DA SEXUALIDADE
COMO EXCESSO E COMO ALTERIDADE
A filosofia ocidental é assexuada
A alimentacionalidade
A sexualidade como desperdício
O interdito do incesto domina o excesso e prolonga a alteridade
Oscilação e sublimação
Sexualidade e lei segundo a psicanálise
O erotismo e a morte segundo Bataille
A filosofia ocidental é assexuada
1. “Os filósofos são castos”, dizia Gilles Deleuze numa aula sobre a teoria dos afectos de Spinoza, dizia-o com alguma ironia, estava-se nos anos 70, no auge da ‘revolução sexual’. Procurei em vão em três dicionários de Filosofia do sec. XX - um dos começos, sob a direcção de A. Lalande, dois do último quartel, um espanhol dirigido por M. Quintanila, outro francês dirigido por A. Akoun - nenhum incluia uma rubrica intitulada ‘sexualidade’. Esta nunca foi parte das questões filosóficas ocidentais a não ser como relevando da moral, do lado das paixões de que os filósofos se precaviam. [Mas deixem-me que defenda a minha dama, que a castidade não foi defeito mas condição de possibilidade: ao se absterem assim, os filósofos faziam uma escolha, a de se dedicarem à grande experiência do pensamento e, não fôra essa escolha de tão grandes humanos, nós não estaríamos aqui a falar de ‘sexualidade’, a medicina estaria ainda nas sanguessugas dos ‘physicos’, não haveria ciência europeia nem portanto civilização moderna.] Sobre o Amor, sim, há esse monumento venerável que é o Banquete de Platão, mas que, significativamente, ‘à tort ou à raison’, deixou-nos como tradição a expressão ‘amor platónico’, ou seja o amor sem sexualidade. Isto foi assim provavelmente até à segunda metade do século XX, mas ainda hoje, ou encontramos os três volumes interrompidos da História da Sexualidade de Foucault, em que se trata ainda de uma perspectiva ética, ou textos em que ela é encarada a partir da psicanálise, ainda mesmo quando ‘contra’ o Édipo. É nesta rubrica que os dois dicionários referidos se ocupam dela. A excepção, uma reflexão filosófica em que a sexualidade esteja no seu âmago, é G. Bataille, autor desse belíssimo livro, O erotismo, de 1957, de que, apesar do sucesso que teve na época, se pode duvidar que esteja recebido como texto ‘filosófico’. Talvez haja algum texto recente que eu ignore que desminta este alheamento, pelo menos nos seus grandes nomes, da tradição filosófica em relação a uma dimensão intrínseca dos humanos, embora não exclusiva deles. Porventura na imensa bibliografia feminista que, nos últimos 30 anos, se tem ocupado do principal efeito de tal dimensão intrínseca, a diferença entre mulheres e homens.
2. Para não cancelar esta comunicação ‘sexualidade e filosofia’ num desanimado ‘nada consta’, procederei da seguinte maneira, antes de no final vir a Bataille: sem as explicitar como faria para um público de filósofos, terei em conta algumas categorias de pensadores recentes para reflectir, por minha conta e risco, sobre alguns dados que nos vêm da biologia, da antropologia e da psicanálise. Da conferência “Tempo e Ser” de Heidegger, de 1962, reterei o motivo do Ereignis, do ‘(não)-acontecimento’ que é a doação dissimulada, retirada, dos acontecimentos pelos quais o ente é constituido na sua singularidade própria, o que permitiria interpretar, por exemplo, a reflexão da filósofa Séverine Auffrey (citada por Teresa Joaquim, Menina e Moça. A Construção social da feminilidade, 1997): “cronologicamente o um vem mais tarde do que o dois”, explicitação da gestação. De Derrida, que também é excepção ao panorama lacunar que evoquei, já que trata da sexualidade em variados textos (mas sem fazer dela um título de capítulo ou de livro, como de nenhum filosofema tradicional, aliás, faz parte da sua maneira de pensar), reterei o motivo do rasto, vivo e imotivado que implica a relação estrutural ao outro e o do duplo laço, que ele explicitou justamente em leituras da filosofia da família de Hegel e da obra literária de J. Genet (Glas, de 1974) e depois do “Para além do princípio de prazer” (Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, de 1980).
3. O título deste pequeno texto, “Da sexualidade como excesso e como alteridade”, diz as duas características de que me ocuparei, sem pretender que sejam as únicas: o excesso, o desperdício, o aspecto anti-económico da sexualidade, em que ela é parente da arte, do sacrifício, do potlach, da festa, por um lado; a relação ao outro, em que a sexualidade é parente da linguagem, por outro lado. Ora, sucede que estas duas características só se podem definir por contraste com a economia do mesmo, que é definitória da vida, nomeadamente animal, aquilo a que eu daria o feio nome de alimentacionalidade. Terei assim que fazer um desvio prévio, propondo o desenho desta espantosa propriedade da vida, sabendo embora que corro o risco de querer ensinar o padre-nosso ao vigário.
A alimentacionalidade
4. Em que é que consiste a grande descoberta da biologia molecular? Na maneira como a mesma molécula de ADN, em todas e cada uma dos cerca de 200 tipos de células especializadas dum mamífero, por exemplo, está retirada no seu núcleo para poder permitir as muito diferentes sínteses de proteinas do metabolismo no protoplasma dessa célula, donde ela está retirada para poder ser sempre a mesma (à diferença dos diferentes ARNm que de cada vez são copiados e depois da síntese operada degradados). Essas proteínas, sintetizadas a partir de mini-moléculas vindas pelo sangue, vão fazer parte da estrutura funcional dessa célula no conjunto do organismo: vão contribuir para quê? Cada tecido e órgão, no lugar que lhe é específico dentro da economia geral do organismo, vai contribuir, essencialmente e em última análise, para que a cada célula especializada cheguem as proteínas de que ela necessita. A lógica da evolução foi assim a de, partindo de seres unicelulares que se alimentavam das moléculas que as circundavam no mar onde a vida se originou, os ir juntando e especializando de forma a conseguirem essa alimentação de forma cooperativa, digamos, coordenada e menos aleatória: todas especializadas para que todas se alimentem do que todas contribuem para fazer, sem outra finalidade, para cada organismo, do que essa alimentação, do que a reprodução da sua própria substância. [Já se pode antever que é esta mesmidade que a sexualidade vem perturbar, lá iremos.]
