sexta-feira, 31 de outubro de 2008

Casamento e biologia


1. Escrevo este texto em eco à crónica de Miguel Gaspar no PÚBLICO do dia 14 de Outubro, que propôs um argumento que venceu a minha resistência teórica à noção dum casamento entre pessoas do mesmo sexo. Essa resistência consiste na articulação entre biologia e sociedade que, sendo essencial à família e à sua semântica (marido e mulher, pai e mãe), a torna menos adequada quando há dois maridos sem nenhuma mulher ou vice-versa, duas mães sem nenhum pai ou vice-versa. E é óbvio que esta dificuldade semântica jogará na prática com muita força, pode-se mesmo dizer que é ela que complica, pelo menos durante uma geração, a questão da adopção do ponto de vista das crianças. Muitos dirão que ‘isso não tem importância, se é apenas semântica’. Ignorância crassa: sabe-se que no discurso psicanalítico, no divã, as questões essenciais são justamente semânticas. ‘Pelo menos durante uma geração’ ? Será o tempo mínimo necessário para que a homofobia desapareça, já que as questões semânticas desta ordem em geral só desaparecem com as pessoas. A dizer verdade, nem é sequer seguro que uma geração seja suficiente, se dermos atenção à maneira como o ‘machismo’ perdura em muita rapaziada de hoje, uma geração pelo menos depois das lutas feministas.
2. Do lado da sexualidade, o que significa o seu exercício entre pessoas do mesmo sexo ? Significa certamente um levá-la além da reprodução biológica, além da finalidade da chamada ‘natureza’, já que é certo que a sexualidade, quer em plantas quer em animais, é um fenómeno que só tem sentido ter sido inventada muito precocemente pela evolução em função da reprodução das espécies e do aumento da sua variabilidade, incluindo nas espécies mais complexas a variabilidade crescente dos seus indivíduos. Mas é essa função que explica que a sexualidade tenha uma lógica excessiva : produzem-se muitas mais células machas e fêmeas (e até sementes) do que as que vingam, para que o acaso dos seus encontros seja viável estatisticamente. E também por isso as pulsões sexuais são muito mais fortes de se acenderem do que as vezes necessárias para a reprodução. Além de outras considerações, é por isso que a sexualidade vem a desabrochar em erotismo, isto é, no seu exercício gratuito pelos afectos e seus prazeres. O que a pílula veio facilitar imenso, como se sabe e, para bem ou para mal, se tornou o hábito das sociedades ocidentais nas últimas décadas.
3. Do lado da sociedade : esta, tendo que aproveitar-se da fecundidade biológica, teve sempre muitas dificuldades em conter o erotismo e houve sofrimentos sem conta por causa disso (ainda há poucos meses 3 raparigas, a mãe delas e uma tia foram enterradas vivas no Paquistão por quererem casar fora das regras tribais), mormente em torno do casamento (os chamados adultérios e os impedimentos de divórcio), e ainda em torno justamente dos homossexuais. Uma razão forte para isso era de ordem económica das casas, a ‘casa’ tanto sendo unidade social de parentesco e reprodução como de actividade económica. A família moderna tem vindo a alijar esta, reduzindo-a aos salários e suas incidências, a restringir o número de filhos e por isso mesmo a favorecer o erotismo, que ganhou uma preponderância razoável na concepção de casamento. Ora, do ponto de vista do erotismo, é óbvio que a questão homo / hetero é secundária.
4. É neste ponto que uma frase de Miguel Gaspar sobre a evolução das leis do casamento me iluminou: ‘não passámos da ordem para o caos: evoluímos do tempo em que havia filhos não perfilhados e homossexuais escondidos nas famílias para este mundo de hoje onde em cada família cabem filhos de vários casamentos’. Os filhos ilegítimos, ainda sou do tempo em que era uma catástrofe para eles, mas durou séculos. Ou seja, nunca o social do casamento se articulou bem com o biológico.