terça-feira, 17 de novembro de 2009

“MAS AONDE HÁ PERIGO, CRESCE TAMBÉM O QUE SALVA” (Hölderlin-Heidegger)

1. Há cerca de 40 anos que o enigma deste verso me acompanha. Citado na viragem para o último quarto do ensaio, ele parece anunciar uma espécie de ‘solução’ da “questão da técnica”, sem que, no entanto, o texto permita precisá-la minimamente, como se para o próprio Heidegger ele fosse também enigmático. Que pode significar, como o interpretar 50 anos depois? Sendo que esse texto se pode considerar como o primeiro grande texto filosófico pondo a questão ecológica - segundo a etimologia, a questão da habitação humana -, será ela, não tematizada embora, o horizonte deste pequeno ensaio de compreensão, ao meu jeito desajeitado de coxear com um pé na filosofia e o outro fora dela.
2. Acabadas as revoluções mas não a desordem que elas se propunham colmatar, pode-se dizer sem nostalgia que nos ficou mais longe o fim emancipatório feito de razão e de liberdade. E assim estamos hoje, os que não deixaram de ter críticas fortes à organização social da civilização moderna e aos seus perigos, sem se saber para onde se vai nem o que se pode esperar. Ora, no prefácio à recolha de ensaios intitulada O Inumano, J.-F. Lyotard (é certo que li-o tarde) fala de “dois tipos de inumano”: “a inumanidade do sistema em curso de consolidação, sob o nome de desenvolvimento”, por um lado, e por outro, “a miséria inicial”, a “selvajaria obscura da infância”, que os humanos não nasçam humanos como os gatos nascem gatos, mas que seja preciso educá-los, a persistência na idade adulta dessa indeterminação, dessa aflição dos inícios, inclusive “na literatura, nas artes, na filosofia”. Como conjugar, em termos de questão a tratar, estes dois inumanos? Que a um deles, a indeterminação característica dos humanos, o que Aristóteles chamava dunamis, a resposta educativa seja hoje feita, já não pelo humanismo mas em nome do outro inumano, do “desenvolvimento [que] impõe que se ganhe tempo”, diz ainda Lyotard - que “andar depressa é esquecer depressa” -, que essa indeterminação precise estruturalmente do que Derrida chamou suplemento que o eleve, eduque, implicará que também seja, ainda Lyotard, “a dívida” contraída “com a indeterminação miserável da sua origem” o que resta a cada um para resistir ao sistema, para o que bastará “não a esquecer”.

O sistema do Ge-stell e as sociedades de Phusis

3. O que é este “sistema” de que fala Lyotard? Acontece que esta palavra grega tem a mesma etimologia - em conjunto (syn-) o que é colocado (-istêma) estável e sólido - que Ge-stell, o termo forjado por Heidegger em torno do verbo alemão stellen (colocar) para designar a essência da técnica moderna. Exemplificá-lo-ei rapidamente, partindo da noção filosófica moderna por excelência, a de representação. Conceber uma fábrica implica fazer previamente o seu organigrama e os cálculos técnicos, económicos e financeiros respectivos, isto é re-presentar (dar-stellen, em alemão: pôr diante, expôr) antecipadamente o conjunto, escrevê-lo antes de o executar, ou seja pro-gramá-lo. Depois será necessário requerer (bestellen) tudo o que seja preciso, máquinas, matérias primas, etc e colocá-las (stellen), incluindo também os empregados (stellung, emprego). Trata-se de condições - de razão - prévias ao arrancar da fábrica pelo capital investido (colocado), das condições do seu ‘domínio’ sobre tudo o que ele interpela para o obrigar a ‘dar razão’ (também stellen) e poder portanto comandá-lo, requisicioná-lo. Em seguida há que vigiar o seu funcionamento muito de perto, já que, além das chamadas ‘leis do mercado’, haverá inúmeros factores aleatórios, pequenos e grandes, a ter em conta quotidianamente. Tudo isto é verdade de todas as outras fábricas e outras unidades sociais das sociedades modernas (comerciais, bancárias, fiscais, escolares, etc.) que funcionam em correlação intrínseca umas com as outras numa rede imensa com cada vez menos fronteiras. O Ge-stell - o que reune (ge-) as diversas ‘colocações’, ‘requisições’ e ‘empregos’ e as directivas das ‘representações’ feitas para a boa marcha de cada unidade social e da conjuntura e que “põe a natureza [incluindo os humanos] em estado (stellt) de se mostrar como um complexo calculável e previsível de forças” (Heidegger, 1958, p. 29) - constitui um sistema de pro-gramações que contam essencialmente umas com as outras (compras e vendas, por exemplo óbvio, mas também o bom funcionamento da escola, do governo, etc.), sistema esse que permanece manobrável, é certo, mas não dominável, sempre sujeito a crises possíveis, que implica uma espécie de imperativo: “isto tem que andar sempre!”, não se pode parar sem percas e desperdícos (tanto de lucros como de salários). Todos e cada um têm que estar no seu lugar - operários e técnicos, mas também administradores e ministros -, no seu ‘emprego’ no sistema, sem que haja lugares ‘de fora’, nem divinos nem transcendentais.
4. Ora, donde é que vem que para o filósofo haja novidade? Como eram as sociedades não modernas, de que maneiras diferentes? Heidegger não o diz. Mas num outro texto, sobre a phusis segundo Aristóteles, por duas vezes ele diz da Phusis que ela é Gestellung. O tradutor, F. Fédier, explicita assim: "A Gestellung é o conjunto único (Ge) de todos os modos de entrada na presença que têm por traço comum colocar [stellen], instituir, in-stalar, em suma fazer vir o ente à sua estatura [Gestalt] própria." Gestellung e Ge-stell diriam (in obliquo, digamos) como Heidegger compreendeu a diferença das duas civilizações, a antiga (de Aristóteles), que lhe era cara e que ele incessantemente meditou, e a moderna. Esta é agressiva da ‘natureza’, da Terra doadora, provoca-a incessantemente a ceder as suas matérias primas e combustíveis para energias mecânicas, térmicas e eléctricas, todas com origem na ciência física e química, enquanto que na economia das sociedades antigas - sociedades de casas, unidades sociais ao mesmo tempo de parentesco e de actividade económica -, a forma de energia dominante era de ordem biológica (vegetal, muscular de animais e humanos), era a Phusis que dava os entes vivos e os quatro elementos, lhes impunha os ritmos - dos nascimentos, dos crescimentos e das mortes, das fadigas e das doenças - que os humanos tinham que respeitar. Sem falar nas fomes e nas guerras.