5. Foi esta complexidade que tornou possível aos animais largarem o mar e invadirem a terra, depois da aquisição duma espécie de ‘mar interior’, a circulação do sangue (como da seiva nos vegetais), encarregado da última fase da alimentação de todas as células, o chamado aparelho circulatório, após os digestivo e respiratório, formando o conjunto do sistema da nutrição. Falta considerar a outra parte do sistema animal: como ter acesso às moléculas que interessam o organismo, as complexas moléculas de carbono? Estas só existem em outros vivos: vegetais que recebem carbono por fotossíntese, animais herbívoros e carnívoros. No caso destes, um segundo sistema se encarrega de caçar e de fugir a ser caçado: o sistema neuronal, formado de órgãos perceptivos, cérebro e nervos que fazem actuar músculos ligados estrategicamente ao esqueleto ósseo, sistema que é feito agir por pulsões hormonais desencadeadas pelo abaixamento dos teores do sangue no que à alimentação diga respeito. O sistema neuronal completa o da nutrição, a troco da mesma vantagem: que as suas células sejam alimentadas em melhores condições do que se sobrevivessem sozinhas. O que chamo alimentacionalidade é este propriedade sistémica dos animais fazerem a sua própria substância, desde a sua primeira célula, à custa da substância dos outros. O mesmo faz-se de outros. Não é necessário detalhar aqui como, sabendo-se que, quer a caça de presas, quer a fuga de predadores, implica um aleatório fundamental dos comportamentos animais, há uma espantosa economia de meios, anatómicos e fisiológicos, de se realizar esta auto-reprodução à custa de outrem: a economia do mesmo.
6. Se nos deslocamos agora para o estrito campo dos humanos e atendermos a que o desenvolvimento das sociedades tornou muito mais complexa as tarefas sociais, muito além das da alimentação, poder-se-ia mostrar como - cada cria de humanos só se tornando humano, ele também, por via social, isto é pela aprendizagem da linguagem e dos outros usos necessários para a reprodução das unidades sociais (famílias, empresas, etc.) - aprender um uso de outrem é também constituir o seu próprio saber-fazer a partir do saber-fazer dos outros (mas agora sem os destuir, é claro). Ou seja, também há aqui, mutatis mutandis, uma economia de alimentacionalidade, como base estrutural de qualquer sociedade.
A sexualidade como desperdício
7. Voltemos ao nível da evolução e espantemo-nos de muito cedo esta ter inventado um terceiro sistema além do da nutrição e do neuronal, o da sexualidade, como condição da imensa variedade e complexidade das espécies. Uma hidra de água doce ou um verme (os exemplos que aprendi no liceu, já lá vão mais de 50 anos), reproduzindo-se por cissiparidade ou por ‘bourgeonnement’, não saiem fora da lógica económica da alimentacionalidade: tal como uma célula que se torna grande de mais se divide em duas, assim fazem esses bicharocos, mantendo muito estritamente a mesmidade do ADN da espécie (creio). Ora, a reprodução sexual faz-se numa anti-economia flagrante, ela implica que estes indivíduos se ‘acasalem’ por acaso, macho com fêmea, para além dos seus estritos interesses alimentacionais; é preciso pois criar neles interesses de atracção, ou até de sedução, suficientemente fortes para garantirem o acaso desse acasalamento: quantidades enormes de células machas e fêmeas, ou mesmo de sementes que não terão condições de medrar, são produzidas para que um qualquer zero-vírgula, vários zeros e um um no final por cento delas resulte. Ou em nós, humanos, desaparecido o cio das fêmeas algures na maior extensão do neo-cortex dos primatas, não só muitos óvulos e um número astronómico de espermatozoides são produzidos incessantemente em vão, em puro desperdício, como uma parte forte de energia de hormonas esteroides é desencadeada para atrair homens e mulheres em ‘prejuízo’ manifesto das funções sociais quotidianas.
8. Este desperdício revelou-se todavia muito ‘útil’ no ganho de complexidade das economias da alimentacionalidade das espécies. Demos atenção ao primeiro ganho que veio com esta ‘inacreditável’ invenção da sexualidade, que tenho para mim ser como que uma segunda invenção da vida, quase tão improvável e surpreendente como ela. Inventaram-se os machos, as fêmeas e os ‘ovos’, isto é, que um ser vivo nasça de um casal de outros diferentes, nasça ou um ou outra, nasça fora deles e deixando-os lá, com eles. Isto é, invenção do nascimento, da paternidade, da maternidade e da filiação, da futura família, da possibilidade da aprendizagem; invenção por outro lado da morte, dos cadáveres, da morte ‘natural’ que acontecerá a quem não tiver sido comido. Percebe-se que a psicanálise, ao descobrir a sexualidade no íntimo do inconfessado a si mesmo dos humanos, a tenha encontrado em correlato estreito com o pai e a mãe, o nascimento, a infância e a morte. Nada disto há entre as hidras ou vermes: filhos não nascem de pais, não morrem deles mesmos.
