sábado, 21 de junho de 2008

A sexualidade como excesso e alteridade

DA SEXUALIDADE

COMO EXCESSO E COMO ALTERIDADE

A filosofia ocidental é assexuada
A alimentacionalidade
A sexualidade como desperdício
O interdito do incesto domina o excesso e prolonga a alteridade
Oscilação e sublimação
Sexualidade e lei segundo a psicanálise
O erotismo e a morte segundo Bataille


A filosofia ocidental é assexuada

1. “Os filósofos são castos”, dizia Gilles Deleuze numa aula sobre a teoria dos afectos de Spinoza, dizia-o com alguma ironia, estava-se nos anos 70, no auge da ‘revolução sexual’. Procurei em vão em três dicionários de Filosofia do sec. XX - um dos começos, sob a direcção de A. Lalande, dois do último quartel, um espanhol dirigido por M. Quintanila, outro francês dirigido por A. Akoun - nenhum incluia uma rubrica intitulada ‘sexualidade’. Esta nunca foi parte das questões filosóficas ocidentais a não ser como rele­vando da moral, do lado das paixões de que os filósofos se preca­viam. [Mas deixem-me que defenda a minha dama, que a castida­de não foi defeito mas condição de possibilidade: ao se abste­rem assim, os filósofos faziam uma escolha, a de se dedi­carem à grande experiência do pensamento e, não fôra essa esco­lha de tão grandes humanos, nós não estaríamos aqui a falar de ‘sexualidade’, a medicina estaria ainda nas sanguessugas dos ‘physicos’, não haveria ciência europeia nem portanto civilização moderna.] Sobre o Amor, sim, há esse monumento venerável que é o Ban­quete de Platão, mas que, significativamente, ‘à tort ou à rai­son’, deixou-nos como tradição a expressão ‘amor platónico’, ou seja o amor sem sexualidade. Isto foi assim provavelmente até à segunda metade do século XX, mas ainda hoje, ou encontramos os três volumes interrompidos da His­tória da Sexualidade de Fou­cault, em que se trata ainda de uma perspectiva ética, ou textos em que ela é encarada a partir da psicanálise, ainda mesmo quando ‘contra’ o Édipo. É nesta rubrica que os dois dicio­nários referidos se ocupam dela. A excepção, uma reflexão filosó­fica em que a sexualidade esteja no seu âmago, é G. Bataille, autor desse belíssimo livro, O erotismo, de 1957, de que, apesar do su­cesso que teve na época, se pode duvidar que esteja recebido como texto ‘filosófico’. Talvez haja algum texto recente que eu ig­nore que desminta este alheamento, pelo menos nos seus grandes no­mes, da tradição filosófica em relação a uma dimensão intrínse­ca dos humanos, embora não exclusiva deles. Porventura na imensa bibliografia feminista que, nos últimos 30 anos, se tem ocupado do prin­cipal efeito de tal dimensão intrínseca, a diferen­ça entre mulheres e homens.
2. Para não cancelar esta comunicação ‘sexualidade e filoso­fia’ num desanimado ‘nada consta’, procederei da seguinte manei­ra, antes de no final vir a Bataille: sem as explicitar como faria para um público de filósofos, terei em conta algumas categorias de pensadores recentes para reflectir, por mi­nha conta e risco, sobre alguns dados que nos vêm da biologia, da an­tropologia e da psi­canálise. Da conferência “Tempo e Ser” de Heidegger, de 1962, reterei o motivo do Ereignis, do ‘(não)-acontecimento’ que é a doação dissimulada, re­tirada, dos acontecimentos pelos quais o ente é constituido na sua singularidade própria, o que permitiria interpretar, por exemplo, a reflexão da filósofa Séverine Auffrey (citada por Teresa Joa­quim, Menina e Moça. A Construção social da feminilidade, 1997): “cronologicamente o um vem mais tarde do que o dois”, explicitação da gestação. De Derrida, que também é excepção ao panorama lacunar que evoquei, já que trata da se­xualidade em variados textos (mas sem fazer dela um título de capítulo ou de livro, como de nenhum filosofema tradicional, aliás, faz parte da sua maneira de pensar), reterei o motivo do rasto, vivo e imotivado que impli­ca a relação estrutural ao outro e o do duplo laço, que ele explici­tou justamente em leituras da filosofia da família de Hegel e da obra literária de J. Genet (Glas, de 1974) e depois do “Para além do princípio de prazer” (Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, de 1980).
3. O título deste pequeno texto, “Da sexualidade como exces­so e como alteridade”, diz as duas características de que me ocu­parei, sem pretender que sejam as únicas: o excesso, o desperdí­cio, o aspecto anti-económico da sexualidade, em que ela é pa­rente da arte, do sacrifício, do potlach, da festa, por um lado; a relação ao outro, em que a sexualidade é parente da linguagem, por outro lado. Ora, sucede que estas duas características só se podem defi­nir por contraste com a economia do mesmo, que é definitória da vida, nomeadamente animal, aquilo a que eu daria o feio nome de alimentacionalidade. Terei assim que fazer um desvio prévio, propondo o desenho desta espantosa propriedade da vida, sabendo embora que corro o risco de querer ensinar o padre-nosso ao vigário.

