos, quer a dos que produzem e a dos que os consomem: para as empresas de hoje pouco importa o ramo desde que seja negócio que dê lucro.
3. Esta palavra competitividade ajuda a perceber a diferença entre o que se exige a quem trabalha na competição privada e a quem trabalha na coisa pública. Estes pertencem a um corpo ‘público’, com vários órgãos e diferentes escalões, que legisla e regula a competição privada; basta referir um dos problemas político-jurídicos maiores, o da corrupção por interesses ‘privados’, para se perceber que há uma exigência ética, além de profissional, que incide sobre estes ‘funcionários públicos’ e que justifica em grande parte, quero crer, a estabilidade de emprego: se estiverem sempre a mudar, não haverá administração pública com um mínimo de estabilidade.
4. Pode-se então colocar a questão do “serviço público”, ou do “sector público” (na Constituição) de televisão e rádio. O que um economista parece ter dificuldade em compreender é que as rádios e televisões são hoje financiadas duma forma perversa, dependente da ‘publicidade’ pela qual os interesses ‘privados’ querem chegar às assistências, aos ‘públicos’ num outro sentido da palavra, e como essa necessidade obriga televisões e rádios a destinarem-se cada vez mais às maiorias, às massas, como dizem os Americanos mass media, a banalizarem os seus ‘produtos’. Trabalhar aí, se se é gente criativa, implica lutar contra a corrente, que lhes pede só o que seja fácil, atractivo, traga espectadores quantos mais melhor. Vendo apenas regularmente o telejornal da RTP2 e ocasionalmente documentários ou debates políticos, não tenho competência para dizer em que é que deve consistir um serviço público de televisão, que parece não interessar os economistas, que devem julgar que se trata de ‘conteúdos’ a encaixar nos de rotina televisiva. Mas como tem dito quem é especialista destas áreas (por exemplo, o jurista professor do ISCTE J. P. Figueiredo, “RTP: Privatizar ou não privatizar, eis as questões”, Público 25/08, uma súmula informada das principais questões), percebe-se claramente que se trata de ter uma gestão de serviço público em toda a programação, atenta à elevação educativa (Adelino Gomes, Público 01/09), até em programas de entretenimento infantil (Mª Emília Brederode Santos, Público 28/08), tanto mais necessária quanto vivemos em época de fortes especializações e toda a gente, economistas incluídos, precisam de se cultivar, já que cada vez se lêem menos livros e jornais de referência, como se sabe. Trata-se pois de fazer o que as empresas privadas não fazem, ou pouco. O que significa que a responsabilidade política aqui é ter o maior dos cuidados em quem é nomeado para a RTP pública: não apenas um gestor de finanças, que também é preciso, mas sobretudo um gestor de televisão, não apenas um ‘economista’ que compita com as outras televisões mas sobretudo um ‘engenheiro’ que cuide da qualidade televisiva, como foram João Soares Louro e Fernando Lopes, de boa memória.
P. S. – um pequeno argumento economicista: que não haja nenhuma televisão generalista que se tenha candidatado à transmissão dos jogos de futebol da 1ª Liga, não é indicativo de como o mercado publicitário está saturado e é extremamente arriscado querer alterá-lo radicalmente? Aprendizes de feiticeiro...
Público, 9/9/2012

A Internet e os livros que contam

1. O livro de Nicholas Carr, Os Superficiais. O que a Internet está a fazer aos nossos cérebros, Gradiva, é o diagnóstico autobiográfico duma mutação de civilização. Como diz André Belo, “é um ensaio que denuncia as consequências negativas para a memória e o cérebro humanos da exposição excessiva, no trabalho intelectual, à Web e a tudo o que nos liga à Internet via computador, telemóvel, leitor de livro digital ou tablet. Elas traduzem-se, segundo o autor, na tendência para a dificuldade de concentração, na dispersão mental e no enraizamento do 'multitasking' como hábito intelectual. Essas consequências dão o título ao livro: superficial (shallow) é a leitura e a memória que resulta da hegemonia crescente da grande rede mundial de computadores na nossa maneira de trabalhar com o cérebro”. Destinado a quem acontece regularmente “usar uma técnica de leitura dos textos que consiste em fazer uma espécie de scan da página com os olhos, percorrendo rapidamente só as duas ou três primeiras linhas de texto, para descer ao parágrafo abaixo e fazer o mesmo travelling da esquerda para a direita para ver qual é o assunto seguinte, voltar a descer verticalmente ao longo da página, desenhando com os olhos um movimento parecido com um 'F', a quem de um modo geral, tem dificuldade em fechar o navegador, o FaceBook, o Messenger ou o email para se concentrar enfim no tal trabalho inadiável ou se ainda, em momentos de maior alienação, clica num link, aterra num site, e pergunta-se: "mas de que raio estava eu à procura antes de vir parar aqui?”.
2. Muito interessante. O que se diz da Internet vale também da alternativa entre ler livros ou revistas especializadas e jornais, entre ler jornais de referência com comentadores qualificados e só ver telejornais. Dizia René Thom, matemático da teoria das catástrofes, sobre a sua maneira de trabalhar que precisava de cerca de 4 horas para entrar na sua matéria, mas conseguido isso, nada o podia já distrair. É o outro extremo do internetista segundo Carr. Como escreve ainda A. Belo, “é nesta contraposição cognitiva entre a leitura linear induzida pelos livros e a leitura constantemente interrompida da Internet que o livro de N. Carr é particularmente persuasivo”.
3. O Expresso dedicou uma coluna de recensão ao livro (15/12/12), bastante ‘superficial’, no sentido do título, e cortou uma parte importante da carta que lhe enviei (22/12) a que, já agora que não tenho constrangimentos de espaço, acrescento uns pontos. Mutação de civilização, a da crise do livro que tanto tem sido falada, crise que como que encerra a época do humanismo: este, como salientava Sloterdijk, resultou de vários séculos de leitores, entre o XVI e o XX, guiarem os caminhos dos Europeus para a liberdade, a finitude, a cidadania, até se chegar à democracia. Foram sempre minoritários, é certo; os livros de pensamento que deveras contaram nesses tempos, poucos os liam, mas transmitiam-nos a uma população mais geral, duma maneira ou outra, e nomeadamente instituíram esse saber nas escolas. O que será a novidade hoje, é que esses leitores divulgadores, que continuam a ser uma minoria, pejorativamente ditos ‘intelectuais’, deixaram de ser ouvidos fora da sua tribo. Quem não conhece licenciados em direito e em economia que não lêem livros? A internet continua a leitura, mas impede-a também, que há leituras e leituras,  livros e livros, os que se perdem são os 'difíceis'.
4. Carr explica, da sua própria experiência e de amigos e colegas da suageração, a do babys boom,  que os hábitos de ler saltitando na Net - a Google ganha dinheiro  em publicidade a cada 'clic' que nós fazemos - lhes trouxeram a incapacidade de ler um livro por inteiro e a dispersão ao fim da segunda página de leitura, perderam o poder de se concentrar numa leitura seguida. Não sei quais serão as incidências desta mutação de civilização, da marginalização dos intelectuais e dos livros. É certo que  eles podem  conviver entre eles, lerem-se uns aos outros, mas há que dizer que também os interesses aqui são tão dispersos, que, apesar da Internet ser uma imensa facilitação, a coisa não está ganha sem mais. 
5. A ‘superficialidade’ da recenseadora manifesta-se na maneira como termina: "se ele próprio conseguiu escrever 326 páginas sobre isso, talvez ainda haja esperança"; o que significa obviamente que saltou as três páginas perto do fim em que ele conta como, para redigir o livro, teve que, ao fim de alguns meses de fracasso,  recorrer a medidas radicais: deixar Boston onde vivia bem conectado para as montanhas rochosas do Colorado, sem rede de telemóvel e com fraca Internet, largar as assinaturas dos Facebook e companhia, reduzir a consulta dos mails a uma só vez por dia e mesmo assim levou largos meses para se desintoxicar, até ser enfim de novo capaz de ler um texto científico sem divagar e de escrever horas a fio. E confessa que, uma vez acabado, reincidiu na doença.