Da ben(maldi)ção como destinação

5. O interesse filosófico desta perspectiva heideggeriana entre Phusis e Ge-stell parece-me consistir em a filosofia como metafísica ser colocada como a chave da passagem de uma a outra forma de civilização: foi por os Gregos, mormente Aristóteles, terem pensado metafisicamente o Ser como Phusis, que esse pensamento destinou os nossos antepassados e a nossa história. Esta palavra ‘destino’ tem, no seu uso corrente, conotações deterministas e fatalistas desagradáveis, quando, bem pelo contrário, quando nós humanos, ‘destinamos’ uma realização qualquer, empreendemos estratégias para a conseguir, o que sabemos sempre de antemão é que aleatórios imprevisíveis aparecerão e que o ‘destinado’ final conseguido será bem diferente, para melhor ou para pior, do que o destinador concebeu. A escrita de um texto é sem dúvida das experiências mais à mão que disso temos, nas andanças por onde andamos: como lerá a minha namorada a carta que lhe escrevi? como serão lidos os textos de Heidegger? Questão de ‘sorte’, sabemos. Ou de ‘fortuna’, palavras que nos fazem voltar ao destino, de que são outras formulações, sorte e fortuna que, tal como o destino, podem ser boas ou más. Em hebreu, o termo correspondente é ‘barak’, traduzido habitualmente por ‘bênção’ em oposição a ‘maldição’. No entanto, apesar de não saber nada dessa língua, suspeito que nos textos arcaicos que dela nos vieram, barak partilhava com sorte ou fortuna da indecisão entre bem e mal. Tal como os hebreus atribuíam ao seu Deus, Yahvé, tanto os bens recebidos quanto os castigos.
6. Um texto de grande espanto, o capítulo 28 do livro do Deuteronómio , com mais de 2500 anos de escrita, permite vislumbrar um pouco como é que antigas sociedades de agricultura e de guerra pensavam os seus destinos. Trata-se duma lista de bênçãos e maldições que os profetas escritores do antigo Israel lhe dirigiram em nome de Yahvé, consoante fossem ou não fieis à lei da aliança que com eles fizera no deserto. “Benditos serão os frutos das tuas entranhas, o produto do teu solo, o fruto do teu gado, das tuas vacas e cabras. Benditas a tua cesta e a tua arca”, os teus celeiros e os teus trabalhos, a chuva vir-te-á no seu tempo, os outros povos te temerão. Benditas as tuas entradas e saídas [para a guerra], os inimigos que se levantarem contra ti serão vencidos. Estarás sempre por cima, nunca por baixo, e por aí fora. Se, pelo contrário, os israelitas não forem fieis à lei da aliança, as bênçãos invertem-se em maldições, que virão sobre a tua cesta e a tua arca, os frutos das tuas entranhas, o produto do teu solo, o fruto do teu gado, juntamente com a peste, febres e outras doenças. Os teus filhos e filhas levados por estrangeiros, o que os teus olhos virem tornar-te-á louco, vencido nas guerras, tornado objecto de horror para todos os reinos da terra . A saúde, a abundância dos campos e a paz são a condição da riqueza, são a bênção que não está na mão dos humanos, mas na dos seus deuses, tal como também a doença, a morte, a derrota na guerra. Na Idade Média rezar-se-á: “a peste, fame et bello, libera-nos, Domine”. Ora bem, o que é que nos ensina esta inversão das bênçãos em maldições, aquém da crença divina? Que elas têm a mesma fonte, a que nós, descendentes dos Gregos, chamamos ‘natureza’, e que esta é estruturalmente aleatória ou ambígua.
