terça-feira, 15 de novembro de 2011

Recensão por Gonçalo Zagalo de Philosophie avec Sciences au XXème siècle

Nota de leitura: Fernando Belo, La philosophie avec sciences ao XXe siècle, L’Harmattan, Paris, 2009.

Integrado na colecção Pour comprendre da editora parisiense L’Harmattan, La philosophie avec sciences ao XXe siècle (2009), do filósofo português Fernando Belo, retoma algumas das teses fortes propostas anteriormente nos dois volumes publicados com o título Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida (L’Harmattan, 2007), servindo assim como mais um complemento ao projecto filosófico já então apresentado. E que projecto é esse? Tal como o próprio título indica, não se trata de uma análise epistemológica, mas sim de fazer uma filosofia com ciências, entendida como uma composição de saberes heterogéneos que permita encontrar no trabalho científico recursos para pensar filosoficamente (isto é, de um modo integrado) o funcionamento efectivo da pluralidade dos contextos que são objecto de investigação dos diversos saberes especializados das ciências regionais. Neste sentido, a filosofia com ciências recupera o problema husserliano da especialização dos saberes e consequente crise das ciências europeias (bem como o seu mote de «regresso às coisas mesmas»), mas segundo uma abordagem fenomenológica que se deixa contaminar pelos efeitos de composição que engendra com as diversas disciplinas sobre as quais se debruça, o que faz com que os motivos e as teses que o autor herda de Husserl, Heidegger e Derrida («os três grandes filósofos do século XX» [§ 188]) passem a exibir uma operatividade inédita. De resto, F. Belo caracteriza justamente a filosofia com ciências como uma fenomenologia, na medida em que esta desvela e dá a ver o funcionamento estrutural das descobertas científicas, ao mesmo tempo que é por elas iluminada. Assim, o fenómeno geral descrito por esta fenomenologia é a assemblagem (assemblage), definida como «um mecanismo de autonomia com heteronomia apagada» [§ 2] e cujas leis de combinação (em duplo laço) e circulação constituem o facto e a especificidade das diversas cenas ou campos de investigação a que se dedicam as ciências regionais especializadas. Na medida em que o trabalho fenomenológico aqui proposto consiste na composição de argumentos heterogéneos, tanto filosóficos quanto científicos, com o objectivo de mostrar (e não de demonstrar, função das ciências) o funcionamento dessas diferentes cenas onde as “coisas mesmas” acontecem, o autor pode avançar a polémica tese de que a fenomenologia enquanto filosofia com ciências viria ocupar na modernidade o lugar da Física de Aristóteles na antiguidade clássica [§ 186], tese esta que pressupõe, no entanto, as conclusões retiradas no capítulo que dedica ao funcionamento da verdade imanente a cada cena.
O primeiro capítulo de La philosophie avec sciences ao XXe siècle, intitulado “Du double lien”, apresenta o mecanismo de autonomia das assemblagens, que funcionam precisamente segundo a lógica de um duplo laço (que o autor retoma do motivo derridiano do double-bind) entre duas leis inconciliáveis e indissociáveis. Para o ilustrar, F. Belo começa pelo exemplo relativamente simples da viatura automóvel [§ 15-18], cuja assemblagem tem de dar conta, ao mesmo tempo, da lei física da termodinâmica dos gases (que comanda o motor) e da lei antropológica do tráfego (que preside ao jogo, unidade da necessidade e do acaso, da circulação automóvel): o duplo laço formado por estas duas leis inconciliáveis e indissociáveis, e que constitui a lógica teórica da cena de circulação, pressupõe o retiro de uma das leis em relação à outra. Por um lado, temos um retiro estrito dos elementos da assemblagem que funcionam por repetição (o motor, no caso do automóvel); por outro lado, um retiro regulador dos elementos da assemblagem que regulam o movimento de acordo com o jogo (regras e aleatório) da cena, provocando nela efeitos suplementares. O que está em causa nesta lógica dos retiros é a forma como a autonomia de cada assemblagem pressupõe sempre uma doação heteronómica que se apaga: cada cena é ela mesma uma doação em retiro das várias assemblagens que nela circulam, estas funcionando sempre segundo o duplo laço de duas leis inconciliáveis e indissociáveis que se encontram, elas mesmas, em retiro uma em relação à outra. A doação em retiro da cena é, segundo o autor, o correspondente fenomenológico da diferença ontológica de Heidegger, enquanto que os dois retiros das assemblagens derivam de uma inspiração derridiana [§ 57-73].