6. Ou seja, o que resulta na prática deste diagnóstico autobiográfico em forma de drama, como chamada importante de atenção, é algo de parecido com as disciplinas de desintoxicação do álcool ou drogas equivalentes: a Internet é para ser tomada com conta, peso e medida. Para se ser intelectualmente capaz nas nossas actividades profissionais, temos que ler livros habitualmente, uns mais, outros menos, mas a leitura de bons livros é essencial à saúde intelectual. À gente nova, é de aconselhar também terem ‘tutores culturais’ que ajudem a beneficiar dos tesouros culturais de todo o género que hoje nos são postos à disposição nesta maravilhosa Teia, como os professores nos ajudam a saber utilizar bibliotecas onde há muitos milhares de livros.

sábado, 8 de dezembro de 2012

No paradigma de Biologia falta o Ser no Mundo (debate com Teresa Avelar e António Damásio)


NO PARADIGMA DA BIOLOGIA FALTA O SER NO MUNDO
(debate com Teresa Avelar e António Damásio)


UM PRECONCEITO FILOSÓFICO NO PARADIGMA DAS BIOLOGIAS
A) Selecção natural e lei da selva (diálogo com Teresa Avelar)
A lei da selva comanda as anatomias animais
Passar do ‘ambiente’ à cena ecológica
B) Cérebro, mente e mundo : dar o braço a torcer, mas... (diálogo com António Damásio)
Na Neurologia como na Biologia
Nós, animais, somos seres no mundo
Onde há neurónios, há mente
O cérebro é um órgão biológico e social
A questão do filósofo: o que é o humano?
Conclusão fenomenológica: compreensão e linguagem relevam de evoluções diferentes

Resumo
Trata-se de questionar o paradigma biológico a partir da fenomenologia biológica (Belo, 2007): o privilégio dos genes como determinantes do todo do organismo animal, e deste sobre o chamado ambiente, a que contraponho o conceito de cena ecológica, ou seja uma biologia de seres no mundo. Numa 2ª parte, será a neurobiologia de Damásio que será objecto do mesmo questionar, do cérebro como 'produzindo' a mente e a consciência, propondo que o cérebro é um órgão biológico e social e que compreensão e linguagem relevam de evoluções diferentes.


1. Trata-se aqui de um pequeno ensaio do que se pode chamar fenomenologia biológica, fazendo parte duma aliança da filosofia com ciências, da fenomenologia (começada por Husserl e continuada pelas dissidências que foram Heidegger e Derrida) com as principais descobertas científicas do século XX, a saber: a teoria do átomo e da molécula, a biologia molecular, a correlação entre interdito do incesto e exogamia, a dupla articulação da linguagem e a segunda tópica da teoria psicanalítica das pulsões.
2. O projecto de conhecimento das ciências europeias, os seus conceitos e métodos, foram historicamente herdados da filosofia grega, Sócrates, Platão e Aristóteles, inventores da definição e da argumentação sobre as essências intemporais, os seres concretos analisados abstraídos das suas circunstâncias, arrancados do seu contexto. As narrativas e os discursos quotidianos dizem sempre respeito a singulares concretos em contextos determinados, a definição deu origem a um tipo de texto gnosiológico – filosofia, lógica e ciências – tendente a um saber geral, universal. As ciências europeias, por sua vez, inventaram o laboratório (Galileu, Newton, etc), em que se medem e avaliam movimentos, reelaborando em consequência as definições herdadas da filosofia na formulação das suas teorias: definições e argumentos dum lado face a experiências que lhes põem objecções do outro.
3. Ora, o primeiro grande tratado de Física moderna, publicado por Newton em 1687, chamava-se Princípios matemáticos de filosofia natural: o que para nós é ‘ciência’ era para o autor ‘filosofia’. Já Galileu dissera que gastara mais anos a estudar filosofia do que meses em matemática pura[1]. O que significa que, longe ainda do seu futuro alcance técnico, sabendo-se que a ‘ciência’ era um discurso específico, era no entanto considerada ainda um ramo da filosofia consagrado à natureza. Só um século depois de Newton é que a distinção entre os dois tipos de texto se marcou teoricamente: foi o trabalho de Kant que assumiu a novidade newtoniana e a incorporou na sua filosofia[2], separando as águas e permitindo que, ao longo do século XIX e anunciados pela primeira grande filosofia incorporando a história, a de Hegel, se desenvolvessem vários tipos de ciência, quase todos tendo como esteio o tempo histórico: biologia, paleontologia e evolução, linguística das línguas indo-europeias, filologia crítica e edição dos textos antigos, economia, antropologia dos povos pré-históricos, história propriamente dita, e por aí fora. E assim como Kant fez uma teoria filosófica que continha as descobertas ‘críticas’ de Newton, também o sistema hegeliano implicava na sua lógica as ciências do seu tempo na sua dimensão filosófica, que Kant todavia ‘suspendera’. De maneira diferente pois, ambos estes pensadores da transição entre a época clássica e a modernidade pensaram a filosofia ainda com as ciências; ao mesmo tempo que Kant contribuíu para separar as ciências da filosofia e deixar-lhes um espaço de inovação mais liberto de preocupações metafísicas, consoante a constante reclamação ‘positivista’ dos sábios.
4. Mas não era possível impedir que perdurassem preconceitos filosóficos nas evidências não questionadas desses sábios, uma boa parte das dificuldades das grandes descobertas científicas implicando um verdadeiro trabalho filosófico da parte deles contra preconceitos tradicionais, trabalho critico esse constitutivo do que Kuhn chamou revolução dos paradigmas. Após o grande desenvolvimento científico dos dois últimos séculos, encontramo-nos na situação oposta, que dá a perceber que a suspensão kantiana da dimensão filosófica das ciências deixou de ser fecunda: diante da imensa fragmentarização dos saberes científicos em especialidades infindas, a crescente reclamação de interdisciplinaridade estimula a recuperar essa dimensão filosófica nas novas ciências e a formular uma fenomenologia, uma descrição dos fenómenos em que as principais descobertas científicas tenham também um lugar filosófico. É que é fácil de dizer como a filosofia europeia, construída, tanto a dita racionalista como a dita empirista, em torno do ‘sujeito’ ou da ‘consciência’, que substituíram a ‘alma’ na sua dupla oposição, tanto ao corpo como ao mundo dito exterior, essa filosofia estava (está ainda em muitos discursos) carente das dimensões dos humanos que assim estavam excluídas: a um tal sujeito sem corpo nem sociedade nem linguagem nem sexualidade submetida à lei era necessário recorrer às respectivas ciências, biologia, antropologia, linguística, psicanálise, para se poder fazer uma abordagem fenomenológica dos humanos, em prol duma articulação dos saberes, de uma tentativa de os unificar por dentro deles, digamos, unificação filosófica dos saberes científicos, revelando uma mesma fenomenologia nas grandes descobertas científicas do século XX. A esta tentativa chamei filosofia com ciências ou fenomenologia reformulada[3]. Assim se me vou ocupar aqui de biologia, é porque esta filosofia de que me reclamo foi elaborada lendo livros de biologia e neurologia, além de outras ciências.
5. Digamos que há quatro grandes domínios ‘históricos’ da realidade de que se ocupam as ciências. 1) o domínio da gravitação: a história da formação dos astros, os seus fenómenos caracterizando-se pelos núcleos atómicos de protões e neutrões; 2) o domínio da alimentação: a evolução dos vivos, caracterizados pelo ADN; 3) o domínio da habitação: a história das sociedades humanas, caracterizadas pelas unidades locais de habitação e os paradigmas dos seus usos; 4) o domínio da inscrição: a história (ocidental) dos textos literários, filosóficos e científicos, caracterizados pelo alfabeto.