7. Ainda antes de considerarmos os humanos, já é assim o que se pode chamar lei da selva: todas as células sendo feitas de água e de moléculas à base de carbono, este vem às plantas da atmosfera pela fotosíntese, depois aos herbívoros por comerem plantas e depois aos carnívoros que comem herbívoros. A lei da selva ou lei da phusis, que a vida se reproduza pela morte, por comer cadáveres de vegetais ou animais, é a lei da conservação das moléculas de carbono: ela implica que a vida de uns se faça à custa da morte de outros, antes de qualquer separação entre bem e mal, entre vida e morte. Os Profetas de Israel compreenderam, à maneira deles, que esta dura lei também regia os humanos: mortais e devendo trabalhar penosamente os campos para sobreviverem, sem nunca terem a certeza das colheitas dos seus campos e vinhas ou das crias dos seus rebanhos. A aliança entre Yahvé e o seu povo que eles conceberam consistiu em propôr aliar a bênção, ou seja a saúde, a abundância dos campos e a paz, à bondade e à justiça, à prática do Bem, por um lado, e por outro a maldição, as fomes, doenças e derrotas, à prática do Mal. É o que nos ensina a lista invocada, e confirma o castigo infringido a Adão e Eva no célebre mito dito do pecado original: as dores do parto - o qual é a maior das bênçãos, o nascimento dum filho ou filha! - como que anunciam que esse que nasce um dia morrerá, assim como os humanos haverão de penar a trabalhar nos campos para recolherem eventualmente a bênção das colheitas. Ora, o (3º) redactor desse final do mito (Gn 3,17-19) tenta resolver esta contradição, decidir neste indecidível vida-morte, nesta ben(maldi)ção: ele interpreta a narrativa recebida, separando o bem e o mal, a vida e a morte. Com efeito, são as dores das mulheres no parto, a mortalidade (correlato do nascimento) e o suor do trabalho dos campos, são essas ‘maldições’ - que acompanham as mais significativas das ‘bênçãos’, no coração de cada casa, enquanto parentesco e economia - que são colocadas como castigo da desobediência: como maldição acontecida, não pertencendo originalmente à criação divina, a qual teria sido só de bênção: “Deus viu que tudo o que tinha feito era muito bom”, dizia o final do cap. 1 (v. 31).
8. Não podendo discutir aqui a questão de saber se a guerra também releva da ‘natureza’ (humana), como continuação da lei da selva, o que eu queria assentar é este motivo da ben(maldi)ção como destinação, em linguagem heideggeriana, das sociedades humanas: o que elas mais prezam como vida ou bem tem sempre no seu coração a promesssa ou a possibilidade do seu contrário, a morte ou o mal. Ora, por uma preocupação comparável, mutatis mutandis, com a dos Profetas israelitas com a justiça na cidade, também a República de Platão instaura a Ideia de Bem acima das outras, vindo posteriormente a ter o lugar do deus no Timeu: ou seja, também a filosofia separou Bem e Mal como fundamento, por assim dizer ontológico, da sua Ética, ou esta como fundamento da sua Ontologia, na leitura de Levinas. O que Heidegger chamou ontoteologia forjou-se a partir da invenção da definição por Sócrates e pela transformação que esta operou nos discursos de conhecimento, visível no motivo platónico do eidos e no aristotélico da ousia. Embora bem diferentes, ambos implicam que a definição arranque os entes ao seu contexto (de vida e de morte) e se elabore um texto gnosiológico de essências intemporais, válido fora dos lugares, momentos e circunstâncias particulares, texto esse que a teologia cristã medieval reelaborou, Tomás de Aquino tendo acrescentado às essências aristotélicas um Criador da existência de cada coisa e de cada alma, donde a Filosofia moderna europeia será gerada, na sequência da chamada ‘via moderna’ aberta pelo nominalismo de Occam, em oposição à aristotélica que o Aquino introduzira. Dois frutos filosóficos resultarão sobremaneira desta sequência filosófico-teológica que destinou o Ocidente: a invenção do laboratório científico por Galileu, a da ideia como representação por Descartes.