Esta lógica dos retiros é testada, neste primeiro capítulo, a vários níveis. Em primeiro lugar, trata-se de verificar a chamada cena da alimentação, segundo o funcionamento das diferentes assemblagens que a povoam [§ 19-26]. Assim, ao nível da vida (em sentido biológico), os organismos unicelulares funcionam segundo um único duplo laço (retiro estrito do ADN e retiro regulador do metabolismo), as plantas funcionam segundo esse primeiro duplo laço e segundo um segundo duplo laço (retiro estrito do metabolismo e retiro regulador da homeostase hormonal) e, finalmente, os animais funcionam segundo os dois primeiros duplos laços e segundo um terceiro duplo laço (retiro estrito das hormonas e retiro regulador o sistema de mobilidade). Quando se passa de uma assemblagem para outra, os elementos em retiro regulador passam a estar em retiro estrito na assemblagem seguinte, de forma a possibilitarem a sua autonomia e a consequente adaptação às regras próprias do jogo em que ela está inserida: o metabolismo celular (comum a todos os seres vivos) pressupõe o retiro estrito do ADN, a nutrição (comum a todos os organismos) pressupõe o retiro estrito do metabolismo e a espontaneidade motora (as tácticas de caça e de fuga dos animais) pressupõe o retiro estrito da busca de homeostase hormonal (da fome). Este último duplo laço está também intimamente ligado à lei fundamental da cena da alimentação, a lei da selva (os animais só sobrevivem comendo outros seres vivos), lei ecológica inconciliável e indissociável da lei bioquímica da homeostase hormonal. A multiplicação de duplos laços é o que, segundo o autor, permite, por um lado, pensar uma evolução sem determinismo (o ADN não determina em absoluto o destino das espécies) e, por outro lado, explicar a validade não contraditória das diferentes ciências especializadas: «as leis deduzidas por cada ciência ao nível da circulação da cena respectiva permanecem válidas nas cenas seguintes, mas não dão conta das leis próprias da nova cena» [§ 73].
A lógica do duplo laço é depois testada ao nível da cena da habitação [§ 27-32], constituída pelo elemento nuclear que são as unidades locais de habitação, definidas por um sistema de usos, que nelas é transmitido de geração em geração, e que pressupõem o retiro estrito dos gestos corporais e o retiro regulador das suas receitas. É aqui que o autor introduz mais um interessante conceito operativo: o de envie, intraduzível, pois dizendo ao mesmo tempo o desejo (de aprender e desempenhar bem os usos) e a inveja (de quem o faz e de se ser, por sua vez, invejado). O par usos/envies define o sistema dos useiros de cada unidade social privada, cuja reprodução depende das alianças que entre elas se estabelecem (segundo a lógica da exogamia social, regulada pelo interdito do incesto) e estando estas retiradas estritamente em relação ao espaço social, submetido à lei da guerra (que substitui a lei da selva nas sociedades agrícolas), e tendo por isso que dar conta do aleatório de rivalidades e de ameaças que constituem o espaço social (disciplina e economia defensiva das envies), por forma a garantir as condições gerais de habitação e de alimentação: o duplo laço aqui é entre a lei da aliança e a lei da guerra. Finalmente, o duplo laço é testado ainda na cena da inscrição [§ 33-48], intimamente ligada ao sistema de usos e suas receitas, e constituída pelos diversos modos de transformação da matéria com vista a um reconhecimento perene. Dos quatro tipos de inscrição reconhecidos pelo autor (linguagem, escrita matemática, música e imagem), a primazia é dada à linguagem humana, definida pelo duplo laço do retiro estrito dos fonemas e das letras (segundo a teoria saussuriana da imotivação do signo), que permite a multiplicação de combinatórias e de possibilidades de enunciação, e do retiro regulador da lei da pertinência (proposta por Flahault), ligada à especificidade de cada contexto. Se a lógica do retiro doador e do duplo laço é comum à análise de cada uma das cenas e das duas respectivas assemblagens, o seu funcionamento local é dado na imanência de cada uma, algo que é comprovado pela economia argumentativa do texto e pela leitura constante dos especialistas em cada matéria (devidamente indicados na bibliografia), tal como é apanágio desta filosofia com ciências, estas últimas submetidas também a um duplo laço, aquele que se constitui entre, por um lado, as receitas e o corpus de cada paradigma científico (a lei da definição que comanda a sua reprodução) e, por outro lado, a experimentação, que é da ordem do acontecimento singular [§ 76-83].