6. Acontece que estas quatro ‘histórias’ foram todas passíveis de inúmeras contingências e frequentes convergências, como T. Avelar[4] mostra ser verdade da evolução, que contesta a existência persistente do pressuposto finalista em muitos biólogos, o qual é obviamente de origem filosófica. Essa leitura levou-me a debruçar-me sobre um outro pressuposto filosófico (também de cariz antropocêntrico) ignorado dos biólogos, que ela própria partilha (cf § 18). Ora, o a todos os títulos notável Livro da Consciência de A. Damásio[5] mostra que a neurologia actual também partilha desse pressuposto filosófico da restante biologia, sendo-lhe proposto em diálogo o motivo heideggeriano de ser no mundo para ajudar a uma melhor fenomenologia destas questões. Parece com efeito que aí reside uma grande dificuldade, lugar de tantos diálogos de surdos, já que este tipo de pressupostos corresponde a evidências não questionadas, que fazem parte da própria maneira de colocar as questões, daquilo a que Althusser chamou “filosofia espontânea dos sábios”. Esses pressupostos ou preconceitos foram herdados pelas ciências do seu passado filosófico sem que os cientistas o saibam, receberam-nos - ‘sujeito / objecto’ e respectiva ‘representação’, para assinalar o mais insidioso -, recebemo-los no liceu, nas aulas de ciências e outras, não só nas de filosofia propriamente dita. Ora, acontece que Heidegger e Derrida nos permitiram tornear tais pressupostos, como também as próprias grandes descobertas científicas necessitam dessa crítica para se articularem umas com as outras, se unificarem. É por isso que alguém trabalhando em filosofia pode ousar entrar em questões de especialistas sem o ser, a partir da sua outra especialidade (tendo obtido todavia uma licenciatura em engenharia civil na sua juventude).

II ––  UM PRECONCEITO FILOSÓFICO NO PARADIGMA DAS BIOLOGIAS
A) Selecção natural e lei da selva (diálogo com Teresa Avelar)
7. Gostei muito da clareza argumentativa do livro de Teresa Avelar (T. A.), da sua tese sobre o papel quer da contingência quer das convergências frequentes na evolução dos vivos, do carácter único e irrepetível desta. Bate-se assim contra os criacionismos anacrónicos, mas também contra o que diz ser um preconceito antropocêntrico de muitos biólogos evolucionistas, que colocam os humanos como ‘cúmulo da evolução’ dos animais. Já o filósofo Deleuze tinha nos anos 70 proposto substituir o esquema clássico da árvore genealógica hierárquica pelo do rizoma[6], como T. A. fala de arbusto. Assim como na história dos humanos há progressos (tecnológicos nomeadamente) sem progressismo[7], também a evolução se fez e se faz sem evolucionismo.
A lei da selva comanda as anatomias animais
8. Como é costume entre os biólogos, T. A. fala da “selecção natural" como um mecanismo, como se tivesse peças ou elementos diversos e uma fonte energética, o que manifestamente não é o caso. Digamos que se trata duma lógica imanente aos processos biológicos e ecológicos, uma selecção relativa às interacções entre organismos, que estes sim, podem ser ditos mecanismos. Há aliás quem ache que a selecção natural é uma explicação que se pode dizer tautológica: ela selecciona os que sobrevivem como aqueles que se mostraram capazes de sobreviver. A sua grande importância científica reside na imanência (biológica) da sua lógica, na rejeição crítica de pressupostos finalistas de ordem metafísica, filosófica ou teológica: ela ‘obriga’ o biólogo (ainda que seja crente!) a argumentar estritamente em termos de mecanismos de ordem biológica. E um dos grandes interesses do texto de T. A. é o de mostrar, com exemplos variados, que não é só o chamado criacionismo que é rejeitado, mas também a tendência, que se pode chamar ‘finalismo humanista’, de muitos biólogos e divulgadores da teoria da evolução, o pressuposto antropocêntrico de que a evolução se destinou a fazer aparecer a espécie dos humanos.
9. A caracterização inadequada mas reiterada da selecção natural como mecanismo incita a procurar saber se haverá algo como uma lei fenomenológica a que obedeçam os mecanismos biológicos, que possa esclarecer melhor sobre o que é que se exerce a selecção natural. Ela andará em torno da questão crucial de todos os vivos, que implica a relação do organismo com o que está fora dele mas lhe é necessário, a saber a questão da alimentação através de outros organismos. Ora, à excepção da água, todas as moléculas que constituem as células contêm átomos de carbono. Poucos existindo à partida na água onde se gerou a vida, e o número de vivos tendo vindo sempre a crescer, isto só foi possível através da fotossíntese que os vai buscar ao CO2 da atmosfera para constituírem as moléculas das células das plantas, aonde os herbívoros os vão buscar e os carnívoros depois a estes, segundo o chamado ciclo do carbono (parecido com o da água). É este ciclo que implica o que se deve chamar literalmente lei da selva: os animais só sobrevivem comendo outros vivos, sejam plantas sejam animais. O que é assim um mundo de imensa contingência.
10. Qual é o interesse desta lei? Sem que eu saiba dizer como é que ela pode interessar as plantas, todos os animais minimamente extensos são estruturados segundo ela: deverão ter uma anatomia capaz de ‘caçar’ e de digerir plantas ou animais e capaz de fugir a ser caçado. Nos animais melhor conhecidos por um leigo em biologia, distinguem-se, além do esqueleto e da sexualidade, dois grandes tipos de sistemas de órgãos: a) os que têm a ver com a digestão dos alimentos e com a circulação do sangue em equilíbrio homeostático que leva as moléculas digeridas e o oxigénio da respiração a todas as suas células, para que estas operem o seu metabolismo; b) os que têm a ver com a caça e a fuga, sistema neuronal (órgãos de percepção do exterior e interior, cérebro, nervos) e muscular da mobilidade. Se tomarmos o exemplo dum mecanismo, um automóvel, percebe-se alguma analogia conceptual: além dos cilindros do motor que transformam a energia, todos os órgãos do automóvel são calculados para circularem nas estradas, virarem à direita ou à esquerda, travarem, recuarem, acelerarem, etc., em função de situações regidas pela lei do tráfego, que não diz respeito só ao ‘meu’ automóvel mas a todos os que circulam e tem essencialmente a ver com situações aleatórias[8]. Esta lei determina todos os projectos laboratoriais dos engenheiros das fábricas de automóveis e tem como consequência lógica que todas as regras científicas (físicas e químicas) que jogam nas peças da máquina estão ao serviço duma condução essencialmente aleatória. O mesmo se passa com a lei da selva, obviamente mais complexa: ela determina todos os órgãos da anatomia dos animais minimamente extensos, e as regras bioquímicas, anatómicas e histológicas da constituição dos organismos respondem igualmente ao aleatório das situações de caça e de fuga.
Passar do ‘ambiente’ à cena ecológica
11. Todos os biólogos sabem isto, que eu deduzi do que li em livros de divulgação, e se digo ‘deduzi’, é por não o ter encontrado explicitado, ainda que sem a designação que lhe dei (a expressão ‘lei da selva’ é antiga, mas só se usa metaforicamente), não encontrei nunca esta explicitação da economia da alimentação. Espanta-me que na literatura de divulgação biológica que li esta economia estrutural da biologia animal nunca tenha sido aflorada: tratar-se-á de outro preconceito filosófico que fará parte da teoria do paradigma dominante da biologia actual. Ele assinala-se no próprio texto de T. A., quando falando do “ambiente”, diz que este “inclui não só factores como temperatura, humidade, etc., mas outros organismos: predadores, presas, parasitas, etc.” (p. 32). Se se disser que a ‘temperatura’ e a ‘humidade’, o clima em geral, assim como a mineralogia do ecossistema, são exemplos normais de ‘ambiente’ no que este tem de exterior ou de ‘inerte’ em relação ao processo da reprodução das espécies, de não controlável por estas, percebe-se claramente que ‘predadores’ e ‘presas’ correspondem a uma categoria completamente diferente: todos os organismos animais são predadores e podem ser presas! É a lei da selva que claramente escapa a T. A., o que mostra que há que trabalhar este conceito de ambiente, substituí-lo, por exemplo, pelo de cena ecológica.