9. Esta pulsão anti-económica de desperdício cria uma clivagem entre o indivíduo e a espécie, entre as suas pulsões da ordem da economia alimentacional (ou de auto-reprodução à custa dos outros), e as pulsões para o outro ou a outra, em pura perca de ‘mim’, apenas para bem da espécie. O que estou a querer sugerir, com a importância que estou a dar à dimensão biológica da sexualidade muito antes de haver humanos, é como as suas várias facetas, sociais, afectivas, reprodutivas, prazer erótico possível de ser cultivado além da reprodução, relação à lei e à moral, etc., não são mais do que consequências, aumentadas por efeito da complexidade, do que ela é nela mesma, se se pode dizer, antes dos humanos. É já ao nível dos mamíferos pelo menos, que macho e fêmea são arrancados à sua estrita economia alimentacional, arrancados ao seu si-mesmo em direcção ao outro: dando-lhes prazer, é claro, compensação da espécie à alimentacionalidade no passo de a contrariar fortemente.
O interdito do incesto domina o excesso e prolonga a alteridade
10. Porque é que, de acordo com a célebre tese de Lévi-Strauss, todas as sociedades interditam o incesto? Com uma cajadada mataram-se dois coelhos: uma dupla complementar de razões se pode deduzir do antagonismo entre sexualidade e alimentacionalidade. Como ela é excessiva e não há já cio, haveria o risco de sexo a mais e alimentação a menos, de os excessos de desejo satisfeito com quem está ali à mercê impedirem os usos sociais da habitação quotidiana, o que chamamos trabalho, como se fosse sempre festa. O interdito do incesto é, por um lado, uma forma geral de contenção do excesso da sexualidade para que a alimentacionalidade se possa realizar estavelmente, que os usos correspondentes possam ser aprendidos pelos jovens. Por outro lado, admitir o incesto como meio de reprodução social fecharia a sociedade em ilhas consanguíneas, enquanto que o seu interdito relança a busca da alteridade fora da mesmidade do nascimento, cria laços sociais intrínsecos entre as várias unidades sociais pelas alianças entre famílias. É a extraordinária lição de Lévi-Strauss sobre o primeiro e essencial laço de qualquer sociedade: a exogamia, a troca de mulheres entre linhagens como corolário do interdito do incesto, é a maneira de qualquer sociedade criar uma nova forma de alimentacionalidade, se se pode dizer, de solidariedade social entre unidades (um pouco como as células dum organismo), uma forma mais extensa e completa, uma rede social de famílias com jogos de emulação entre os mesmos e os outros, em que o que chamamos família tem sempre no seu coração materno, no seu coração reprodutivo, uma ‘estranha’ vinda de outra família.
11. O interdito do incesto, se é um travão da sexualidade, é para a lançar para alteridades mais distantes. Ele alia-se assim à aquisição da linguagem, que também é um factor de essencial alteridade. Cada um de nós não dispõe para falar e pensar, como dizia M. Gusmão do poeta, senão das palavras dos outros, que estas não são de ninguém mas de todos: alimentacionalidade por um lado assim da sua aprendizagem, mas também lançamento para a alteridade já que falar e pensar só para outrem também têm sentido, a linguagem é anti-autista por estrutura e funcionamento. Não apenas só se fala ou escreve para e com outros, mas também se fala em outros contextos e épocas, se compara e pensam coisas novas, se compõem mitos, ficções, poesias, ciências e filosofias: trata-se de intensificar alteridades sociais, factoras de história. Porque as novas gerações encontrarão novas coisas para aprenderem, serão outras dos que as dos seus pais.
Oscilação e sublimação
12. Esta oposição entre trabalho, segundo a economia aprendida da alimentacionalidade, e a sexualidade como pulsão excessiva para outros, que perturba essa economia e a sua aprendizagem, não é uma oposição exclusiva, já que se insere nos ritmos de oscilação a que nos obrigam quer o dia e a noite, quer as épocas do ano, oscilações entre trabalho e repouso e férias, entre trabalho e festas. É nesta última oscilação que joga a sexualidade, já que, como a festa, ela gasta energia, não dá repouso. Sem o poder justificar cabalmente (porque implicaria um longo desvio), eu proporia que é nesta oscilação que ela terá o papel sublimador que Freud lhe reconheceu. O conceito de grafos neuronais proposto genialmente por Changeux permite perceber como é que as aprendizagens sulcam o nosso neo-cortex de estabilidades socialmente adequadas, as de saber fazer com espontaneidade e habilidade os mesmos usos do que os outros, com ajuda crucial da linguagem. Por outro lado, se pensarmos na pulsão maior da alimentacionalidade, a da fome, é óbvio que ela só nos obriga a comer, sem nos dizer como o fazermos, se cozinharmos e o quê, se fazermos uma sanduiche ou irmos ao restaurante. O jogo das pulsões hormonais encaixa-se no dos grafos, Damásio tendo-nos dado outro tipo de exemplos, relativos também aos usos de rotina profissional e ao papel da química (de tipo hormonal) dos neurotransmissores nas decisões além dessas rotinas.
13. Ora bem, a sublimação freudiana seria justamente o como se tece este jogo entre pulsões hormonais e grafos de aprendizagem de usos e da língua, estes contendo aquelas e adiando-as (no período de latência), mas nessa contenção que adia (como que citando Derrida) uma parte dessa energia sexual a mais, excessiva, será des-sexualizada para funções sociais, culturais, sagradas, artísticas. Seria o jogo das oscilações (de que os sonhos são índice) que permitiria acasalar os dois factores de excesso e alteridade, a sexualidade e a linguagem, inclusive colocando-os ao serviço das alterações e melhoramentos da economia de alimentacionalidade. O desperdíco anti-económico é, ‘à la longue’, recuperado pela economia. De maneira talvez equivalente àquela pela qual alguns casais de grandes amantes são capazes de tornear com a linguagem a precaridade do excesso da paixão deles e dar-lhes uma continuidade no longo tempo que, sendo porventura rara, ainda mais admirável se torna. Mas isto é tema para o qual me falta mais, do que noutros, a competência.