O segundo capítulo de La philosophie avec sciences au XXe siècle, intitulado “Du supplément entropique”, começa com a constatação de que os motivos do duplo laço e do retiro doador, na medida em que permitem pensar uma autonomia com heteronomia apagada, são dados a ler essencialmente a partir das ciências da vida. A sua aplicação à física (a ciência modelo da tradição) pode, contudo, ser feita a partir das duas forças estruturantes dos graves inertes, forças nucleares e electromagnéticas [§ 84-87]. Este alargamento da lógica do duplo laço à cena da gravitação é fundamental para introduzir o objectivo deste segundo capítulo, que abandona a perspectiva sincrónica das diferentes cenas, para se dedicar ao problema da evolução das mesmas, isto é, a uma descrição diacrónica de tipo genético que introduz o factor tempo. Uma vez mais, o modelo explicativo é deduzido da composição entre as descobertas científicas e a abordagem filosófica: partindo da teoria das estruturas dissipativas e da reversão do 2º princípio da Termodinâmica, propostos por Pirogine, e da teoria semântica da evolução de Barbieri, será possível explicar a evolução das moléculas para as células a partir do motivo de um “suplemento entrópico”, que segue justamente a lógica proposta por Derrida, segundo a qual um suplemento é sempre uma mais-valia requerida de antemão por aquilo mesmo que é suplementado e que sofre, por isso, efeitos retroactivos [§ 88-99]. O suplemento entrópico, um modelo evolutivo que substitui o acaso por um imenso jogo de mecanismos instáveis de regulação do aleatório, permitiria então compreender a formação de novas cenas e sub-cenas como suplementos entrópicos de cada cena mais geral, funcionando em oscilação homeostática: «Em rigor, não há senão uma cena do Universo, a da gravitação, que implantou sobre a terra a cena da alimentação que implantou, em seguida, as da habitação e da inscrição dos humanos, como sub-cenas da cena universal, cada uma destas sub-cenas implantando inúmeras outras mais particulares» [§ 97]
A evolução histórica é, em seguida, entendida a partir das diversas invenções, enquanto acontecimentos de suplementariedade entrópica, e da formação de novas sub-cenas instáveis a partir das transformações dos usos que com elas advêm. A primeira destas invenções teria sido a da agricultura e pecuária, ou seja, a introdução do tempo económico entre a apropriação e o consumo, que suplanta a lei da selva, e que tem a casa como unidade local de habitação. A cena que dela resulta é o que permite, uma vez mais por suplementariedade, as três invenções da “modernidade grega” e as suas consequentes sub-cenas: o logos e a cena democrática, a moeda e a cena do mercado e a definição e a cena da escola – cenas instáveis, tal como o vieram provar os acontecimentos históricos (a queda do Império Romano) que as adiaram de novo até à modernidade propriamente moderna europeia [§ 106-114]. Esta última será marcada pela invenção da máquina e da electricidade e pela consequente substituição da energia biológica por uma energia produzida socialmente, que dá origem a um novo tipo de unidade local de habitação, a da família, e à reinvenção das sub-cenas da escola, do mercado e da democracia, segundo mecanismos distintos daqueles em que funcionavam na modernidade grega [§ 115-122]. As sociedades de casas (energia biológica) e as sociedades de instituições e famílias (energia industrial) acabam por funcionar segundo dois paradigmas distintos: as primeiras funcionam segundo a lógica da autarcia das unidades locais de habitação, que pressupõe a justaposição de assemblagens semelhantes e homogéneas, enquanto as segundas funcionam segundo a lógica da heterarcia, que pressupõe uma nova organização de assemblagens especializadas e heterogéneas. Esta diferença paradigmática encontra o seu paralelo, em termos de evolução biológica, na diferença entre a reprodução por justaposição dos seres vivos unicelulares e a metamorfose por organização especializada que dá origem aos organismos animais e que pressupõe o mecanismo heterogéneo da sexualidade [§ 123-131]. O capítulo termina com uma reflexão sobre o não-determinismo da evolução por suplementaridade entrópica, a partir do motivo da “bem(mal)dição”, que diz a indissociabilidade entre a vida e a morte, a novidade e a perenidade.