12. Com que vantagem? A de mudar o olhar sobre o que fazem as ciências e sobre o papel estrutural do laboratório nelas: o que justifica a necessidade deste é a redução de factores aleatórios da cena para a criação de condições de determinação que permitam constatar ‘causas e efeitos’ de tipo científico, digamos de forma simplista. Mas há um segundo tempo, o da restituição do fenómeno observado à cena ecológica, em que importa ter esta em conta como referência teórica, a cena onde plantas e animais de espécies muito diferentes se reproduzem em concorrência necessária (ou aliança, caso das plantas e insectos de que T. A. fala, p. 72-4), segundo uma lei – que também não é um ‘mecanismo’ mas que rege a estrutura dos mecanismos – que me parece ser o grande factor da evolução. A selecção natural continua a ser uma descoberta histórica inestimável enquanto lógica imanente da evolução para recusar explicações extrínsecas aos mecanismos biológicos, sempre útil nestes tempos de criacionismos anacrónicos mas militantes nas Américas.
13. O que me escandaliza na literatura bio e neurológica que li e em tantas referências que se lêem por todo o lado, é, nunca por nunca ser, ter encontrado teorizada a transição da biologia das células à anatomia. Julgo poder deduzir da literatura biológica que li, que, à excepção das glândulas endócrinas e equivalentes, as células especializadas , além de se reproduzirem, não fazem mais nada senão reconstituírem algumas das suas proteínas, moléculas muito extensas e por isso frágeis, sempre ameaçadas de se desintegrarem em componentes mais estáveis e que é necessário repor para que as células possam fazer o seu trabalho especializado no seu tecido e órgão. Ou seja as ‘funções’ do ADN são, desde os unicelulares, internas à própria célula de acordo com a sua especialização anatómica nos organismos. Ora, é ao nível da boa anatomia clássica que se processam os comportamentos na cena ecológica, segundo os seus aleatórios, os quais comportamentos dependem do conjunto do organismo regulado cerebralmente e, nos humanos, dos usos que se aprenderam, linguagem incluída, os quais, ser no mundo, são abertos a várias possibilidades. Os biólogos moleculares entusiasmaram-se com a descoberta dos genes e desataram a sugerir determinismos sobre tudo e mais alguma coisa (inteligência, homossexualidade, que sei eu)[9].
Conclusão fenomenológica: uma biologia de seres no mundo
14. A grande mutação filosófica que aqui me guia foi devida ao filósofo M. Heidegger que propôs em Ser e Tempo[10], que os humanos, em vez de ‘alma e corpo’, espíritos, mentes, sujeitos, consciências, são seres no mundo, ek-sistentes fora deles. O que a biologia comprova: tudo em nós vem de fora, as moléculas de que somos feitos vieram de comermos outros vivos, e também as coisas que pensamos vêm de termos aprendido a falar e a pensar com os outros, o que sabemos fazer com mais ou menos habilidade (comer à mesa, lavar os dentes, trabalhar num computador) aprendemos ‘no mundo’ fora de nós, vendo os outros fazerem. É a sociedade, que já existe quando nascemos, que nos ‘faz doação’, complementando a ‘doação’ da espécie humana na cena ecológica. Somos antes de mais seres tribais (família e amigos), é a escola, os livros e os médias que nos fazem cosmopolitas. Voltaremos adiante à questão.
15. O novo paradigma que aqui se propõe considera a cena ecológica  como prévia  a cada organismo animal para poder dar conta de cada espécie e da descrição da anatomia e dos genes de cada organismo: tal como o engenheiro de automóveis experimenta peças em seu laboratório com os olhos teóricos postos na estrada onde ele vai circular, também as descobertas laboratoriais de relações de causalidade entre elementos duma dada anatomia ou fisiologia animal são para serem teorizadas com o olhar sobre a cena ecológica e a sua lei da selva. O extremo oposto encontrei-o num autor em voga nos anos 80 e 90, F. Varela[11], que propôs o conceito de auto-poiético. Tudo se explicaria a partir da lógica interna do organismo (autopoiético: faz-se a si próprio), tudo o que tem a ver com o ‘fora’ dessa lógica seria segundo[12]. Aqui, é de ‘fora’, da cena ecológica, que vem o autopoiético, embora esse ‘vir de fora’ seja apagado como condição da autonomia do organismo (e é por isso que os empiristas não dão por ela). Sucede exactamente o mesmo connosco: tudo, desde o óvulo fecundado, nos vem de fora (alimentação e aprendizagem) mas de maneira a que esse vir de fora seja não consciente, apagado (os sonhos lembram algo desse apagado reelaborado): tudo o que nos é ‘próprio’, foi-nos doado por outros, desde as moléculas das nossas células. A concepção antropocêntrica aqui criticada surgiu para substituir o teocentrismo medieval; a filosofia europeia do sec. XVII (Descartes é o mais conhecido, mas os seus críticos empiristas também incluídos) elaborou-a como interioridade, ‘eu que pensa’, depois ‘sujeito’, ‘consciência’, ‘homem’, etc., em oposição à exterioridade, o ‘objecto’, o mundo, o dito ‘ambiente’. Preconceito filosófico de cariz antropocêntrico: como se pensa o humano, também cada animal. A isto Heidegger contrapôs o humano como ser no mundo, que eu generalizo, com as devidas diferenças, aos animais em geral. Nos textos de 2007 e 2009, proponho que o Ereignis de 1962 permite interpretar o motivo de espécie biológica (no seio do de cena ecológica) como o que faz doação dos acontecimentos dizendo respeito aos indivíduos dessa espécie. A argumentação não pode ser aqui resumida, mas ela esclarece a maneira como Heidegger ultrapassou a oposição aristotélica entre ousia e acidentes, entre ser e tempo.

B) Cérebro, mente e mundo : dar o braço a torcer, mas... (diálogo com António Damásio)
Na Neurologia como na Biologia
16. O mesmo preconceito se encontra nos paradigmas de Neurologia, como tentei ilustrar no meu texto de 2007, num capítulo (11. 30-46) que articula O Homem neuronal de J.-P. Changeux[13] com O erro de Descartes de A. Damásio (A. D.)[14], um oferecendo, na sua teoria dos grafos, uma bela base para a abordagem da memória e o outro, na sua teoria do papel das emoções nas decisões, aquilo a que chamei uma neurologia do acontecimento. O recente livro de A. D., O livro da consciência, é deslumbrante para quem tem a paixão de compreender e sabe como estas questões estão ainda longe de esclarecimentos completos. Ele tem a bela ousadia de colocar a questão da emergência da mente, consciência e Eu (self) nos sistemas neuronais, a partir dos protozoários eucariotas como a ameba até aos humanos, com a ambição de alcançar a globalidade do que está em jogo, apesar de saber das lacunas e enigmas que persistem.
17. Mas no entanto as suas hipóteses de trabalho, sem as quais o projecto seria impossível, manifestadas nas nomeações escolhidas para as várias instâncias e etapas cerebrais, são, dum ponto de vista fenomenológico, inadequadas à excelência do trabalho descritivo, não tanto no detalhe (que o leitor leigo não sabe avaliar, em que confia) mas nas articulações teóricas. Ora, essa inadequação releva do preconceito filosófico de que foi questão no diálogo com T. A. É o sentimento agudo desse desfasamento – entre a audácia conseguida do neurólogo no laboratório e o ‘handicap’ (fenomenológico) da teoria que assombra a performance – que me move a escrita, que buscaria abrir um horizonte que possa porventura tornar mais fecunda ainda esta espantosa aventura em neurologia. Claro que não é o investigador notável que é António Damásio que está aqui em questão (antes pelo contrário, é a sua clareza de apresentação, que voltou à estaca zero da neurologia, começando tudo pelo princípio, que permite esta tentativa de desenhar o preconceito filosófico) mas toda a literatura biológica e neurológica que pude ler. Com efeito, uma parte importante da apreciação crítica a fazer-lhe reenvia para o capítulo anterior, ao diálogo com T. A., escrito aliás antes da leitura do Livro da Consciência, assim como parece óbvio que a bibliografia que cita o confirma neste preconceito filosófico herdado da filosofia greco-cristã-europeia, do que Heidegger chamou ontoteologia[15]. Será possível discutir sem diálogo de surdos, de forma a que seja frutífero para a neurobiologia? Não é seguro, já que quando investigadores em biologia como em linguística (o cartesianismo de Chomsky, por exemplo), história ou antropologia, e sem dúvida também em filosofia, andam já há muito em questões destas, vão-se sedimentando evidências antigas que jogam nas descobertas que se fazem, nos argumentos que se constroem. Mas como A. D. mostrou já que está atento a implicações filosóficas possíveis no domínio em que trabalha, Descartes e Spinoza aparecem em títulos dos seus livros, seria difícil encontrar um melhor neurólogo para este diálogo (além de falar português). Assim esteja eu à altura.