Sexualidade e lei segundo a psicanálise
14. Há hoje um tipo de resistências à psicanálise, diferentes das que ela encontrou inicialmente. Sugeri acima como a invenção da sexualidade nos primeiros tempos da evolução foi também a do nascimento e da morte, da p/maternidade e da filiação, da possibilidade da aprendizagem: não nos admiremos de que estes temas estejam no coração do discurso psicanalista. A este primeiro argumento de conveniência, quereria acrescentar alguns outros. Os sonhos serão restos de desejos, de excessos que não tiveram cabimento, que voltam assim na oscilação do repouso que o sono paradoxal (Jouvet) proporciona. O que Freud encontrou neles de bizarro, para além da estranheza própria que sempre lhes foi reconhecida, foi que o seu deslindar encontrasse a certo momento resistências no próprio sujeito, ou seja, que este se revelasse, enquanto dormia - em que, por assim dizer, ‘não era ele’ -, como uma complexidade de pelo menos três instâncias: a) a do sonhador que diz ‘eu sonhei isto e aquilo’ e continua no divã a fazer associações em torno desse sonho, b) uma outra que nega e censura algumas dessas associações como se não fossem ‘minhas’, ou não devessem sê-lo, c) a terceira, a desse conteúdo sonhado que horroriza o sonhador, de querer fazer amor com a própria mãe, ou matar o pai, etc. Isto é, a sexualidade quando aparece nos sonhos, aparece sempre-já marcada pela lei, interdita. Além disso, a perturbação é ainda maior de tais desejos proibidos e portanto repugnantes virem no aprofundamento do oculto de desejos muitas vezes bons e convenientes, ou excessivos, obcecados, como certas paixões de artistas, inventores ou pensadores. Por isso que o material se lhe foi impondo, Freud veio a falar respectivamente de ‘ego’, ‘superego’ e ‘id’ para as tais instâncias que dividem e compõem simultaneamente o psiquismo, veio a falar de sexo, interdito e sublimação.
15. Dir-se-á que se tratava de intelectuais burgueses da época victoriana. É certo. Mas que grande espanto não é a leitura do volume de O processo civilizacional de N. Elias que conta como esse ‘super-ego’ burguês se foi forjando na história ocidental, em correlação com a formação, a partir do feudalismo, do Estado moderno e do seu monopólio da violência, se foi forjando na aristocracia da corte dos reis absolutistas, aonde conviviam largo tempo fidalgos e fidalgas de casas diversas, não abrangidos pois pelo intedito do incesto como em suas casas, e devendo a pouco e pouco criar as regras de civilidade sem as quais a civilização não teria sido possível. Sem as quais, por exemplo importante, não seria possível que homens e mulheres hoje partilhassem empregos em que convivem várias horas seguidas por razões de economia, tendo que conter mais ou menos espontaneamente as pulsões sexuais que a evolução inventou há milhões de anos.
O erotismo e a morte segundo Bataille
16. É um tanto indecente resumir, no final desta breve reflexão, a esplêndida inovação filosófica de O erotismo de Georges Bataille, mas provavelmente mais indecente ainda seria calá-la. Definido como actividade sexual independente da procriação, o erotismo é uma “exuberância da vida”, que não pode ser compreendido fora da sua relação com a história do trabalho e com a história das religiões. O horizonte filosófico de Bataille, um pouco bizarro, há que confessar, é o do ser como continuidade, à qual os seres humanos são arrancados violentamente (ao ventre e seio maternos porventura) para serem instituídos como seres descontínuos, indivíduos separados uns dos outros, até que a última violência, a da morte, os faça regressar à continuidade original do ser. Ora, para Bataille, é esse regresso que fascina os seres descontínuos que nós somos e o erotismo é um revelador desse fascínio, da violência que, por sua vez, arranca os seres individuais à posse de si quotidiana, dissolve (como na expressão ‘vida dissoluta’) os laços sociais, atrai-os ao obsceno, à nudez, ao vai-vem dos órgãos sexuais, à maneira duma experiência da continuidade, duma espécie de ‘pequena morte’, perdida a coerência do sujeito que se ‘estilhaça’ no orgasmo, é raptado violentamente na paixão amorosa ou ainda, por outros meios, na experiência mística. É ainda este fascínio pela despossessão que Bataille encontrará noutros domínios, os dos jogos e das batalhas, do amor do perigo e do desafio em que tudo se arrisca, no sacrifício pela/o amada/o. Que encontraremos ainda, se nos quisermos próximos da nossa vida mais prosaica, na fuga constante à repetição, na busca do inesperado, do acontecimento surpreendente. Enquanto Ela não vem.