A construção meta-física da civilização ocidental

9. Onde é que eu quero chegar com esta invocação tão sumária de questões tão complexas? À tentativa de delinear o lugar estrutural do discurso filosófico na transição duma sociedade à base da phusis e das suas energias biológicas para uma sociedade de Ge-stell. Trata-se duma questão que evoquei num colóquio sobre Nietzsche na Faculdade de Letras de Lisboa em 2001, a partir do póstumo Introdução em termos de teoria do conhecimento sobre a verdade e a mentira em sentido extra-moral, de 1873, da admiração do filósofo em como foi possível “construir uma ordem piramidal segundo castas e graus, criar um mundo novo de leis, de privilégios, de subordinações, de delimitações, mundo que se opõe doravante ao outro mundo, o das primeiras impressões [subjectivas, situadas em contexto, particulares, o mundo que contam a poesia e a literatura], como sendo o que há de mais firme, mais geral, mais conhecido, mais humano, e por isso, como o que é regulador e imperativo”. Ora, diante deste “grande edifício” , deste jogo de dados dos conceitos [...] há que admirar o homem por ser um pujante génio da arquitectura que conseguiu erigir sobre a água corrente um edifício conceptual indefinidamente complicado”. É o espanto diante da relatividade de todo o saber, científico e filosófico, do Ocidente - um edifíco sem fundamentos, sobre a água corrente - mas talvez que sem relativismos, já que o edifício não se desmorona, espanto que diz respeito, não a cada um dos conceitos, mas ao tecido deles em argumentação, como ele próprio aliás está escrevendo, tecido que compara aos “fios [duma teia] de aranha, assaz fina para ser transportada com a onda, assaz sólida para não ser dispersa ao sopro de qualquer vento”. Este edifício-teia, vindo dos Gregos mas reelaborado fortemente nos dois séculos clássicos das ciências europeias, tem um lugar decisivo na estrutura do Ge-stell. Não se trata aqui de ‘idealismo’, já não se trata de ‘ideias’ ou ‘pensamentos’, mas de algo de ‘material’, segundo Nietzsche, que fala do “nascimento da linguagem e de todo o material no interior do qual e com o qual o homem da verdade, o sábio, o filósofo, trabalha e constroi em seguida”, como mais adiante falará do “Stoff der Begriffe”, do estofo-matéria dos conceitos (é nesta concepção ‘material’ das palavras (e dos conceitos), que permitirá os edifícios conceptuais erigidos sobre a água corrente, que creio aliás residir em última análise a novidade filosófica deste texto). Como é que esta linguagem de conceitos pôde contribuir para a civilização moderna? Que ‘material’ é este, com que os homens da verdade, sábios e filósofos, edificam estavelmente sem alicerces? A resposta passa por outra questão: aonde, fora dos especialistas de filosofia, estão estes conceitos? Em que usos sociais, que nem os do dia a dia nem os dos poucos especialistas que somos nós? A resposta é um tanto sociológica: ide ver os manuais das ciências e das técnicas, ide ver os códigos dos juristas, ide ler os textos das administrações dos grandes bancos e empresas, universidades, conselhos de ministros, as crónicas dos jornais e revistas. Encontrar-se-á nesses textos grande quantidade de conceitos que só lá estão por terem sido coisa da discussão filosófica, grega, medieval, europeia: se se os tirarem, prevejo que os textos de tão esburacados se tornem ilegíveis. Em termos de Kuhn: os paradigmas de todas as grandes instituições do Ocidente, desde as ciências até às religiosas e porventura às desportivas, são edifícios conceptuais desses erigidos sobre água corrente. Não são ‘argamassa’: é porque os usos profissionais dos que em tais instituições trabalham, como nós também fazemos nas nossas escolas, foram previamente instituidos por esses conceitos nos liceus e universidades onde, como se diz, ‘nos formámos’: tais edifícios conceptuais só funcionam porque dizem o ‘ser’ das instituições da civilização moderna, estas só são edifícios por via desses textos que pensam-dizem os seus usos especializados, em que juristas, técnicos, cientistas, administradores e tutti quanti fazem filosofia como Mr. Jourdain fazia prosa.
10. Quando Heidegger diz que a ciência e a técnica moderna são o acabamento da meta-física greco-europeia, creio que se pode argumentar assim: foi-se construindo um discurso além das capacidades (dunamis) da natureza-phusis, do que ela actua (energeia), coisas de almas, quase divinas, celestes, que a teologia dizia ‘sobre-naturais’; foi esse discurso que os filósofos-físicos europeus herdaram mas que trouxeram de novo para a terra, levando esta a ser, ela também, um astro do céu; neste ‘mas’ se diz - depois da navalha de Occam, é claro, e esta depois do aristotelismo tomista - a viragem da desconstrução da parte aristotélica do edifício, concomitante com a construção dos laborarios donde surgirão, retomando o nome dos antigos motivos aristotélicos, ‘dinâmicas’ (de forças) e ‘energias’ totalmente inéditas, mecânicas, termodinâmicas, electromagnéticas. É sobre elas, e já não sobre as dos seres vivos, bois, cavalos, escravos ou criados, que a nova civilização será erigida, meta-fisicamente, sobre-naturalmente, termos que sublinham o papel estrutural dos discursos teológico e filosófico na construção da civilização europeia (e portanto na sua desconstrução actual, mormente como crise).
11. Provocação, sem dúvida, mas que se poderá justificar, na forma sumária dum texto como este, pela evocação do que há na modernidade de prodigioso, de ‘além da natureza’ e das suas energias biológicas - de milagroso, diriam os Antigos se pudessem vir ver as invenções dos seus descendentes. Ultrapassagem das capacidades limitadas dos nossos músculos e da sua energia ‘natural’ por máquinas (com energias produzidas a partir do conhecimento científico) de muitas dimensões, adequadas aos trabalhos mais diversos. Ultrapassagem das capacidades limitadas dos nossos olhos para ‘verem’ átomos, moléculas, células, genes, electricidade, em escalas ínfimas. Ultrapassagem da terrível oposição luz / trevas de outrora pela iluminação das nossas cidades. Os enormes edifícios que arranham os céus, conseguindo o que falhou em Babel. Ultrapassagem das capacidades limitadas das nossas pernas pelos 200 kilómetros à hora de velocidade e a hecatombe respectiva dos nossos jovens nas estradas. Ultrapassagem da incapacidade do nosso peso para deixar o solo pelos aviões que voam acima das nuvens e a correlativa possibilidade de delas se cair. Americanos na lua que Deus tinha criado no céu. Bombas que caiem do céu dos Deuses de outrora matando dezenas de milhar de Japoneses. Núvem que escapa duma central nuclear em panne e mata ao longo do tempo pessoas a centenas de kilómetros de distância. Que se possa estar à cabeceira de dois amantes a olhar-lhes a intimidade mais íntima, um homem e uma mulher, mas também duas mulheres ou dois homens. Que um espectáculo musical ou desportivo possa ser visto em sua casa por milhões de pessoas em toda a terra. Que a estupidez mais estúpida, com gargalhadas prontas-a-servir, possa entrar em casas humanas e encontrar nelas gente para se rir beatamente. Que alguém possa viver com o fígado ou o coração de outrem, que morreu. Que a engenharia genética possa... o que está ainda para vir. Flagelos como a fome e a sida em centenas de milhões de pessoas, as poluições e os terrorismos e a impotência dos opulentos e obesos. Sobre-natural, sem dúvida, em comparação com os mitos de antanho.