A alimentacionalidade

4. Em que é que consiste a grande descoberta da biologia molecular? Na maneira como a mesma molécula de ADN, em todas e cada uma dos cerca de 200 tipos de células especializadas dum mamífero, por exemplo, está retirada no seu núcleo para poder permitir as muito diferentes sínteses de proteinas do metabo­lismo no protoplasma dessa célula, donde ela está retirada para poder ser sempre a mesma (à diferença dos diferentes ARNm que de cada vez são copiados e depois da síntese operada degra­da­dos). Essas proteínas, sintetizadas a partir de mini-moléculas vin­das pelo sangue, vão fazer parte da estrutura funcional dessa cé­lula no conjunto do organismo: vão contribuir para quê? Cada te­cido e órgão, no lugar que lhe é específico dentro da eco­nomia geral do organismo, vai contribuir, essencialmente e em última análise, para que a cada célula especializada cheguem as proteí­nas de que ela necessita. A lógica da evolução foi assim a de, par­tindo de seres unicelulares que se alimentavam das molé­culas que as circundavam no mar onde a vida se originou, os ir juntan­do e especializando de forma a conseguirem essa alimenta­ção de forma cooperativa, digamos, coordenada e menos aleatória: to­das especializadas para que todas se ali­mentem do que todas contri­buem para fazer, sem outra finalida­de, para cada orga­nis­mo, do que essa alimentação, do que a reprodução da sua própria subs­tância. [Já se pode antever que é esta mes­midade que a se­xuali­dade vem perturbar, lá iremos.]
5. Foi esta complexidade que tornou possível aos animais largarem o mar e invadi­rem a terra, depois da aquisição duma espécie de ‘mar interior’, a circulação do sangue (como da seiva nos vegetais), encarregado da última fase da alimentação de todas as células, o chamado aparelho circulatório, após os digestivo e respiratório, formando o conjunto do sistema da nutrição. Falta considerar a outra parte do sistema animal: como ter acesso às moléculas que interessam o organismo, as complexas moléculas de carbono? Es­tas só existem em outros vivos: vegetais que rece­bem carbono por fotossíntese, animais herbívoros e carnívoros. No caso destes, um segundo sistema se encarrega de caçar e de fugir a ser caçado: o sistema neuronal, formado de órgãos percep­tivos, cérebro e nervos que fazem ac­tuar músculos ligados estra­tegicamente ao esqueleto ósseo, siste­ma que é feito agir por pul­sões hormonais desencadeadas pelo abaixamento dos teores do sangue no que à alimentação diga res­peito. O sistema neuronal completa o da nutrição, a troco da mesma vantagem: que as suas células sejam alimentadas em me­lhores condições do que se so­brevivessem sozinhas. O que chamo alimentacionalidade é este propriedade sistémica dos animais fa­zerem a sua própria subs­tância, desde a sua primeira célula, à custa da substância dos ou­tros. O mesmo faz-se de outros. Não é necessário detalhar aqui como, sabendo-se que, quer a caça de pre­sas, quer a fuga de pre­dadores, implica um aleatório fundamental dos comportamentos animais, há uma espantosa economia de meios, ana­tómicos e fisio­lógicos, de se realizar esta auto-reprodução à custa de outrem: a economia do mesmo.
6. Se nos deslocamos agora para o estrito campo dos huma­nos e atendermos a que o desenvolvimento das sociedades tornou muito mais complexa as tarefas sociais, muito além das da ali­mentação, poder-se-ia mostrar como - cada cria de humanos só se tornando humano, ele também, por via social, isto é pela aprendi­zagem da linguagem e dos outros usos necessários para a repro­dução das unidades sociais (famílias, empresas, etc.) - aprender um uso de outrem é também constituir o seu próprio saber-fazer a partir do saber-fazer dos outros (mas agora sem os destuir, é claro). Ou seja, também há aqui, mutatis mutandis, uma economia de alimentacionalidade, como base estrutural de qualquer socie­dade.