F. Gros, Os segredos do gene, [1986], D. Quixote
J.P. Changeux, O homem neuronal, [1983], D. Quixote
J.D. Vincent, A biologia das paixões, [1986], Europa-América
A. Damásio, O erro de Descartes, [1995], Europa-América
C. Lévi-Strauss, Les structures élémentaires de la parenté, 1947, PUF
N. Elias, O processo civilizacional, [1939], D. Quixote
G. Bataille, O erotismo, [1957], Antígona
Heidegger, “Temps et être”, Questions IV, [1962], Gallimard
Derrida, De la grammatologie, 1967, Minuit
Idem, Glas, Que reste-t-il du savoir absolu?, 1974, Galilée
Idem, Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, 1980, Flammarion
COMO EXCESSO E COMO ALTERIDADE
A filosofia ocidental é assexuada
A alimentacionalidade
A sexualidade como desperdício
O interdito do incesto domina o excesso e prolonga a alteridade
Oscilação e sublimação
Sexualidade e lei segundo a psicanálise
O erotismo e a morte segundo Bataille
A filosofia ocidental é assexuada
1. “Os filósofos são castos”, dizia Gilles Deleuze numa aula sobre a teoria dos afectos de Spinoza, dizia-o com alguma ironia, estava-se nos anos 70, no auge da ‘revolução sexual’. Procurei em vão em três dicionários de Filosofia do sec. XX - um dos começos, sob a direcção de A. Lalande, dois do último quartel, um espanhol dirigido por M. Quintanila, outro francês dirigido por A. Akoun - nenhum incluia uma rubrica intitulada ‘sexualidade’. Esta nunca foi parte das questões filosóficas ocidentais a não ser como relevando da moral, do lado das paixões de que os filósofos se precaviam. [Mas deixem-me que defenda a minha dama, que a castidade não foi defeito mas condição de possibilidade: ao se absterem assim, os filósofos faziam uma escolha, a de se dedicarem à grande experiência do pensamento e, não fôra essa escolha de tão grandes humanos, nós não estaríamos aqui a falar de ‘sexualidade’, a medicina estaria ainda nas sanguessugas dos ‘physicos’, não haveria ciência europeia nem portanto civilização moderna.] Sobre o Amor, sim, há esse monumento venerável que é o Banquete de Platão, mas que, significativamente, ‘à tort ou à raison’, deixou-nos como tradição a expressão ‘amor platónico’, ou seja o amor sem sexualidade. Isto foi assim provavelmente até à segunda metade do século XX, mas ainda hoje, ou encontramos os três volumes interrompidos da História da Sexualidade de Foucault, em que se trata ainda de uma perspectiva ética, ou textos em que ela é encarada a partir da psicanálise, ainda mesmo quando ‘contra’ o Édipo. É nesta rubrica que os dois dicionários referidos se ocupam dela. A excepção, uma reflexão filosófica em que a sexualidade esteja no seu âmago, é G. Bataille, autor desse belíssimo livro, O erotismo, de 1957, de que, apesar do sucesso que teve na época, se pode duvidar que esteja recebido como texto ‘filosófico’. Talvez haja algum texto recente que eu ignore que desminta este alheamento, pelo menos nos seus grandes nomes, da tradição filosófica em relação a uma dimensão intrínseca dos humanos, embora não exclusiva deles. Porventura na imensa bibliografia feminista que, nos últimos 30 anos, se tem ocupado do principal efeito de tal dimensão intrínseca, a diferença entre mulheres e homens.
2. Para não cancelar esta comunicação ‘sexualidade e filosofia’ num desanimado ‘nada consta’, procederei da seguinte maneira, antes de no final vir a Bataille: sem as explicitar como faria para um público de filósofos, terei em conta algumas categorias de pensadores recentes para reflectir, por minha conta e risco, sobre alguns dados que nos vêm da biologia, da antropologia e da psicanálise. Da conferência “Tempo e Ser” de Heidegger, de 1962, reterei o motivo do Ereignis, do ‘(não)-acontecimento’ que é a doação dissimulada, retirada, dos acontecimentos pelos quais o ente é constituido na sua singularidade própria, o que permitiria interpretar, por exemplo, a reflexão da filósofa Séverine Auffrey (citada por Teresa Joaquim, Menina e Moça. A Construção social da feminilidade, 1997): “cronologicamente o um vem mais tarde do que o dois”, explicitação da gestação. De Derrida, que também é excepção ao panorama lacunar que evoquei, já que trata da sexualidade em variados textos (mas sem fazer dela um título de capítulo ou de livro, como de nenhum filosofema tradicional, aliás, faz parte da sua maneira de pensar), reterei o motivo do rasto, vivo e imotivado que implica a relação estrutural ao outro e o do duplo laço, que ele explicitou justamente em leituras da filosofia da família de Hegel e da obra literária de J. Genet (Glas, de 1974) e depois do “Para além do princípio de prazer” (Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, de 1980).
3. O título deste pequeno texto, “Da sexualidade como excesso e como alteridade”, diz as duas características de que me ocuparei, sem pretender que sejam as únicas: o excesso, o desperdício, o aspecto anti-económico da sexualidade, em que ela é parente da arte, do sacrifício, do potlach, da festa, por um lado; a relação ao outro, em que a sexualidade é parente da linguagem, por outro lado. Ora, sucede que estas duas características só se podem definir por contraste com a economia do mesmo, que é definitória da vida, nomeadamente animal, aquilo a que eu daria o feio nome de alimentacionalidade. Terei assim que fazer um desvio prévio, propondo o desenho desta espantosa propriedade da vida, sabendo embora que corro o risco de querer ensinar o padre-nosso ao vigário.
A alimentacionalidade
4. Em que é que consiste a grande descoberta da biologia molecular? Na maneira como a mesma molécula de ADN, em todas e cada uma dos cerca de 200 tipos de células especializadas dum mamífero, por exemplo, está retirada no seu núcleo para poder permitir as muito diferentes sínteses de proteinas do metabolismo no protoplasma dessa célula, donde ela está retirada para poder ser sempre a mesma (à diferença dos diferentes ARNm que de cada vez são copiados e depois da síntese operada degradados). Essas proteínas, sintetizadas a partir de mini-moléculas vindas pelo sangue, vão fazer parte da estrutura funcional dessa célula no conjunto do organismo: vão contribuir para quê? Cada tecido e órgão, no lugar que lhe é específico dentro da economia geral do organismo, vai contribuir, essencialmente e em última análise, para que a cada célula especializada cheguem as proteínas de que ela necessita. A lógica da evolução foi assim a de, partindo de seres unicelulares que se alimentavam das moléculas que as circundavam no mar onde a vida se originou, os ir juntando e especializando de forma a conseguirem essa alimentação de forma cooperativa, digamos, coordenada e menos aleatória: todas especializadas para que todas se alimentem do que todas contribuem para fazer, sem outra finalidade, para cada organismo, do que essa alimentação, do que a reprodução da sua própria substância. [Já se pode antever que é esta mesmidade que a sexualidade vem perturbar, lá iremos.]