Autarcia e heterarcia

12. Ainda que parcialmente inadequados, os termos ‘sobre-natural’ e ‘meta-físico’ interessam-me para dizerem o hiato entre duas civilizações. As civilizações agrícolas eram compostas de casas, unidades sociais de parentesco e de actividade económica, como aludi acima, formando regiões em geral em torno duma cidade. A lei dessas casas e das regiões como um todo era a da autarcia: com quase nenhuma troca (a pouca que havia era adentro da região), tudo aquilo de que precisavam para viver - filhos, comida e bebida, roupas, utensílios, saber-fazer dos diversos usos e costumes - era herdado, feito ou crescia adentro da casa, onde havia então diferenças de estatuto e especialização de usos: pai, mãe, filhos, escravos ou criados. Pelo contrário, nas cidades as casas eram tendencialmente especializadas nos diversos ofícios, por um lado, os nobres e reis na guerra e no exercício do poder político, por outro: a troca, nomeadamente dos produtos das artes e de parte da alimentação, fazia lei na cidade. E foi esta lei que se desenvolveu fulgurantemente com a invenção das máquinas, das químicas, depois da electricidade, e por aí fora. A autarcia praticamente desapareceu, a civilização moderna é essencialmente urbana, isto é ultra-especializada. O que significa que a sua lei poderia ser dita heterarcia, cada unidade social, fábrica, loja ou família, estando dependente totalmente dos outros: máquinas, matérias primas, pessoal, saber técnico e económico, o próprio capital inicial, tudo aquilo de que uma fábrica precisa para funcionar, lhe vem de fora, depende da qualidade do trabalho de muitas outras unidades, assim como tudo o que ela faz vai para fora, por via do mercado. O que também é verdade das famílias, que recebem dos seus empregos os salários com que compram tudo aquilo de que têm necessidade e mandam os filhos às escolas aprender o que elas não saberiam ensinar-lhes. Aprenderem o quê? A resposta completa a argumentação acima sobre o jogo nietzschiano dos conceitos, já que é justamente esse jogo, nas suas várias linguagens, tal como foi sendo construído ao longo da história greco-romana-europeia, que lhes vai ser ensinado como condição de poderem funcionar nos empregos heterárcicos e especializados da civilização moderna.
13. O que chamei heterarcia é o que constitui a sistematicidade do Ge-stell heideggeriano, em forte contraste com a autarcia das sociedades de phusis. Ora bem, a filosofia grega, mormente a de Aristóteles a quem se deve o motivo de phusis, é construída em torno do privilégio da autarcia ou da autonomia, não apenas a política e a economia (casa e cidade) , como o saber dos sábios, a virtude dos virtuosos , o cosmos e o seu Primeiro Motor ; também assim a filosofia europeia até Kant e Husserl, senão em parte ao próprio Heidegger, todos os pensamentos construídos em torno do sujeito e da consciència, sendo do lado do laboratório das ciências que essa autarcia foi questionada, pelo que me atreveria a dizer que foi onde ela começou a ser desconstruída: além da matemática, não está a técnica como escrita, como gramma, no seu coração laboratorial, ao invés das logocêntricas filosofias do sujeito e do objecto que se lhe quereria adequar? As sociedades autárcicas de casas permaneciam sob o poder (arché) dissimulado da Phusis, cuja energia, biológica, era determinante, inclusive na forma guerreira da sua violência: a phusis dava em sobreabundância, dava bênção, mas também destruía, segundo as leis da selva e da guerra, o seu poder escondido manifestava-se como ben(maldi)ção. Hoje, todo esse poder, para o melhor como para o pior, tornou-se heterárcico, é o Ge-stell heideggeriano. Encontramos o ponto nevrálgico deste pensador: a phusis dava apagando-se, deixava ser o que ela pro-duzia, enquanto que a técnica, insistente, provocadora, não se ocupa do ‘deixar-ser’. O Ge-stell acaba historicamente a metafísica, isto é, também o seu esquecimento do apagamento do ser. “A questão da técnica” seria esta ameaça heterárcica sobre a autonomia dos humanos, submetidos ao imperativo do Ge-stell: “isto tem que andar sempre!”, “não se pode parar!” A ameaça consistiria na falta de domínio, de ‘maîtrise’, dos humanos, sobre o sistema, ameaça a que chamamos habitualmente crises, nomeadamente económicas e políticas, mas também poluições crescentes e, a mais grave de todas, aquela a que menos se liga, a fome e malnutrição de milhões e milhões de humanos, devido à maneira como a heterarcia chegou ao dito 3º Mundo, sob forma colonial e neocolonial, a chamada globalização, que eliminou as formas autárcicas tradicionais das sociedades tribais (ou ainda lá perto) se alimentarem, obedecendo ao exclusivo interesse dos colonos e do negócio ocidental, sem as substituirem por nenhuma outra; ou ainda entregou essas sociedades desprotegidas às pestes modernas, mormente à terrível SIDA; ou ainda como vendem armas aos rancores tribais ancestrais e multiplicam as guerras entre eles. “Fome, peste e guerra” continuam a ser a sorte de milhões de humanos, depois de séculos de escravatura e de genocídio em África e nas Américas. Mas destas crises beneficiamos nós, os ocidentais desenvolvidos: a nossa abundância, a nossa bênção, é a maldição deles. Não apenas lá, mas nas nossas gigantescas cidades, que o mais rico país do mundo é também de pobrezas gritantes.