Nós, animais, somos seres no mundo
18. Esta afirmação central de fenomenologia biológica foi descrita a partir do § 7, fazendo-se a distinção entre dois sistemas, o da alimentação e o da mobilidade destinado antes de mais à caça e à fuga a ser caçado (§ 8). Creio que eles são relativamente autónomos um do outro, com dois órgãos apenas a pertencerem a ambos os sistemas: a boca e o cérebro. Aquela destacou-se da sua função essencial de preensão de animais ou plantas com os primatas, cujas mãos libertas se encarregaram da preensão (Leroi-Gourhain[16] ensinou como tal libertação na marcha bípede foi decisiva para o aumento da capacidade do crânio), mas com a aquisição da fala a boca voltou a ter um papel preponderante no sistema da mobilidade. Quanto ao cérebro, a sua dupla função em cada um dos dois sistemas – que não poderá ser ‘separada’, julgo – não só se manteve como conheceu desenvolvimentos muito grandes com as invenções de usos técnicos e das respectivas receitas faladas: dum ponto de vista biológico, haverá que sublinhar o que julgo ser a relativa estabilidade do sistema da alimentação dos humanos em contraste com as alterações do sistema da mobilidade, fortemente empenhada nos novos usos sociais. Estes, a linguagem incluída, são sem dúvida a grande manifestação do ser no mundo segundo Heidegger, o cuidado na habitação. E de tal maneira se tornou importante para os cérebros humanos, que as filosofias e as ciências privilegiaram a actividade intelectual, artística e espiritual: é desse privilégio que resulta o preconceito filosófico que na Neurologia tenderá a fazer do sistema neuronal humano um modelo laboratorial de que se procuram os antecedentes na evolução das espécies. Em A. D., é claramente afirmada a escolha do paradigma psicológico de William James, como Changeux, no Homem neuronal, privilegiava os filósofos empiristas do século XVIII. A. D. tem no entanto mais nítida percepção de que o cérebro pertence essencialmente ao sistema da alimentação, afirmando expressamente que a regulação da homeostasia do sangue é a grande função cerebral (p. 79-85)[17], embora o uso duma metafórica de gestão económica – “gestão vital”, “valor biológico” – assinale, à maneira dum sintoma, a ausência duma descrição da economia anatómica em termos da cena ecológica e da sua lei da selva. Esta noção ‘idealista’ de ‘valor’ contrasta com o grande rigor ‘materialista’ das suas descrições que seguem sempre a via anatómica, embora não contando com o ‘mundo’, com a cena ecológica, como factor de análise. É assim que o seu conceito mais forte parece ser o de ‘construção’, de que o actor principal  é o ‘cérebro’, que ‘constrói’ a mente, a consciência e o Eu (Self). Ora, a sua dupla pertença aos dois sistemas deveria levar a caracterizá-lo como um órgão simultaneamente biológico e social, o que diz a diferença maior desta proposta fenomenológica, a crítica do preconceito filosófico: o organismo é visto apenas nele, a cena ecológica (o mundo) não passa dum mero ‘ambiente’ sem incidência biológica significativa nessa ‘construção’.
Onde há neurónios, há mente
19. Para se entender a dupla função do cérebro enquanto regulador vital dum organismo no mundo da cena ecológica, há que começar por indagar da especificidade dos neurónios enquanto células: pelas suas muitas ‘sinapses’, eles agarram-se (aptô) uns com (sun) os outros em redes. O filósofo Derrida escreveu que “a auto-afectação é uma estrutura universal da experiência. Qualquer vivo é capaz de auto-afectação. E só um ser capaz de se auto-afectar, pode deixar-se afectar pelo outro em geral. [...] Esta possibilidade – outro nome da ‘vida’ – é uma estrutura geral articulada pela história da vida e dando lugar a operações complexas e hierarquizadas”[18]. Esta capacidade do ser vivo permite caracterizar os neurónios como as células que afectam e são afectadas umas pelas as outras, formando uma grande rede de auto-afectação, e também de hetero-afectação por outros vivos na cena ecológica, como presas possíveis, predadores de que se foge, eventuais aliados. As várias referências de A. D. aos “córtices sensoriais iniciais” (p. 377-8) e “primários” sublinham o carácter ‘inicial’ desta hetero-afectação, assim como o esquema da p. 381: “o neurónio NEU apercebe-se do objecto OB e informa o neurónio ZADIG, o qual impulsiona a fibra muscular MUSC e provoca o movimento” e segue pela evolução acima, num processo que ‘começa’ pelo encontro entre o neurónio e a cena ecológica (aonde se encontra o ‘objecto’, termo filosófico aqui tão feio).
20. O livro termina, no seu último apêndice, por evocar a questão da equivalência entre estados mentais e estados cerebrais (ou neuronais), que diz ser uma hipótese útil e não uma certeza, sendo “improvável que alguma vez venhamos a conhecer todos os fenómenos neuronais associados a um estado mental, mesmo sendo este simples”, desejando que venham a ser “encarados como as duas faces do mesmo processo” (p. 385, eu subl.). Eis o ponto em que o fenomenólogo gostaria de dar uma ajuda ao neurólogo: é que a sua demonstração convenceu-o do bem fundado da expressão sublinhada. É aonde se dá o braço a torcer. Nos textos referidos de 2007 (11.44-6) e 2009 (§§ 100-101), foi recusada a noção de ‘mente’ por razões de ordem filosófica: a diferença cérebro / mente seria (e é-o certamente em muitos textos) um resto da oposição corpo / alma. Propunha então substituí-la pela diferença entre os fenómenos cerebrais nos neurónios e os discursos e usos sociais correspondentes no mundo, os métodos de abordagem de uns e de outros sendo irredutíveis, relevando de ciências diferentes. A argumentação (2007, 6.3-11) fora conduzida sobre uma leitura de O sono e o sonho do neurólogo M. Jouvet[19], onde se contrasta claramente os sucessos neurológicos dizendo respeito aos mecanismos do sono e o insucesso flagrante relativo ao sonho (é preciso de cada vez acordar o paciente e indagar ‘subjectivamente’: estava a sonhar?), como testemunha o desalento das últimas páginas do livro. O sono ao neurólogo e suas aparelhagens, o sonho ao psicanalista que o recolhe do discurso do sonhador, carregado de ‘subjectividade’, como se diz. Aliás, as várias psicologias e linguísticas também estudam fenómenos cerebrais, quer discursivos quer comportamentais. Ora bem, a definição de mente de A. D. levou-me a compreender esta duma forma muito estimulante: “as imagens – visuais, auditivas ou quaisquer outras – encontram-se disponíveis directamente mas apenas para o dono da mente em que ocorrem. São privadas e inobserváveis por terceiros” (p. 97, o autor sublinhou). Os termos ‘imagem’ e ‘dono’ serão discutidos (§§ 22 e 24), mas vê-se claramente o que é designado como mente: a auto-afectação do ‘dono’ do cérebro pelas ocorrências electro-químicas dos seus padrões neuronais. Esta seria uma maneira de entender a mente como uma das ‘faces’ do cérebro: a auto-afectação numa zona onde só nós é que sabemos, onde a aparelhagem neurológica, que se ocupa da outra ‘face’, não pode chegar[20]. Esta diferença entre cérebro (circuito neuronal de sinapses) e mente ou consciência só do próprio (auto-afectação do circuito, sua introspecção) é o ponto de irredutibilidade entre as duas metodologias, da neurologia e das psicologias[21], digamos. Exemplo geral muito simples: o médico tem sempre que perguntar se ‘doi’, só o doente é que sabe (é ‘doer’ que dá a etimologia de ‘doente’!)