5. Foi esta complexidade que tornou possível aos animais largarem o mar e invadirem a terra, depois da aquisição duma espécie de ‘mar interior’, a circulação do sangue (como da seiva nos vegetais), encarregado da última fase da alimentação de todas as células, o chamado aparelho circulatório, após os digestivo e respiratório, formando o conjunto do sistema da nutrição. Falta considerar a outra parte do sistema animal: como ter acesso às moléculas que interessam o organismo, as complexas moléculas de carbono? Estas só existem em outros vivos: vegetais que recebem carbono por fotossíntese, animais herbívoros e carnívoros. No caso destes, um segundo sistema se encarrega de caçar e de fugir a ser caçado: o sistema neuronal, formado de órgãos perceptivos, cérebro e nervos que fazem actuar músculos ligados estrategicamente ao esqueleto ósseo, sistema que é feito agir por pulsões hormonais desencadeadas pelo abaixamento dos teores do sangue no que à alimentação diga respeito. O sistema neuronal completa o da nutrição, a troco da mesma vantagem: que as suas células sejam alimentadas em melhores condições do que se sobrevivessem sozinhas. O que chamo alimentacionalidade é este propriedade sistémica dos animais fazerem a sua própria substância, desde a sua primeira célula, à custa da substância dos outros. O mesmo faz-se de outros. Não é necessário detalhar aqui como, sabendo-se que, quer a caça de presas, quer a fuga de predadores, implica um aleatório fundamental dos comportamentos animais, há uma espantosa economia de meios, anatómicos e fisiológicos, de se realizar esta auto-reprodução à custa de outrem: a economia do mesmo.
6. Se nos deslocamos agora para o estrito campo dos humanos e atendermos a que o desenvolvimento das sociedades tornou muito mais complexa as tarefas sociais, muito além das da alimentação, poder-se-ia mostrar como - cada cria de humanos só se tornando humano, ele também, por via social, isto é pela aprendizagem da linguagem e dos outros usos necessários para a reprodução das unidades sociais (famílias, empresas, etc.) - aprender um uso de outrem é também constituir o seu próprio saber-fazer a partir do saber-fazer dos outros (mas agora sem os destuir, é claro). Ou seja, também há aqui, mutatis mutandis, uma economia de alimentacionalidade, como base estrutural de qualquer sociedade.
A sexualidade como desperdício
7. Voltemos ao nível da evolução e espantemo-nos de muito cedo esta ter inventado um terceiro sistema além do da nutrição e do neuronal, o da sexualidade, como condição da imensa variedade e complexidade das espécies. Uma hidra de água doce ou um verme (os exemplos que aprendi no liceu, já lá vão mais de 50 anos), reproduzindo-se por cissiparidade ou por ‘bourgeonnement’, não saiem fora da lógica económica da alimentacionalidade: tal como uma célula que se torna grande de mais se divide em duas, assim fazem esses bicharocos, mantendo muito estritamente a mesmidade do ADN da espécie (creio). Ora, a reprodução sexual faz-se numa anti-economia flagrante, ela implica que estes indivíduos se ‘acasalem’ por acaso, macho com fêmea, para além dos seus estritos interesses alimentacionais; é preciso pois criar neles interesses de atracção, ou até de sedução, suficientemente fortes para garantirem o acaso desse acasalamento: quantidades enormes de células machas e fêmeas, ou mesmo de sementes que não terão condições de medrar, são produzidas para que um qualquer zero-vírgula, vários zeros e um um no final por cento delas resulte. Ou em nós, humanos, desaparecido o cio das fêmeas algures na maior extensão do neo-cortex dos primatas, não só muitos óvulos e um número astronómico de espermatozoides são produzidos incessantemente em vão, em puro desperdício, como uma parte forte de energia de hormonas esteroides é desencadeada para atrair homens e mulheres em ‘prejuízo’ manifesto das funções sociais quotidianas.
8. Este desperdício revelou-se todavia muito ‘útil’ no ganho de complexidade das economias da alimentacionalidade das espécies. Demos atenção ao primeiro ganho que veio com esta ‘inacreditável’ invenção da sexualidade, que tenho para mim ser como que uma segunda invenção da vida, quase tão improvável e surpreendente como ela. Inventaram-se os machos, as fêmeas e os ‘ovos’, isto é, que um ser vivo nasça de um casal de outros diferentes, nasça ou um ou outra, nasça fora deles e deixando-os lá, com eles. Isto é, invenção do nascimento, da paternidade, da maternidade e da filiação, da futura família, da possibilidade da aprendizagem; invenção por outro lado da morte, dos cadáveres, da morte ‘natural’ que acontecerá a quem não tiver sido comido. Percebe-se que a psicanálise, ao descobrir a sexualidade no íntimo do inconfessado a si mesmo dos humanos, a tenha encontrado em correlato estreito com o pai e a mãe, o nascimento, a infância e a morte. Nada disto há entre as hidras ou vermes: filhos não nascem de pais, não morrem deles mesmos.