A destinação e a escola

14. Venhamos então ao verso de Holderlin: “mas aonde há perigo, cresce também o que salva”. A desconstrução - entendida de forma geral em termos da história da construção da civilização greco-latino-europeia e tendo como etapa crucial a invenção do laboratório científico no século XVII, continuando a metafísica mas deslocando-a também para fazer das máquinas e do mercado o estofo da nova civilização, o Ge-stell heideggeriano - tal desconstrução implica que este motivo seja suplementar ao da civilização da phusis e nomeadamente que ele venha suprir algo que aí faltava e fazia sofrer. Fazendo a economia de várias análises, aqui impossíveis, poder-se-iam dar alguns exemplos: a escravatura, que foi condição das grandes civilizações antigas do Mediterrâneo, e portanto também da filosofia, como o foi do desenvolvimento da Europa capitalista dos séculos XVI a XIX, e portanto também das ciências e da máquina a vapor, foi um ‘perigo’ de que esta veio ‘salvar’ (com o preço da única guerra civil dos Estados Unidos); por sua vez, esta ‘salvação’ trouxe como ‘perigo’ uma terrível poluição e a miséria proletária inglesa do sec. XIX , a que respondeu como ‘salvação’ a invenção da electricidade, do motor eléctrico e da turbina, que foram condição de possibilidade das grandes cidades que a seguir às duas grandes guerras da primeira metade do século XX vieram permitiram o Estado-Providência europeu e as novas classes médias onde os ‘operários’ se diluiram. Só que entretanto, houve a catástrofe dessas duas guerras, que resultou, segundo K. Polanyi, do liberalismo económico de liderança inglesa que vingou da década de 1870 à de 1930. O retorno do liberalismo nos últimos 30 anos, com uma capacidade tecnológica inédita que acelerou fortemente a chamada globalização dos mercados ocidentais, acentua os perigos: de poluição, com a recusa do maior poluidor em assinar o tratado de Kyoto, por exemplo, de pequenas guerras regionais e das chamadas guerras preventivas, de impasse do direito internacional e das respectivas organizações diante dos interesses das grandes multinacionais, diante das quais todos os Estados se curvam, do crescimento de economias paralelas de crime organizado, incluindo o terrorismo de origem islâmica, e por aí fora.
15. Ora, estes últimos exemplos mostram como a Web planetária, que é sem dúvida uma imensa bênção de redes de relações possíveis entre quem combate estes males, traz consigo também a maldição de muito facilitar a vida das redes criminosas. Não creio pois que haja que interpretar o verso de Holderlin de maneira tal que ‘salvação’ exclua qualquer ‘perigo’ de tal maneira que bem e mal pudessem não continuar a estarem intimamente misturados como ben(maldi)ção. Também não me sinto inclinado a um anúncio futurista qualquer sobre as tecnologias que andam na alforja dos laboratórios. Prefiro terminar com uma consideração breve sobre o motivo da destinação em Heidegger, do qual depende o de Ge-stell e, na conferência Tempo e Ser de 1962, o de Ereignis. O que destinou ser e tempo como história ocidental, dos Gregos até nós, foi a doação dum pensamento, duma escrita, com retração dessa doação, oferecida assim às possibilidades de leitura e de reescrita dos futuros leitores. Sem o fatalismo que o termo ‘destino’ sugere: apenas, e é imenso, promessa, possibilidades dadas a quem as acolher, promessa concretizada no “grande edifício dos conceitos” de que falava Nietzsche e na sua desconstrução. Isto é, as ‘etapas’ ou ‘épocas’ construtivas e desconstrutivas, com aspas, são marcadas por invenções ‘técnicas’ impossíveis, que são sempre da ordem da leitura-escrita (do pensamento) e se contaminam reciprocamente. Com efeito, o laboratório das ciências é, estruturalmente, por definição sua, lugar desssa contaminação, entre a chamada teoria e a chamada experimentação técnica, enquanto que o ‘escritório’ da filosofia contamina esta com as crises de civilização que lhe são contemporâneas. Por sua vez, que os resultados dum e doutro sejam retidos pela memória histórica, nomeadamente a da escola, permite-lhes efeitos na civilização, por via, em geral escondida, de alguns dos seus alunos. E é o ponto onde quereria chegar, para terminar.