A sexualidade como desperdício

7. Voltemos ao nível da evolução e espantemo-nos de muito cedo esta ter inventado um terceiro sistema além do da nutrição e do neuronal, o da sexualidade, como condição da imensa varieda­de e complexidade das espécies. Uma hidra de água doce ou um verme (os exemplos que aprendi no liceu, já lá vão mais de 50 anos), reproduzindo-se por cissipa­ridade ou por ‘bourgeonnement’, não saiem fora da lógica econó­mica da alimen­tacionalidade: tal como uma célula que se torna grande de mais se divide em duas, assim fazem esses bicharocos, mantendo muito estritamente a mesmidade do ADN da espécie (creio). Ora, a re­produção sexual faz-se numa anti-economia fla­grante, ela implica que estes indivíduos se ‘acasalem’ por acaso, macho com fêmea, para além dos seus estritos interesses alimen­tacionais; é preciso pois criar neles interesses de atracção, ou até de sedução, sufi­cientemente fortes para garantirem o acaso desse acasalamento: quantidades enormes de células machas e fêmeas, ou mesmo de sementes que não terão condições de medrar, são pro­duzidas para que um qualquer zero-vírgula, vários zeros e um um no final por cento delas resulte. Ou em nós, humanos, desapa­reci­do o cio das fêmeas algures na maior extensão do neo-cortex dos primatas, não só muitos óvulos e um número astronómico de es­permatozoi­des são produzidos incessantemente em vão, em puro desperdício, como uma parte forte de energia de hormonas este­roides é de­sencadeada para atrair homens e mulheres em ‘prejuízo’ manifes­to das funções sociais quo­tidia­nas.
8. Este desperdício revelou-se todavia muito ‘útil’ no ganho de complexidade das economias da alimentacionalidade das es­pécies. Demos atenção ao primeiro ganho que veio com esta ‘inacreditável’ invenção da sexualidade, que tenho para mim ser como que uma segunda invenção da vida, quase tão improvável e sur­preendente como ela. Inventaram-se os machos, as fêmeas e os ‘ovos’, isto é, que um ser vivo nasça de um casal de outros dife­rentes, nasça ou um ou outra, nasça fora deles e deixando-os lá, com eles. Isto é, invenção do nascimento, da paternidade, da ma­ternidade e da filiação, da futura família, da possibilidade da aprendizagem; invenção por outro lado da morte, dos cadáveres, da morte ‘natural’ que acontecerá a quem não tiver sido comido. Percebe-se que a psicanálise, ao descobrir a sexualidade no ínti­mo do inconfessado a si mesmo dos humanos, a tenha encontrado em correlato estrei­to com o pai e a mãe, o nascimento, a infância e a morte. Nada disto há entre as hidras ou vermes: filhos não nas­cem de pais, não morrem deles mesmos.
9. Esta pulsão anti-económica de desperdício cria uma cliva­gem entre o indivíduo e a espécie, entre as suas pulsões da ordem da economia alimentacional (ou de auto-reprodução à custa dos outros), e as pulsões para o outro ou a outra, em pura perca de ‘mim’, apenas para bem da espécie. O que estou a querer sugerir, com a importância que estou a dar à dimensão biológica da se­xualidade muito antes de haver humanos, é como as suas várias facetas, sociais, afectivas, reprodutivas, prazer erótico possível de ser cultivado além da reprodução, relação à lei e à moral, etc., não são mais do que consequências, aumentadas por efeito da com­plexi­dade, do que ela é nela mesma, se se pode dizer, antes dos huma­nos. É já ao nível dos mamíferos pelo menos, que macho e fêmea são arrancados à sua estrita economia alimentacional, ar­rancados ao seu si-mesmo em direcção ao outro: dando-lhes pra­zer, é claro, compensação da espécie à alimentacionalidade no passo de a contrariar fortemente.