21. Só que a mente, sendo assim definida pela internalidade da rede neuronal, é correlativa de qualquer rede mínima, desde as primeiras espécies dispondo de neurónios; não é portanto ‘construída’ pelo cérebro: como A. D. diz, ela é uma “das duas faces do mesmo processo”. E a dizer verdade, mente e consciência parecem ser dois nomes para a mesma ‘face’ do processo, a face internal a que só o próprio tem acesso, já que a noção de auto-afectação também é correlativa de ‘consciência de si e de outrem’, embora em graus diversos. Enquanto que um cão manifesta a sua abanando a cauda para os donos e ladrando para os desconhecidos, o que é que pode ser a mente ou a consciência dum mosquito, o que sabe ele de si? Ele fareja o sangue do meu braço como apetecível para a sua auto-reprodução e vem pousar-se nele, mas a ameaça da minha mão o esmagar fá-lo partir rapidamente, contendo a pulsão da fome para salvar a vida. Saberes elementares, certamente, aqueles que lhe são necessários, de que os seus neurónios o auto-afectam. A descrição das diversas etapas da evolução deveria adjectivar mente e consciência, como se fez para o ‘eu’, recorrendo, por exemplo, às respectivas proezas no mundo, correlativas de ganhos anatómicos.
O cérebro é um órgão biológico e social
22. Haverá ‘imagens’ na mente? (§ 20). O termo tem o inconveniente (mas qualquer outro o terá) de fazer pensar que a mente ‘vê’ ou ‘ouve’ imagens tal como os olhos e os ouvidos, quando parece mais claro que se tratará da correlação entre ocorrências electro-químicas cerebrais: por exemplo, as dos córtices associativos e as da “actividade perto dos pontos onde os sinais sensoriais entram no córtex” (p. 191). Só se ‘veria’ com o cérebro mas nos olhos, na sua região próxima, como parece que é neles que se sonha. Só se ‘ouviria’ com o cérebro mas nos ouvidos. Ora bem, a diferença entre as ‘imagens’ a que estamos habituados e as que nunca antes tínhamos visto põe a questão decisiva da memória, correlativa do ser no mundo. A concepção dela como ‘armazém’ parece-me inadequada, assim como a de ‘mapa’ de imagens, que serve, parece, para corresponder à de padrão neuronal electro-químico, tal como observado nas novas maquinarias com ecrãs, aquilo a que a tradição chamava ‘fluxo nervoso’, que se acende e se apaga, sem estabilidade. Ora, J.-P. Changeux foi buscar à matemática o conceito de grafo, que inclui a noção de gravação, de escrita que perdura, e que seria uma solução extremamente elegante da questão da memória. Esta é uma estabilidade apagada, que está lá mas esquecida, vem (sou-venir, diz-se em francês) por ‘associação de ideias’ com as do fluxo nervoso, e apenas por pequenos pacotes de ‘recordações’. Como correlacionar estes dois motivos, grafo e fluxo? Pela metáfora duma senda aberta numa floresta, um caminho que se abre dificilmente mas se reforça à medida que é pisado: também assim seriam os grafos derivados da aprendizagem, fluxos estabilizando lentamente sinapses na floresta neuronal que serão seguidas depois por novos fluxos que são assim reconhecidos. De facto, é fácil ter a experiência de que só se conhece o que se reconhece: ao chegar a uma cidade asiática fica-se perdido, assim como o não-melómano que se habituou a ouvir algumas poucas músicas clássicas, consegue apreciá-las, enquanto que se distrai irremediavelmente a ouvir peças desconhecidas. Não há ‘primeira vez’ nestas coisas, a memória não é um acrescento, tal como a mente, ela é parte integrante da estrutura do neuronal no mundo: qualquer pequeno núcleo de neurónios, como o do mosquito, só tem eficácia para a auto-reprodução do organismo se for capaz de ‘reagir’ ao mundo. A aprendizagem só tendo sentido por criar memória, ele terá que ter grafos de aprendizagem, embora seja muito difícil saber como, mas que não podem ser inatos, como outros o são (“as vastas redes de disposições que operam os nossos mecanismos básicos de gestão vital”, p. 173). Ora, na página 172 o autor tinha dado um exemplo de impacto impreciso (não ‘mapas’, na sua terminologia) de algo que implica em todo o caso aprendizagem de movimentos. Pode-se pôr a questão de saber se as “disposições não conscientes” (não teriam ‘mente’?) que foram “educadas” (p. 332) não terão sido ‘conscientes’ durante a sua aprendizagem e esquecidas depois, recobertos os seus grafos em seguida por outros mais fortes (por regra, esquecemos os primeiros anos da nossa infância, mas há quem consiga retomar recordações muito antigas). Isso iria aliás ao encontro de Freud, em que a ‘força’ (do interdito do incesto) implica recalcamento.
23. Este motivo da diferença entre grafo e fluxo permite elucidar fenomenologicamente uma outra questão decisiva, a da formação do Eu que A. D. supõe ‘criado’ pelo cérebro. Começo com um exemplo simples: o sotaque duma voz transmontana implica que ela foi aprendida da sua tribo, é social, mas os seus próximos reconhecem-na ao telefone como a voz de Fulano (‘sou eu’), como individual. A voz tem componentes sociais e individuais indissociáveis, foi recebida (passiva) e é pessoal (activa). O mesmo se passa com qualquer aprendizagem: aprender é sempre aprender (passivo) a fazer (activo), e o que aprendemos são os usos sociais da nossa tribo, num primeiro tempo eles são-nos estranhos, vindos de fora, grafados ganham habilidade, tornam-se espon­tâneos, do próprio, segundo o esquema admirável dum mecanismo de simulação com poupança de energia e que pode ser reactivado em caso de emergência que Damásio apresentou em O erro de Descartes[22]. São estes usos que fazem o Eu, mas não ‘no’ ou ‘com’ o cérebro, formulações que deixariam este ‘passivo’ em sua rede neuronal: o cérebro grafado pelos usos do mundo é o Eu. Seja um exemplo com os números. Os nomes destes, além dos 10 primeiros, ‘um’, ‘dois’, ‘dez’, ‘cem’, ‘mil’ e vários sufixos (-ze, -enta, -entos), são compostos a partir uns dos outros: 37 supõe 3x10+7. Se todos os números tivessem um nome próprio como têm ‘um’, ‘dois’, ‘três’, ‘dez’ (por exemplo, os da tabela periódica: ‘sódio’ em vez de 11, ‘cálcio’ em vez de 20, ‘ferro’ em vez de 25, ‘cobre’ em vez de 29, etc.), era impossível fazer contas com eles. O que significa que, ao aprendermos a fazer contas, a lógica social deles ‘pensa’ no nosso ‘pensar’, o que veio de fora pensa no nosso dentro (Belo, 2007, 11.34-5). Com as línguas e suas regras estritas (fonológicas, sintácticas, semânticas, textuais) passa-se o mesmo em mais complicado: estas regras de ‘comunicação’, como se diz, são necessárias para que os outros nos entendam, mas estão prodigiosamente ao serviço do aleatório de qualquer conversa ou escrita (como um automóvel e um organismo animal, § 5). O cérebro é o órgão biológico e social de seres no mundo, deste todo a que chamamos Eu justamente para o destacar do mundo (coisa de que japoneses e chineses, cujas línguas ignoravam o pronome, não pareciam sentir a falta). Mas os usos e a língua deste mundo tribal inscrevem-se, grafam-se nos neurónios, o que faz com que a consciência que estes têm de si é de mundo que é feita, tribais que somos: o nosso mundo no coração do nosso Eu.
A questão do filósofo: o que é o humano?