16. Sem excluir obviamente outras vias de disseminação, como diria Derrida, passa pela escola uma parte relevante da destinação heideggeriana. Retomemos a indicação inicial de Lyotard sobre a nossa “miséria inicial”, a “selvajaria obscura da infância”, que releve do inumano os humanos não nascerem humanos como os gatos nascem gatos e que seja preciso educá-los: essa educação consiste em investi-los dos usos e costumes da sua tribo, da sua escola, da sua cidade hoje planetária, para que dela sejam cidadãos, isto é, possivelmente ‘humanos’, da possibilidade doada quer pela phusis, quer pela meta-phusis, como tentei evocar. Isto é, havendo sem dúvida uma variedade imensa de situações familiares, escolares, regionais, para acolherem os bébés, não se pode escapar nunca, de entrada, àquilo a que Lyotard chama “a inumanidade do sistema em curso de consolidação, sob o nome de desenvolvimento”, como condição aliás de se poder vir a ser-se aberto a uma posição posterior de resistência. Ou seja, somos destinados inevitavelmente ao Ge-stell e só muito depois - obviamente que com a cumplicidade de outros - os olhos se abrem para avaliar aquilo que somos e aquilo que há à nossa volta. Para o bem ou para o mal, já que, se se lembram, foi o nascimento dos mortais uma das situações que me levou a evocar a ben(maldi)ção, a maneira bíblica de pensar a destinação.
17. Quando é que os nossos olhos se abrem para avaliar o que somos e o que há à nossa volta? Quando isso nos é dado, nos acontece, em momento de graça, de pensamento, de liberdade. Em momentos em que o nosso tempo se torna ‘tempo livre’, se liberta: do Ge-stell, da sua pressão sobre o tempo como pressa, stress, em inglês. Por aí se poderia reler a meditação de Heidegger sobre o verso de Holderlin, em que lembra como a técnica e a arte eram, no alvor grego da civilização, uma mesma palavra, em que põe os artistas à escuta, atentos “à irresistibilidade do acometer” do Ge-stell e “à retenção do que salva”, ao que é secreto e pequeno. Então haverá que presumir que a possibilidade de tais momentos de liberdade, marginais ao sistema heterárcico em que crescemos, que essa possibilidade cresça das possibilidades diversas que o próprio sistema abre. Nunca como hoje qualquer rapaz ou rapariga sem grandes meios tem tantas possibilidades teconológicas de aceder às grandes obras da cultura, artes, ciências, pensamento. Também a invenção totalmente inédita do século XX, o cinema, simultaneamente arte e técnica ou indústria, poderia iluminar a questão heideggeriana. Achei, em textos com mais de 20 anos, que a própria productividade crescente, como os economistas a querem, pode continuar a servir, como sucedeu no passado, para diminuir os tempos de trabalho obrigatório como condição de salário, para nos dar liberdade a períodos maiores do nosso tempo. Infelizmente é uma zona oscilante, de avanços e recuos. E há que conjugar essa possibilidade, em tempos de globalização, com a miséria imensa de tantos nos países invadidos pelo Ge-stell.
18. Se eu fosse historiador, uma das tarefas que me atrairia seria a de estudar os fenómenos de cepticismo e militantismo, ou de pessimismo e optimismo, na história europeia do século XVIII para cá, ou mesmo desde o século XVI. Presumo que se encontrariam recorrências flagrantes, verdadeiros ciclos de oscilação, com frequências talvez variáveis segundo os ritmos históricos da civilização, mas que nos podiam esclarecer, se articulados com as tais ‘etapas’ ou ‘épocas’ de invenções ‘técnicas’ e de pensamento impossíveis, como este jogo de oscilações cíclicas poderá permitir interpretações variadas do verso heideggeriano de Holderlin, entre ‘perigo’ e ‘o que salva’. E como o conflito de gerações, como se diz, tão europeu que é desde a querela dos Antigos e dos Modernos do final do sec. XVII até às alternâncias políticas entre conservadores e progressistas, como esse conflito é lugar duma sempre possível mutação que permite continuar, isto é ‘salvar’ por um tempo o que está em ‘perigo’ iminente. Sou temperamentalmente, como se diz, um ‘optimista’, mas a velhice alarma-me por vezes, sinto que mudam os solos que me habituei a pisar, que sou cada vez menos capaz de avaliar a direcção do que muda, e é por isso que há vários anos já que tento encontrar uma razão de esperar onde leio que a tantos, pessimistas, ela falta. Eis a resposta que encontrei, e peço desculpa, sobretudo aos mais novos, do seu simplismo, da sua banalidade: da ‘salvação’ do ‘perigo’ em que a minha geração deixou as coisas do mundo, se fará a tarefa da geração futura, alertada desde a escola para a ameaça de catástrofe. Confiança em que os ‘novos’ farão outra coisa além do que somos capazes, além da física, à maneira de Maio 68: “sejam realistas, façam o impossível”. Como já foi tantas vezes assim, segundo reza um verso de há dois séculos: “aonde há perigo, cresce também o que salva”.