9. Esta pulsão anti-económica de desperdício cria uma clivagem entre o indivíduo e a espécie, entre as suas pulsões da ordem da economia alimentacional (ou de auto-reprodução à custa dos outros), e as pulsões para o outro ou a outra, em pura perca de ‘mim’, apenas para bem da espécie. O que estou a querer sugerir, com a importância que estou a dar à dimensão biológica da sexualidade muito antes de haver humanos, é como as suas várias facetas, sociais, afectivas, reprodutivas, prazer erótico possível de ser cultivado além da reprodução, relação à lei e à moral, etc., não são mais do que consequências, aumentadas por efeito da complexidade, do que ela é nela mesma, se se pode dizer, antes dos humanos. É já ao nível dos mamíferos pelo menos, que macho e fêmea são arrancados à sua estrita economia alimentacional, arrancados ao seu si-mesmo em direcção ao outro: dando-lhes prazer, é claro, compensação da espécie à alimentacionalidade no passo de a contrariar fortemente.
O interdito do incesto domina o excesso e prolonga a alteridade
10. Porque é que, de acordo com a célebre tese de Lévi-Strauss, todas as sociedades interditam o incesto? Com uma cajadada mataram-se dois coelhos: uma dupla complementar de razões se pode deduzir do antagonismo entre sexualidade e alimentacionalidade. Como ela é excessiva e não há já cio, haveria o risco de sexo a mais e alimentação a menos, de os excessos de desejo satisfeito com quem está ali à mercê impedirem os usos sociais da habitação quotidiana, o que chamamos trabalho, como se fosse sempre festa. O interdito do incesto é, por um lado, uma forma geral de contenção do excesso da sexualidade para que a alimentacionalidade se possa realizar estavelmente, que os usos correspondentes possam ser aprendidos pelos jovens. Por outro lado, admitir o incesto como meio de reprodução social fecharia a sociedade em ilhas consanguíneas, enquanto que o seu interdito relança a busca da alteridade fora da mesmidade do nascimento, cria laços sociais intrínsecos entre as várias unidades sociais pelas alianças entre famílias. É a extraordinária lição de Lévi-Strauss sobre o primeiro e essencial laço de qualquer sociedade: a exogamia, a troca de mulheres entre linhagens como corolário do interdito do incesto, é a maneira de qualquer sociedade criar uma nova forma de alimentacionalidade, se se pode dizer, de solidariedade social entre unidades (um pouco como as células dum organismo), uma forma mais extensa e completa, uma rede social de famílias com jogos de emulação entre os mesmos e os outros, em que o que chamamos família tem sempre no seu coração materno, no seu coração reprodutivo, uma ‘estranha’ vinda de outra família.
11. O interdito do incesto, se é um travão da sexualidade, é para a lançar para alteridades mais distantes. Ele alia-se assim à aquisição da linguagem, que também é um factor de essencial alteridade. Cada um de nós não dispõe para falar e pensar, como dizia M. Gusmão do poeta, senão das palavras dos outros, que estas não são de ninguém mas de todos: alimentacionalidade por um lado assim da sua aprendizagem, mas também lançamento para a alteridade já que falar e pensar só para outrem também têm sentido, a linguagem é anti-autista por estrutura e funcionamento. Não apenas só se fala ou escreve para e com outros, mas também se fala em outros contextos e épocas, se compara e pensam coisas novas, se compõem mitos, ficções, poesias, ciências e filosofias: trata-se de intensificar alteridades sociais, factoras de história. Porque as novas gerações encontrarão novas coisas para aprenderem, serão outras dos que as dos seus pais.
Oscilação e sublimação
12. Esta oposição entre trabalho, segundo a economia aprendida da alimentacionalidade, e a sexualidade como pulsão excessiva para outros, que perturba essa economia e a sua aprendizagem, não é uma oposição exclusiva, já que se insere nos ritmos de oscilação a que nos obrigam quer o dia e a noite, quer as épocas do ano, oscilações entre trabalho e repouso e férias, entre trabalho e festas. É nesta última oscilação que joga a sexualidade, já que, como a festa, ela gasta energia, não dá repouso. Sem o poder justificar cabalmente (porque implicaria um longo desvio), eu proporia que é nesta oscilação que ela terá o papel sublimador que Freud lhe reconheceu. O conceito de grafos neuronais proposto genialmente por Changeux permite perceber como é que as aprendizagens sulcam o nosso neo-cortex de estabilidades socialmente adequadas, as de saber fazer com espontaneidade e habilidade os mesmos usos do que os outros, com ajuda crucial da linguagem. Por outro lado, se pensarmos na pulsão maior da alimentacionalidade, a da fome, é óbvio que ela só nos obriga a comer, sem nos dizer como o fazermos, se cozinharmos e o quê, se fazermos uma sanduiche ou irmos ao restaurante. O jogo das pulsões hormonais encaixa-se no dos grafos, Damásio tendo-nos dado outro tipo de exemplos, relativos também aos usos de rotina profissional e ao papel da química (de tipo hormonal) dos neurotransmissores nas decisões além dessas rotinas.
13. Ora bem, a sublimação freudiana seria justamente o como se tece este jogo entre pulsões hormonais e grafos de aprendizagem de usos e da língua, estes contendo aquelas e adiando-as (no período de latência), mas nessa contenção que adia (como que citando Derrida) uma parte dessa energia sexual a mais, excessiva, será des-sexualizada para funções sociais, culturais, sagradas, artísticas. Seria o jogo das oscilações (de que os sonhos são índice) que permitiria acasalar os dois factores de excesso e alteridade, a sexualidade e a linguagem, inclusive colocando-os ao serviço das alterações e melhoramentos da economia de alimentacionalidade. O desperdíco anti-económico é, ‘à la longue’, recuperado pela economia. De maneira talvez equivalente àquela pela qual alguns casais de grandes amantes são capazes de tornear com a linguagem a precaridade do excesso da paixão deles e dar-lhes uma continuidade no longo tempo que, sendo porventura rara, ainda mais admirável se torna. Mas isto é tema para o qual me falta mais, do que noutros, a competência.
