quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Ler o pensamento no cérebro?

1. Grande livro, O homem neuronal, de J.-P. Changeux, que li em 1983 logo que saiu e depois disso já reli por duas vezes. Nomeadamente o seu conceito de grafo, que permite entender como o que aprendemos, por exemplo, a linguagem, se inscreve na rede neuronal e se torna parte dela. Esse conceito, a meu ver, contraria, felizmente, a esperança que ele manifestou na entrevista a Ana Gerschenfeld, de que ‘vai ser possível um dia ler o pensamento’ (P2 de 13/07). E digo felizmente porque penso no que uma polícia, PIDE ou de Guantamano, não poderia fazer com essa possibilidade.
2. Primeira dificuldade: se não souber sueco ou russo, não se pode ‘ler o pensamento’ nessa língua sem se a conhecer. Como o pensamento (que não consiste apenas em ‘intenções motoras’, o seu exemplo) só existe em discurso, com as suas regras linguísticas, é difícil de ver como um neurólogo o lerá nos grafos neuronais. Nem sequer os sonhos, que são visuais, cinematográficos, M. Jouvet conseguiu decifrar neurologicamente, apesar de ter consagrado a essa tentativa toda a sua vida de cientista (conclusão desencantada de O sono e o sonho, de 1992). Julgará Changeux que pode descobrir neuronalmente as regras linguísticas que se jogam nos nossos cérebros?
3. Em casos mais simples, pode-se dizer a dificuldade. As nossas palavras transformam-se em electricidade por meio de um telefone e voltam a palavras sonoras por outro telefone. Ou o que escrevo num teclado e chega ao ecrã dum amigo. Sem estes ‘transformadores’, não é possível ‘ler o pensamento’ directamente na electricidade.
4. Ora os grafos de Changeux são electricidade e química neuronal. Os neurónios são as células da ‘consciência animal’: com as suas sinapses podem ser afectados de fora, por outrem, e autoafectarem-se uns aos outros. Neste caso os transformadores, para os outros, são os ouvidos e a fonação. Mas para cada um de nós, não são necessários, sabemos o que pensamos nos nossos grafos, ao mesmo tempo em que o pensamos. Felizmente, grande liberdade nossa que, como diria o Esteves Cardoso, podemos mentir aos outros, só nós é que sabemos.
5. No caso do telefone e do computador, a distinção entre o que se diz ou escreve como software e os fios do hardware, é fundamental. Ora, o que é aprender? É criar grafos, software que, repetindo-se muito, se torna hardware; eis a grande descoberta de Changeux, a diferença clara entre o nosso cérebro e um computador. Mas haveria muito mais a dizer sobre os limites filosóficos da entrevista dum grande cientista.
Público, 15 de Julho de 2010

A maçã de Newton

1. No P2 de 20 de Janeiro, Ana Gerschenfeld investigou, em jornalista detective, a história, que todos julgávamos lendária, da maçã de Newton. Confesso que nunca me tinha preocupado com ela, mas o relato do primeiro biógrafo do físico inglês, W. Stukeley, entusiasmou-me. Publicada em 1752, a história contou-lha Newton em 1726, um ano antes de morrer com 85 anos (notável longevidade para a época). Passou-se em 1666, tinha ele 24 anos, num tempo de paragem do seu traba-ho em Cambridge, que fechou 2 anos por epidemia, paragem essa que lhe foi extremamente fecunda. Ora, esta história estará no âmago das descobertas dessa época. Eis então a citação.
2. « A seguir ao almoço, como era tempo cálido, fomos para o jardim beber chá à sombra de umas macieiras. Ele e eu. Entre outras coisas, ele disse-me que fora numa situação idêntica que, em tempos, a noção de gravitação lhe tinha vindo à mente. Porque é que [uma] maçã cai sempre perpendicularmente ao chão, pensara para si próprio, [incitado] pela queda duma maçã enquanto se encontrava sentado numa disposição contemplativa. Por que não se desloca lateralmente ou para cima, mas constantemente em direcção ao centro da Terra ? É óbvio que a razão é que a maçã é atraída pela Terra. Deve existir uma força de atracção na matéria ».
3. As datas mostram que a história é contada 60 anos depois de se ter passado e escrita 25 anos depois de contada, prazos esses de oscilações possíveis das memórias que levaram, sem dúvida, à fama de lendária, e é assim que a jornalista a trata, multiplicando as dúvidas: ‘a história (talvez) verdadeira’, é o título. Eu creio que ela é pura e simplesmente verdadeira, pela linearidade do raciocínio, sem pormenores lendários posteriores (a maçã não lhe caíu na cabeça). O que há nela de fabuloso é isto: 'é óbvio que a razão é que a maçã é atraída pela terra. Deve haver uma força de atracção na matéria'. A queda da maçã faz pensar isto, não é uma anedota, é intrínseco à descoberta. Esta pequena narrativa conta um dos mais importantes Acontecimentos de Pensamento da história ocidental, algo de raríssimo, de precioso.
4. Um rapaz de 24 anos pensa que é óbvia uma coisa que nunca ninguém tinha pensado antes dele. Depois virá a equação física (a razão inversa dos quadrados da distância), mas nos Princípios matemáticos de Filosofia natural (Newton julgava-se filósofo, a distinção filosofia / ciências far-se-á durante o século XVIII) ele diz que não é capaz de ficcionar (latim ‘fingere’, fingir), imaginar, uma hipótese : « não consegui ainda deduzir dos fenómenos a razão destas propriedades da gravidade e não imagino hipóteses (hypothesim non fingo) ». O 'óbvio' é, 21 anos mais tarde, irrepresentável para ele : a ideia de uma for-ça de atracção a distância. Ora, justificada matemática e experimentalmente, ela permanece, ainda hoje, incompreensível, nem Einstein foi capaz de ‘compreender' esta atracção. A Física do século XX acrescentou duas outras forças de atracção, a distâncias diferentes, as forças nucleares que ‘atraiem’ protões e neutrões e electromagnéticas que ‘atraiem’ electrões. Feynman dizia-o nas suas lições de 1961: não se sabe o que é a energia, nem a energia nuclear, donde vem a força nuclear, nem o porquê da inércia e do mecanismo da gravitação. Os físicos ainda andarão a procurar saber o que é uma força de atracção, uma das questões que tentei abordar em La Philosophie avec Sciences au XXème siècle, L’Harmattan, 2009 (tive uma licenciatura em engenharia civil no IST antes de a vida me trazer para a filosofia).
Público, início de 2010