24. Quanto ao termo ‘dono’ (§ 20), a questão complica-se com a multiplicação de instâncias: o cérebro, a mente, a consciência, a memória, o eu, o organismo, o corpo. Eu diria em vez de ‘dono’: o animal no seu mundo. Como pensá-lo sem homúnculo, sem mente oposta a cérebro[23]? Há que ter em conta que a rede neuronal que os neurólogos nos revelam é composta de células, de material bioquímico por onde passam correntes de electricidade iónica[24]. É deste material que é feita a nossa subjectividade, desde os órgãos de percepção aos nervos dos músculos do movimento. Seja o exemplo das nossas palavras que se transformam em electricidade por meio de um telefone e voltam a palavras sonoras por outro telefone. Ou o que escrevo num teclado, vira electricidade, sofre transformações segundo o programa de software e o operador e volta ao ecrã do computador. A corrente eléctrica é o mesmo do que as palavras mas num outro suporte, estas aliás inacessíveis sem os ‘transformadores’, telefone, teclado e ecrã. Ora, no que diz respeito ao nosso cérebro, os transformadores para os outros são os ouvidos e a fonação, os quais para cada um de nós não são necessários: sabemos o que pensamos nas nossas mentes ao mesmo tempo em que o pensamos, pensar é ser-se auto-afectado pelo que se pensa (grande liberdade nossa, já que, sendo ‘mente’, podemos mentir aos outros, só nós é que sabemos), tal e qual como se é auto-afectado pelo que se diz a outrem. Ora, a noção de hetero-afectação nos olhos, ouvidos, pele, etc., que se torna auto-afectação (vemos e ouvimos o outro que nos fala), implica que a relação entre ambas não se perca quando ‘pensamos’ mentalmente no que vimos, ouvimos, sentimos na pele (é nestes órgãos sensoriais que há ‘imagens’, sons, sensações, segundo a minha interpretação da p. 191 de A. D., como há aliás também palavras abstractas, frases lidas ou ouvidas, o ouvir-se dizer, o saber-se a fazer). É a condição necessária para que os ‘conteúdos’ da consciência, as ‘imagens’ de A. D., a outra face da electro-química, sejam pensamento do mundo, a partir do que se aprendeu, é esta a condição para se evitar o dualismo mente / mundo, desiderato essencial da fenomenologia desde Husserl, para se ter consciência das próprias coisas (e não de ‘representações’, como se diz habitualmente). Resumindo e concluindo, o neuronal é o ‘cabo químico eléctrico’ entre órgãos periféricos e órgãos de mobilidade com actividade variada segundo os usos sociais, cabo-rede bem mais complexo do que o hardware dos computadores, já que é software que se grafa para se tornar parte do hardware.
25. O que há de deslumbrante na descrição de A. D., é permitir perceber algo do funcionamento extremamente complexo desta subjectividade neuronal no mundo e da sua reserva mental, inacessível a estranhos, ainda que amantes. Sem dúvida que o filósofo fica despojado de parte da sua capacidade de falar disto, já que não é neurólogo, mas eu encontrei aqui uma nova e fascinante resposta a uma das mais velhas questões da filosofia: quem somos nós? Bem haja, Damásio!
Conclusão fenomenológica: compreensão e linguagem relevam de evoluções diferentes
26. A boca é o grande órgão de preensão[25] de presas, como é claramente visível nos peixes e nos répteis, nos seus ataques sobre elas. Muitas espécies são capazes de estratégias que implicam reter a fome para esperar e só atacar no momento propício: digamos que são capazes de com-preensão, de juntar (com-) gestos e momentos em vista da actividade de -preensão. Mas todos são lançados para as suas presas por pulsões hormonais, afectados pelo seu mundo (também pelo medo de serem caçados, busca de parceiros, etc.). Eis o que nos permite alçarmo-nos ao Ser e Tempo de Heidegger que caracteriza os humanos como seres no mundo por uma tripla dimensão existenciária: 1) o estar situado, projectado no mundo (Befindlichkeit), 2) a compreensão e 3) o discurso que interpreta 1) e 2). Se dissermos que 1) corresponde à hetero-afectação emocional, percebe-se que ela e a compreensão, manifestada esta no saber-fazer dos usos tribais, representam nos humanos a herança filogenética de mamíferos primatas, a que corresponderá um grande eixo cerebral[26] ligando os periféricos órgãos de visão às igualmente periféricas mãos, libertadas da marcha para manipularem. Quanto ao discurso, ele herda de outra linha filogenética, linguística esta, independente da primeira (Vygotsky) [27] já que variável com os povos: ela grafa-se por regra no hemisfério esquerdo apenas (áreas de Broca e Wernicke), correspondendo ao eixo cerebral que liga os ouvidos à fonação. Ou seja, o cérebro dos mamíferos (e portanto o dos humanos) não foi inventado para pensar[28], mas para com-preender certas actividades de caça e de defesa, sós ou colectivamente. Mas se nos bebés (área de investigação do psicólogo Vygotsky) estes dois eixos começam a estruturar-se no cérebro com autonomia relativa (ver e mexer antes de falar), em breve a preponderância da linguagem no aprender dos usos faz o verbal predominar na compreensão, o que não deixa de dificultar as análises neurológicas, já que chamamos ‘pensar’ ao conjunto de (2) e (3), compreensão discursiva, a que O erro de Descartes já acrescentara a emoção (1) [29].
27. Como joga este ganhar de preponderância? Com a língua, recebemos as palavras e os saberes dos outros, recebemos esta possibilidade inaudita de tornar ‘presentes’ coisas que estão fora da vista, de contar histórias do passado ou projectar actividades para o futuro. Ora, à medida que o Eu vai falando, vai encontrando nessa memória recebida do seu mundo um verdadeiro repositório de saber socialmente acumulado que lhe alçará a inteligência duma forma muito mais acelerada do que se o seu cérebro tivesse que descobrir tudo sozinho, tivesse que construir sozinho o Eu.
28. O título inglês do livro, Self comes to mind, prefere ‘mente’ onde o título português prefere ‘consciência’. Se os dois termos designam o mesmo, pode ser preferível guardar ‘consciência’ em vez de ‘mente’. Este termo é facilmente oponível a cérebro como alma a corpo, dualismo a que obviamente A. D. procura escapar, e creio que consegue, a ‘mente’ presta-se a ser ‘outra coisa’ além do cérebro. Enquanto que o outro termo, que conota hoje a consciência de si, o saber (scire) con-sigo[30], diz o ‘verbo’ dos neurónios, a função deles, o seu saber a respeito de si e (sobretudo) do mundo, tal como quando se diz ‘vejo esta casa’, ‘ouço esta canção’, ‘sinto a tua mão’, tudo formas de saber. ‘Consciência’ diz portanto tanto a passividade do ‘eu’ face ao mundo como a actividade do ‘eu’ que sabe, e diz ainda o que, de si e do mundo, só ele sabe; o ‘con-’ dirá a indissociabilidade do passivo e do activo neste ‘saber’. Derrida, num livro em que lê Husserl, diz que “a voz é a consciência” (1967b, p. 89), que esta é o ser-se auto-afectado pela sua voz, e mais adiante que “o ouvir-se falar [ou seja a consciência] não é a interioridade dum dentro fechado sobre si, é a abertura irredutível [do fora] no dentro, o olho e o mundo na palavra (parole[31])” (idem, p. 96).
29. O que permite uma última consideração sobre o ‘sujeito do pensamento’ : entre cérebro, mente, consciência e eu, quem pensa? Ninguém diz ‘o meu cérebro pensa que...’, dizemos ‘eu penso que...’, ou ‘Fulano pensa que...’. Quando usamos o plural, dizendo ‘pensamos que...’, referimo-nos a um grupo, um ‘nós’ em redor do ‘eu’ que fala. Mas como o pensamento ou a fala são sempre, em certo sentido, uma maneira de tomar distância em relação aos outros, o ‘nós’ raramente dirá a verdade da aprendizagem, a saber, que os outros, pois que deles aprendemos, ‘pensam’ também no que ‘eu penso’. Haveria nesta omissão um outro “erro de Descartes”, mais do que ‘penso, logo existo’ – fórmula certa enquanto consciência do pensante enquanto tal, em sua mente a que só ele tem acesso (como estou feliz por essa afirmação repetida de Damásio) –, haveria porventura que dizer qualquer coisa como ‘penso, logo sou da minha tribo que me deu o pensar’. Seria essa a afirmação da criança que começa a aprender a falar, mas é justamente esta afirmação que se torna ‘inconsciente’, recoberta pelas aprendizagens posteriores, em que o ‘Eu’ será por vezes levado a uma certa rebeldia contra a lei da sua tribo (como Freud nos ensinou). Foi assim a rebeldia de Descartes, ela espelha o forte acento individualista da civilização europeia (ignorado das grandes civilizações asiáticas), cunhado pela alma que o cristianismo herdou de Platão. É desta rebeldia que Damásio, honra lhe seja, fez a teoria neuronal, desta ‘verdade de Descartes’ que Heidegger questionou. Indivíduo e sociedade não se opõem, Descartes e Heidegger são heranças a acolher em conjunto.