Sexualidade e lei segundo a psicanálise
14. Há hoje um tipo de resistências à psicanálise, diferentes das que ela encontrou inicialmente. Sugeri acima como a invenção da sexualidade nos primeiros tempos da evolução foi também a do nascimento e da morte, da p/maternidade e da filiação, da possibilidade da aprendizagem: não nos admiremos de que estes temas estejam no coração do discurso psicanalista. A este primeiro argumento de conveniência, quereria acrescentar alguns outros. Os sonhos serão restos de desejos, de excessos que não tiveram cabimento, que voltam assim na oscilação do repouso que o sono paradoxal (Jouvet) proporciona. O que Freud encontrou neles de bizarro, para além da estranheza própria que sempre lhes foi reconhecida, foi que o seu deslindar encontrasse a certo momento resistências no próprio sujeito, ou seja, que este se revelasse, enquanto dormia - em que, por assim dizer, ‘não era ele’ -, como uma complexidade de pelo menos três instâncias: a) a do sonhador que diz ‘eu sonhei isto e aquilo’ e continua no divã a fazer associações em torno desse sonho, b) uma outra que nega e censura algumas dessas associações como se não fossem ‘minhas’, ou não devessem sê-lo, c) a terceira, a desse conteúdo sonhado que horroriza o sonhador, de querer fazer amor com a própria mãe, ou matar o pai, etc. Isto é, a sexualidade quando aparece nos sonhos, aparece sempre-já marcada pela lei, interdita. Além disso, a perturbação é ainda maior de tais desejos proibidos e portanto repugnantes virem no aprofundamento do oculto de desejos muitas vezes bons e convenientes, ou excessivos, obcecados, como certas paixões de artistas, inventores ou pensadores. Por isso que o material se lhe foi impondo, Freud veio a falar respectivamente de ‘ego’, ‘superego’ e ‘id’ para as tais instâncias que dividem e compõem simultaneamente o psiquismo, veio a falar de sexo, interdito e sublimação.
15. Dir-se-á que se tratava de intelectuais burgueses da época victoriana. É certo. Mas que grande espanto não é a leitura do volume de O processo civilizacional de N. Elias que conta como esse ‘super-ego’ burguês se foi forjando na história ocidental, em correlação com a formação, a partir do feudalismo, do Estado moderno e do seu monopólio da violência, se foi forjando na aristocracia da corte dos reis absolutistas, aonde conviviam largo tempo fidalgos e fidalgas de casas diversas, não abrangidos pois pelo intedito do incesto como em suas casas, e devendo a pouco e pouco criar as regras de civilidade sem as quais a civilização não teria sido possível. Sem as quais, por exemplo importante, não seria possível que homens e mulheres hoje partilhassem empregos em que convivem várias horas seguidas por razões de economia, tendo que conter mais ou menos espontaneamente as pulsões sexuais que a evolução inventou há milhões de anos.
O erotismo e a morte segundo Bataille
16. É um tanto indecente resumir, no final desta breve reflexão, a esplêndida inovação filosófica de O erotismo de Georges Bataille, mas provavelmente mais indecente ainda seria calá-la. Definido como actividade sexual independente da procriação, o erotismo é uma “exuberância da vida”, que não pode ser compreendido fora da sua relação com a história do trabalho e com a história das religiões. O horizonte filosófico de Bataille, um pouco bizarro, há que confessar, é o do ser como continuidade, à qual os seres humanos são arrancados violentamente (ao ventre e seio maternos porventura) para serem instituídos como seres descontínuos, indivíduos separados uns dos outros, até que a última violência, a da morte, os faça regressar à continuidade original do ser. Ora, para Bataille, é esse regresso que fascina os seres descontínuos que nós somos e o erotismo é um revelador desse fascínio, da violência que, por sua vez, arranca os seres individuais à posse de si quotidiana, dissolve (como na expressão ‘vida dissoluta’) os laços sociais, atrai-os ao obsceno, à nudez, ao vai-vem dos órgãos sexuais, à maneira duma experiência da continuidade, duma espécie de ‘pequena morte’, perdida a coerência do sujeito que se ‘estilhaça’ no orgasmo, é raptado violentamente na paixão amorosa ou ainda, por outros meios, na experiência mística. É ainda este fascínio pela despossessão que Bataille encontrará noutros domínios, os dos jogos e das batalhas, do amor do perigo e do desafio em que tudo se arrisca, no sacrifício pela/o amada/o. Que encontraremos ainda, se nos quisermos próximos da nossa vida mais prosaica, na fuga constante à repetição, na busca do inesperado, do acontecimento surpreendente. Enquanto Ela não vem.
F. Gros, Os segredos do gene, [1986], D. Quixote
J.P. Changeux, O homem neuronal, [1983], D. Quixote
J.D. Vincent, A biologia das paixões, [1986], Europa-América
A. Damásio, O erro de Descartes, [1995], Europa-América
C. Lévi-Strauss, Les structures élémentaires de la parenté, 1947, PUF
N. Elias, O processo civilizacional, [1939], D. Quixote
G. Bataille, O erotismo, [1957], Antígona
Heidegger, “Temps et être”, Questions IV, [1962], Gallimard
Derrida, De la grammatologie, 1967, Minuit
Idem, Glas, Que reste-t-il du savoir absolu?, 1974, Galilée
Idem, Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, 1980, Flammarion
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