O capítulo seguinte do livro é inteiramente dedicado à evolução histórica da cena de doação da própria filosofia com ciências, a saber, a cena da inscrição, onde circula a escrita e, consequentemente, o pensamento filosófico, mas também a ciência moderna. As duas invenções suplementárias marcantes nesta evolução terão sido a invenção da definição (pela escola socrática) e a invenção do laboratório (pela física do século XVII): a primeira marcando a distinção entre a filosofia e as narrativas literárias e a segunda marcando a distinção entre as ciências e a filosofia, distinções estas subsidiárias da instituição de unidades sociais (a escola e a universidade, a igreja, o laboratório), ou assemblagens, relacionadas com a escrita e a leitura, ou seja, doadas e constituintes da cena da inscrição e das suas diversas sub-cenas suplementárias (e cuja autonomia não é já recebida de modo hereditário, mas segundo uma relação inédita entre mestre e discípulo). A invenção da definição pressupõe uma dupla redução: a da denominação (redução das singularidades empíricas, operação da linguagem em duplo laço) e a da abstracção (redução da polissemia e da cena narrativa e quotidiana). O gesto da definição instaura assim um plano da eternidade (o eidos, separado dos entes), que permitiu a instituição escolar enquanto sub-cena em retiro em relação à cena da habitação (a Academia de Platão e a sua herança). Aristóteles configura uma deriva em relação a este gesto, na medida em que, seguindo a inspiração socrático-platónica da definição, propõe uma reconsideração da phusis, uma espécie de primeiro “retorno às coisas mesmas” fenomenológico. A primeira sub-cena filosófica da cena da inscrição passa assim pela Academia de Platão [§ 139-140], pelo Liceu de Aristóteles [§ 141-145] e pela instituição da Igreja cristã e das universidades medievais [§ 145-148]. Quanto à invenção do laboratório, F. Belo atribui-a à conjugação inédita de dois gestos, um platónico (o laboratório como reelaboração da definição grega, em retiro em relação ao jogo com o aleatório das cenas, e instituindo a separação entre sujeito e objecto) e outro aristotélico (o apelo à experiência empírica) [§149-150]. Depois de ensaiar um paralelismo entre relação Platão/Aristóteles e a relação moderna Descartes/Kant [§ 151-152], de modo a compreender a génese do sujeito transcendental, o autor passa em análise o papel da escola enquanto produtora de sujeitos, os seus efeitos suplementários sobre as assemblagens biológicas [§ 153-155] e a sua aliança com o laboratório das ciências modernas, origem de um novo paradigma do saber [§ 156-161].
O momento fulcral deste terceiro capítulo é, no entanto, a apresentação das bases teóricas da filosofia com ciências enquanto fenomenologia, com a apropriação dos motivos teóricos herdados de Husserl, Heidegger e Derrida. Assim, a fenomenologia de matriz husserliana é lida como uma nova etapa no esforço de desubstancialização do ser, a partir do motivo da redução fenomenológica, que descobre a diferença entre a “empiricidade aparecente” (aquilo que é reduzido) e o aparecer retido como idealidade, e que permite configurar uma nova figura da definição [§ 162-163]. Mas, será também esta desubstancialização que Heidegger vai procurar ao nível ontológico, nomeadamente a partir do motivo do Ereignis («Nada-de-acontecimento-que-dá-os-acontecimentos»), que permitiria pensar a ousia aristotélica antes da distinção entre essência e acidentes, ou seja, antes da distinção entre ser e tempo, mas também entre actividade e passividade. F. Belo designa este movimento de doação em retiro (ou de heteronomia apagada) como (pro)dução, «marcando o “fazer vir à presença” no “pro” e o “deixar vir à presença” nos parêntesis que o escondem» [§ 164-170]. Finalmente, Derrida teria sabido conjugar, numa única operação, o duplo laço entre a redução husserliana (a economia de apagamento ou de desubstancialização) e a (pro)dução heideggeriana (o deixar ser a novidade de cada presença), a partir do motivo do rastro (trace) imotivado e dos efeitos do seu apagamento. F. Belo chama a esta operação re(pro)dução, para marcar a sua quase-transcendentalidade, ou seja, a contaminação originária entre o empírico e o transcendental que está em jogo quando cada novo acontecimento singular reitera e constitui a própria cena que o doou – um outro nome para a finitude, portanto. Este duplo laço, mecanismo local e singular da autonomia com heteronomia apagada, é novamente testado ao nível da linguística, do metabolismo celular e da aprendizagem [§ 171-184]. É neste sentido que a filosofia com ciências se identifica com a fenomenologia e com a sua herança recente.