Um outro tipo de humano?

19. Após o retorno de Coimbra. Mas também pode ser que não se trate de ‘salvação’, palavra religiosa ainda, ou humanista. O ‘humanista’, lembra Sloterdijk, é o leitor dos livros que propuseram o humano e o progresso. É o ‘sujeito interiorizado’, o ‘homem’ que em seu gabinete lê e reflecte, olha o que se passa ‘fora dele’ e busca agir controlando-se, controlando o que faz, os seus efeitos, controlando os que estão sob a sua alçada, filhos, mulher, empregados, alunos, ralhando, castigando. Enquanto que está emergindo um novo tipo de humano, homem e mulher, uns com as outras, abertos desde cedo ao movimento das imagens, a serem arrastados pela corrente das imagens, ou a cortarem-se, zapping, aprendendo mais a habilidade do piloto ou do surfista do que a do controlador, ligados aos outros em rêdes várias, humanos pois do Ge-stell e não já da phusis nem dos livros antigos (os livros também estão a mudar, com a escrita electrónica). E então o “perigo” seria que o Heidegger escreveu este texto ainda está do tempo do humanismo e das salvações - “só um Deus nos pode salvar” - ele cujo pensamento deu o grande passo além.
20. Há os que se lançaram na busca de remediar as pequenas crises em muito lado já e de prevenir as grandes crises que se anunciam, que buscam agir localmente e pensar globalmente, como se tem dito na corrente altermundialista, onde se está talvez já a fazer o impossível, esperando e pressionando para que os economistas e as governações entendam enquanto é tempo.

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