[1] Carta de 1610 in GALILÉE, G., Dialogues, Lettres choisies, trad., choix et préface de P.-H. Mi­chel, Paris, Hermann, 1966, p. 360.
[2] VUILLEMIN, Jules, Physique et métaphysique kantiennes, P.U.F., 1955
[3] BELO, Fernando, Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (2 volumes), 2007 (com índice pormenorizado das matérias) e La Philosophie avec Sciences au XXème siècle, 2009, ambos Paris, L’Harmattan. ZAGALO PEREIRA, Gonçalo, “Recensão” [do segundo título indicado], Revista Filosófica de Coimbra, Coimbra, 2010, nº 38, pp. 506-13.  O critério para decidir quais essas grandes descobertas é inerente ao projecto (www.filosofiamaisciencias.blogspot.com).
[4] AVELAR, Teresa, A evolução culmina no homem?, Lisboa, Bertrand, 2010
[5] DAMÁSIO, António, O livro da consciência, Paris, Círculo de Leitores, 2010
[6] DELEUZE, Gilles, Le rhizome, Paris, Minuit, 1975
[7] A chamada Idade Média representa uma regressão em relação às grandes civilizações da Antiguidade mediterrânica, cujos progressos a se­quência moderna europeia não repetiu.
[8] Precise-se que aleatório é diferente de acaso: que eu tenha que me desviar dum carro surgido repentinamente à minha esquerda, é aleatório, faz parte do possível na circulação automóvel; que o condutor desse carro seja um colega de liceu que nunca mais tinha visto é um acaso que não tem nada a ver com a lei do tráfego
[9] Por razões de espaço, fui obrigado a excluir uma parte da argumentação deste capítulo aduzida no Congresso.
[10] HEIDEGGER, Martin, Être et Temps, [1927], trad. E. Martineau, ed. hors-commerce, 1985
[11] VARELA, Francisco, Autonomie et connaissance, Essai sur le vi­vant, Paris, Seuil, 1989
[12] Eis uma citação dele que me pôs os cabelos em pé: “a reprodução e a evolução, assim como todos os fenómenos que decorrem delas, aparecem como fenómenos segundos, subordinados à existência e ao funcionamento autopoiético destes sistemas” (Varela, op. cit. p. 71).
[13] CHANGEUX, Jean-Pierre, L'homme neuronal, Paris, Fayard, 1983
[14] DAMÁSIO, António, L'erreur de Descartes, La raison des émotions, Paris, Odile Jacob, 1995

[15] Para filósofos : esta resulta da invenção da definição por Sócrates que implica que o definido seja arrancado ao seu contexto, como disse atrás ; Platão elevou o eidos, a forma visada desse definido, a entidades celestes e eternas, Formas ideais, que o cristianismo substituiu pela relação entre o Deus (teo) criador eterno e cada ente (onto) do mundo. A crítica de Aristóteles ao platonismo manteve a abstracção, o definido arrancado ao contexto, o seu conceito de essência sendo aliás platonizado no pensamento medieval. Ao Criador cada criatura, como ao sujeito o seu objecto: o que constitui a criatura ou o objecto não é tido em conta. Não basta substituir Deus pelo sujeito humano (antropocentrismo), se o ‘preconceito’ perdurar nas ciências que estudam os seus fenómenos no laboratório, isto é, objecto fora do contexto, da cena ecológica, e não têm esta em conta ao restituí-lo à cena.
[16] LEROY-GOURHAN, André, O Gesto e a Palavra. 1 - Técnica e linguagem, Lisboa, ed. 70, [1964]
[17] A grande demonstração desta tese encontrei-a no admirável VINCENT, Jean-Didier, Biologie des passions, Paris, Odile Jacob, 1986.
[18] DERRIDA, Jacques, De la Grammatologie, Paris, Minuit, 1967, p. 236. Em rigor, isto só parece valer para os animais, não para as plantas.
[19] JOUVET, Michel, Le sommeil et le rêve, Paris, Odile Jacob, 1992
[20] Changeux, por quem tenho grande veneração, escandalizou-me ao responder ‘sim’ à pergunta de Ana Gerschenfeld, se ‘vai ser possível um dia ler o pensamento’ (Público de 13/07/2010). Donde também o meu grande contentamento com esta noção de ‘mente’ de A. D.
[21] BELO, Fernando, « A irredubilidade metodológica entre Neurologia e Psicanálise », Phainomenon, Revista de Fenomenologia, Lisboa, 2008, nº 16-17, pp. 211-220
[22] P. 202 da ed. francesa; Belo, 2007, 11.41.
[23] The self and its brain é o título dum livro inenarrável dum prémio Nobel da medicina, secundado por um filósofo célebre, cuja filosofia se mostrou incapaz de acudir ao descalabro. ECCLES, John e POPPER, Karl, El Yo y su cérebro, Barcelona, Labor, 1980
[24] Que permite jogar com a química, iões de sódio e potássio nomeadamente, ao contrário da nossa electricidade industrial, de electrões, que não afectam quimicamente o cobre ou a fibra óptica.
[25] Do latim: acto de agarrar, prender.
[26] Detectável em ecrãs de neurologia?
[27] VYGOTSKY, Lev, Pensamento e linguagem, [1934], São Paulo, Martins Fontes, 1999
[28] Como parece ser o pressuposto do próprio nome que a si se deram as ‘ciências cognitivas’, que se articulam em torno da chamada ‘representação’ e da respectiva oposição objecto (representado no) sujeito (é essa oposição que o ‘ser no mundo’ desfaz). Infelizmente, Heidegger é de muito difícil acesso, mesmo aos filósofos, e tem fama de ser ‘contra’ as ciências (ver o meu Heidegger, pensador da Terra, § 89). A sua afirmação de que a ciência não pensa, que escandalizou com razão os cientistas, significa que o método experimental, medindo o espaço e o tempo, não permite pensar o que eles são, pensar à maneira da filosofia. Mas pode-se dizer que, para formularem as suas ‘teorias’, os cientistas pensam como filósofos.
[29] Não convirá opor ‘dois cérebros’, o antigo como ‘emocional’ e o neo-cortex como cognitivo, trata-se dum duplo cérebro; já Changeux (p. 72, 75) chamava a atenção para que os circuitos do neo-cortex, quando vêm dos órgãos periféricos da sensibilidade, passam pelo antigo antes de virem às áreas comuns, aonde as reflexões e as decisões se operam. Talvez houvesse que distinguir o químico (hormonal e neurotransmissor) e o eléctrico (fluxo), aquele do lado do ‘emocional’ e este do ‘racional’, mas sendo o trabalho deste sobre aquele que faria os grafos (a memória será de ordem química, parece óbvio). Se no cérebro antigo também há ‘electricidade iónica’, ele não pode ser só emocional, embora o seja preponderantemente (peixes e répteis quase só têm o antigo, o paleo-córtex, portanto este tem que ter inscrições do ‘mundo’ deles, senão seria inútil). A aprendizagem humana, aquilo que do social se inscreve no cerebral, tem que disciplinar o químico, inibir o emocional (Belo, 2007, 3. 15-17).
[30] Embora no latim dissesse o saber partilhado com outro, próximo, cúmplice.
[31] Fala, seja voz, seja discurso.