O último capítulo de La philosophie avec sciences au XXe siècle é dedicado ao problema fundamental de como avaliar a pertinência dos modelos e propostas avançados por esta filosofia com ciências, ou seja, do problema dos critérios de verdade. Como composição das descobertas científicas e fenomenológicas do século XX, a filosofia com ciências marca um certo retorno a um saber sistemático, mas respeitando a singularidade e as diferenças irredutíveis entre as diferentes assemblagens e as suas cenas. Por conseguinte, a verdade de cada cena só pode ser imanente a cada uma das cenas, as ciências especializadas sendo o trabalho descritivo ou de demonstração dessas mesmas verdades. Neste sentido, e tal como a evolução é um processo que joga entre regras e aleatório, as verdades científicas não podem deixar de ser históricas, mas encontrando o seu critério de verdade em cada cena histórica que descrevem. Que os motivos dos retiros e dos duplos laços ocupem uma posição quase-transcendental neste panorama significará justamente que eles derivam desse mesmo funcionamento singular e histórico que os dão a ver. Ou, como avança o autor, «a “verdade” de cada cena, espécie, indivíduo, sociedade, língua e cultura, é a da sua reprodução através dos outros [...], é esta reprodução que mostra a verdade de cada cena: verdade que a ciência demonstra quando encontra nelas os recursos em retiro. Esta “verdade” é a heteronomia dada que se esconde, se dissimula, para deixar ser a autonomia ou a abertura de cada indivíduo, de cada coisa» [§ 190]. O capítulo prossegue com uma reflexão sobre a possibilidade de desvelar uma ética da re(pro)dução, que se condensaria no mote «deixar ser o ente» [§ 196-199], seguida de uma reflexão sobre o papel regulador das instituições políticas, principalmente no que toca à economia [§ 196-208]. Estes dois pontos finais parecem-nos menos interessantes, tanto pelo carácter demasiado generalista do primeiro, como pelo facto de as propostas políticas que são depois avançadas acabarem por ser apenas uma constatação do próprio funcionamento formal dos mecanismos políticos: como dominação da lei da guerra, em termos milenares, e como institucionalização pública da administração da economia (cena da habitação), em termos modernos. Mais fecunda parece ser a proposta avançada em anexo (uma comunicação proferida em Outubro de 2007 no Institut Franco Portugais) de uma economia política fenomenológica enquanto ciência terapêutica, que recupera o carácter de composição interdisciplinar usado na descrição das várias cenas e suas assemblagens, e que aponta para a possibilidade de uma cena propriamente política em sentido moderno.
Em suma, La philosophie avec sciences au XXe siècle é o testemunho condensado de uma proposta arriscada, mas indiscutivelmente inovadora no panorama filosófico actual, estranha talvez na herança do seu horizonte de saber integrado e sistemático (filosófico, portanto), ainda que atenta ao contexto histórico em que se insere. Cremos que, acima de tudo, nos lança um desafio forte a avaliar a operatividade de alguns dos motivos fundamentais do pensamento contemporâneo e um convite à sua reinvenção e aplicação (aquilo que o autor outrora designou como uma espécie de “engenharia filosófica”), como possibilidade efectiva de uma interdisciplinaridade digna desse nome. A fidelidade e a pertinência com que o faz deverá ser avaliada por todos aqueles (filósofos ou especialistas nas diferentes áreas) que aceitem o desafio e que deverão ter em conta que, tanto a sua crítica como o seu acolhimento, pressuporão sempre enveredar, de alguma forma, por uma composição de saberes heterogéneos, o que converge afinal para o apelo último que aqui está em causa: apelo à continuidade a ao porvir de pensar com e a partir das “coisas mesmas”, no enigma da sua singularidade e indeterminação radicais.

Gonçalo Zagalo Pereira, Março de 2010
Publicado na Revista Filosófica de Coimbra, nº 38, 2010, pp. 506-513

sábado, 12 de novembro de 2011

A guerra dos capitais

1. A crónica de Rui Tavares (13/07) lembrou-me o livro notável do socialista não marxista Karl Polanyi, La Grande transformation. Aux origines politiques et économiques de notre temps, escrito em 1944, estava a 2ª grande guerra a terminar. “No século XIX produziu-se um fenómeno sem precedentes nos anais da civilização ocidental: os cem anos de paz de 1815 a 1914. À parte a guerra da Crimeia, acontecimento mais ou menos colonial, a Inglaterra, a França, a Prússia, a Itália e a Rússia não fizeram guerra umas às outras senão dezoito meses no total” (p. 23), apesar da enorme quantidade de conflitos ‘locais’ que balizaram o século. Diagnóstico: “o comércio estava agora ligado à paz. No passado, a organização do mercado tinha sido militar e guerreira. Era um auxiliar do pirata, do corsário, da caravana armada, [...] dos traficantes de escravos e dos exércitos coloniais das companhias. Tudo isso agora estava doravante esquecido. O comércio dependia agora dum sistema monetário internacional que não podia funcionar durante uma guerra geral. Exigia a paz, e as grandes Potências esforçavam-se por a manter” (p. 36).
2. Isto era escrito a quente: a primeira globalização, após uma centena de anos de paz, acabava de sofrer durante 30 anos uma implosão inenarrável, é o que o seu livro procura explicar. A tese é a seguinte: o mercado auto-regulador (promovido pelo liberalismo inglês) foi a causa das duas grandes guerras, tendo gerado proteccionismos de defesa contra o domínio comercial inglês e em consequência os nacionalismos que desencadearam as duas guerras. Eis o ponto nevrálgico da sua argumentação: ‘mercadoria’ sendo empiricamente definida como objecto produzido para ser vendido no mercado e ‘mercado’ como os contactos efectivos entre vendedores e compradores, resulta na prática que deve haver mercados para todos os produtos da indústria; este postulado, diz Polanyi, é falso no que diz respeito à força de trabalho, à terra e à moeda, já que nenhum foi produzido para ser vendido, nenhum é pois ‘mercadoria’. Os três devem ser preservados do estatuto mercantil que o liberalismo lhes atribuiu.
3. O que impressiona é que os seus argumentos ganham na crise actual um relevo intempestivo. O desemprego aumenta assustadoramente, os ‘contratos de trabalho’, que são a forma democrática de organizar a economia, são demolidos por considerações em que a ‘força de trabalho’, que não foi feita pela evolução biológica e civilizacional para ser mercadoria, se tornou em algo que se compra e se vende, se pega e se deita fora. Quanto à terra, já não é só a terra agrícola a que Polanyi se referia, é o território organizado industrialmente, isto é, as empresas de produção que são eminentemente locais, organizadas para produzirem mercadorias que respondem a problemas locais dos países, de trabalho, de habitação, de alimentação e não para serem mercadorias, são elas que se transferem de país rico a país pobre, se vendem abstracta ou especulativamente, em bolsas longínquas. E o terceiro é a moeda, o ataque actual ao euro cada vez mais descarado, onde se percebe que os chamados ‘mercados’ não o são: mercado é aonde se vendem e compram mercadorias, as moedas para isso servem e não para serem elas vendidas e darem lucros fora das vendas, como a especulação das subprimes é exemplo do absurdo a que os financeiros podem chegar em suas guerras de capitais.
4. Intempestivo, quer dizer que estes argumentos vêm de outro tempo, de outra crise, mas em que se pretendia também a auto-regulação dos mercados (os tais que o não são). Não pode o filósofo ter a pretensão de dizer o que há que fazer. Constatar apenas com Boltanski que “o capitalismo prospera; a sociedade degrada-se” (Le nouvel esprit du capitalisme, 1999). Esta crise repete a da primeira metade do século XX, o comércio internacional impede guerras de bombas, mas, para que os números astronómicos dos grandes capitais aumentem algumas percentagemzinhas de alguns milhõezitos de dólares, está a produzir guerras financeiras em que os países vão caindo um a um, consoante a sua dimensão económica, primeiro os mais pequenos em economia e maiores em dívida, mas ameaça chegar aos outros, aos Estados Unidos de Obama também. Como será possível ter em atenção os argumentos de Polanyi, senhores economistas, transpô-los para esta crise e para a reformulação da vossa ciência, que Friedmann despolitizou e tão graves consequências está a ter, largando a brida à guerra dos capitais que ela deveria controlar?

Público, 18/07/2011

Neoliberalismo ou antiliberalismo?

1. Como se sabe, a noção de 'contrato', que implica uma ligação livre entre duas partes que obriga ambas, liga e responsabiliza, é uma das traves do pensamento liberal clássico, de Hobbes a Rousseau. Contra as sociedades autoritárias e clericais do Antigo Regime, propunha-se que as relações sociais se fizessem sem intervenção da autoridade real, entre pessoas livres e responsáveis, gente fiel à sua palavra.
2. Na actualidade, o contrato de trabalho é a maneira democrática de colocar quem trabalha como cidadão livre, de igual para igual com o seu empregador. Isto é a lógica do plano político e jurídico, que ao Estado compete resguardar, enquanto que, no plano económico, o trabalhador ‘desaparece’, o seu salário sendo incluído anonimamente na rubrica ‘custos de produção’. A consideração economicista do contrato de trabalho, que usa argumentos de ordem económica para lhe aumentar a precariedade, é assim, ao nível político, um antiliberalismo, que é o termo que lhe serve, em vez do de neoliberalismo. A bela palavra ‘liberal’, como sabem os Americanos, é uma palavra cara a todos os que se reclamam da tradição emancipatória europeia, a todos os que se querem social-democratas.

Islândia: economia rima com democracia ?

1. Foram os Gregos que inventaram, além da Filosofia (Sócrates, Platão, Aristóteles), tanto a democracia (Sólon, Clístenes, Péricles) para impedir que as casas poderosas eliminem as mais pobres, como a moeda do mercado quotidiano. Inventaram assim a Razão pública, de que Kant saudou o retorno no final do século XVIII, à Filosofia tendo-se juntado os laboratórios das Ciências. Sobrepondo-se às relações de força, a Razão procurará a liberdade: no caso do mercado, o dinheiro dá a liberdade de escolher o que comprar, em vez dum racionamento igualitário (como em Cuba). Note-se que a economia actual, que exige cada vez mais escolaridade a todos os níveis, só é viável com democracia, como à sua maneira asiática a China vai aprender.
2. É certo que o mercado não funciona sem lucros, mas também deveria ser claro que não há critério intrínseco (científico, aritmético) para na produção distinguir a parte dos lucros e a dos salários, o que ocorre sempre por razões politicas (concertação, greves). Há portanto um factor político, que deve ser de razão democrática, no coração da economia enquanto ciên-cia. A especulação financeira (‘especular’ é funcionar em espe-lho, sem ver para fora) passa-se apenas entre capitais e lucros, ignora as economias que a suportam, como quem serra ramos de árvores neles sentado: a bolsa dela mesma não é democrática. Mas pode ser chamada à democracia, como os referendos islandeses mostram exemplarmente, propondo um bom teste à democraticidade dos dirigentes políticos (holandeses e ingleses) e dos comentadores.
3. Assim como há ciências das línguas, das doenças, da agricultura, e por aí fora, a economia é só a ciência dos mercados, nem da produção (engenharias) nem dos usos caseiros das coisas compradas: ela é apenas a ciência dum sector da sociedade. Mas as sociologias sendo especializadas em sectores diversos, na ausência da sociologia do conjunto da sociedade e menos ainda da globalização, a economia arroga-se esse papel, sem concorrentes à sua altura.
4. Tomando a moeda como unidade de medida que permite reduzir (metodologicamente) a imensa variedade de coisas que se trocam nos mercados, ela não pode senão ignorar a dimensão politica que está no seu coração e revelar-se portanto inadequada para resolver questões democráticas como a que vive a Islândia (os bancos da fraude são privados), situa-ção a que o filósofo Derrida chamou aporia (beco sem saída) devida à conjugação indissociável na economia de duas leis contrárias, a das finanças internacionais e a da democracia (nacional), uma espécie de duplo laço esquizofrénico (Bateson) da economia. Marx teorizou no seu tempo esta aporia como contradição capital / trabalho e propôs como solução eliminar um dos factores, e com ele o mercado e a liberdade, veio a ver-se. O neo-liberalismo da escola de Chicago reinante que reduziu metodologicamente os salários de quem produz com o capital à rubrica dos ‘custos’, com a consequência tornada evidente que em tempos de crise é a primeira ‘despesa’ a ser alvo de redução como desemprego em massa, sinal oposto ao marxismo que condena a liberdade dos que não têm salário. A chance única do que se intitula socialismo ou social-democracia é procurar obedecer às duas leis e vale a pena ver como vai evoluir o caso da Islândia.
5. Sem ter competência para dizer como, é necessária uma ‘economia política’ adequada aos tempos de hoje, uma ciência que tenha as duas componentes do seu nome, as regras (nomia) e a habitação (oikos, casa) das populações, que deva diagnosticar o lugar – fora dela – do político, que possa evitar o que em 2008 nos ameaçou e já parece esquecido, que a ganância da especulação financeira dê cabo das sociedades. É a falta desta ciência uma das razões mais fortes para as dificuldades estratégicas da esfera socialista, a economia de hoje dá de bandeja o poder à direita e precipita as gentes para a rua, se não houver referendos.
Público, 15/04/2011

Cérebro e computador

1. Permita-se-me uma pequena reacção à entrevista de Ed Boyden (Público de 10/11/11) que é um bom exemplo do que é a investigação neurológica pelas bandas americanas, com a ressalva de um A. Damásio que deveria ficar infeliz se a lesse. Na sua juventude de sucesso, E. B. é uma figura simpática, mas a sua ingenuidade entusiástica deixa ver bem as lacunas do paradigma dominante na actual neurologia, submetido às inteligentes questões de Ana Gerschenfeld. Ele deverá ser um excelente engenheiro de laboratório, em geral nisso os Americanos são muito bons. Mas o laboratório não é tudo: ele arranca o fenómeno a estudar à cena do Mundo e cria condições experimentais de determinação que permitam conhecimentos, experiência a experiência, sempre fragmentariamente. E por isso é necessária, antes e depois, uma teoria adequada do que se passa na cena do Mundo a que o fenómeno é restituído e é quando se pode verificar a compreensão que se ganhou.
2. É o paradigma que E. B. exibe, socorrendo-se de exemplos de investigações que se estão a fazer ou de ‘há quem pense que’, de ‘escolas de pensamento’; por vezes são investigadores de informática, que têm problemas de paradigma equivalentes quando tomam o cérebro como modelo para os computadores. Sabendo embora que o cérebro não funciona em código binário O/1, estes neurólogos acham que “é possível representar seja o que for com um código digital”, e E. B. cai na armadilha que Ana G. lhe estendeu: que virá a ser possível, embora “muito difícil, muito difícil”, “colocar as nossas memórias num disco rígido e recuperá-las em caso de Alzheimer”!
3. A questão da comparação entre cérebro e computador está viciada nos pressupostos: que o cérebro serve para calcular e pensar, iludindo que os cérebros humanos que fazem isso são essencialmente muito parecidos com os de chimpanzés ou de cães, os quais são incapazes de calcular e pensar como os computadores. Os nossos cérebros animais foram inventados pela evolução para gerir a alimentação e a respiração e para caçar e fugir a ser-se caçado, é para isso que há ‘neurónios’ articulados com hormonas e outras químicas. Calcular deve-se à invenção de números, pensar à invenção de línguas, que, com técnicas de habitação, introduzem – aprendendo-se – nos nossos cérebros lógicas sociais, variáveis com as antropologias: o nosso cérebro é simultaneamente um órgão biológico e social. O computador é só social.
4. Um último ponto: “se substituirmos as células uma a uma por pequenos computadores que reproduzem exactamente o que cada célula faz”, diz E. B. a dado momento, e eu não queria acreditar nos meus olhos. A especificidade dos neurónios enquanto células animais é de, com muitas centenas de sinapses, fazerem redes com milhares de outras células e assim se afectarem umas às outras formando, redes com redes, um cérebro auto-afectado e afectado pelo mundo. Isto é, ‘um neurónio’ não existe por definição: neurónio é sinapses! Vê-se bem como fazem falta neurólogos teóricos, capazes de articular o trabalho de laboratório com a cena do mundo.