O interdito do incesto domina o excesso e prolonga a alteridade

10. Porque é que, de acordo com a célebre tese de Lévi-Strauss, todas as sociedades interditam o incesto? Com uma caja­dada mataram-se dois coelhos: uma dupla complementar de ra­zões se pode deduzir do antagonismo entre sexualidade e alimen­tacionalidade. Como ela é excessiva e não há já cio, haveria o risco de sexo a mais e alimentação a menos, de os excessos de desejo satisfeito com quem está ali à mercê impedirem os usos sociais da habitação quotidiana, o que chamamos trabalho, como se fosse sempre festa. O interdito do incesto é, por um lado, uma forma geral de contenção do excesso da sexualidade para que a alimen­tacio­nalidade se possa realizar estavelmente, que os usos corres­pondentes possam ser aprendidos pelos jovens. Por outro lado, admitir o incesto como meio de reprodução social fecharia a so­ciedade em ilhas consanguíneas, enquanto que o seu interdito re­lança a busca da alteridade fora da mesmidade do nascimento, cria laços sociais intrínsecos entre as várias unidades sociais pelas alianças entre famílias. É a extraordinária lição de Lévi-Strauss sobre o primeiro e essencial laço de qualquer sociedade: a exoga­mia, a troca de mulheres entre linhagens como corolário do in­terdito do incesto, é a maneira de qualquer sociedade criar uma nova forma de alimentacionalidade, se se pode dizer, de solida­riedade social en­tre unidades (um pouco como as células dum or­ganismo), uma forma mais extensa e completa, uma rede social de famílias com jogos de emulação entre os mesmos e os outros, em que o que chama­mos família tem sempre no seu coração materno, no seu co­ração reprodutivo, uma ‘estranha’ vinda de outra famí­lia.
11. O interdito do incesto, se é um travão da sexualidade, é para a lançar para alteridades mais distantes. Ele alia-se assim à aquisição da lin­guagem, que também é um factor de essencial al­teridade. Cada um de nós não dispõe para falar e pensar, como dizia M. Gusmão do poeta, senão das palavras dos outros, que es­tas não são de nin­guém mas de todos: alimentacionalidade por um lado assim da sua aprendizagem, mas também lançamento para a alteridade já que falar e pensar só para outrem também têm sen­tido, a lingua­gem é anti-autista por estrutura e funcionamento. Não apenas só se fala ou escreve para e com outros, mas também se fala em outros contextos e épocas, se compara e pensam coisas novas, se compõem mitos, ficções, poesias, ciências e filosofias: trata-se de intensificar alteridades sociais, factoras de história. Porque as novas gerações encontrarão novas coisas para aprende­rem, serão outras dos que as dos seus pais.

Oscilação e sublimação

12. Esta oposição entre trabalho, segundo a economia aprendida da alimentacionalidade, e a sexualidade como pulsão excessiva para outros, que perturba essa economia e a sua aprendizagem, não é uma oposição exclusiva, já que se insere nos ritmos de oscilação a que nos obrigam quer o dia e a noite, quer as épocas do ano, oscilações entre trabalho e repouso e fé­rias, en­tre trabalho e festas. É nesta última oscilação que joga a sexuali­dade, já que, como a festa, ela gasta energia, não dá repou­so. Sem o poder justificar cabalmente (porque implicaria um longo des­vio), eu proporia que é nesta oscilação que ela terá o pa­pel subli­mador que Freud lhe reconheceu. O conceito de grafos neuronais proposto genialmente por Changeux permite perceber como é que as aprendizagens sulcam o nosso neo-cortex de esta­bilidades so­cialmente adequadas, as de saber fazer com espon­taneidade e habilidade os mesmos usos do que os outros, com ajuda crucial da linguagem. Por outro lado, se pensarmos na pul­são maior da ali­mentacionalidade, a da fome, é óbvio que ela só nos obriga a co­mer, sem nos dizer como o fazermos, se cozinharmos e o quê, se fazermos uma sanduiche ou irmos ao restaurante. O jogo das pul­sões hormonais encaixa-se no dos grafos, Damásio tendo-nos dado outro tipo de exemplos, relativos também aos usos de rotina pro­fissional e ao papel da química (de tipo hormonal) dos neuro­transmissores nas decisões além dessas rotinas.
13. Ora bem, a sublimação freudiana seria justamente o como se tece este jogo entre pulsões hormonais e grafos de aprendizagem de usos e da língua, estes contendo aquelas e adiando-as (no pe­ríodo de latência), mas nessa conten­ção que adia (como que citando Derrida) uma parte dessa energia sexual a mais, excessiva, será des-sexualizada para fun­ções sociais, cultu­rais, sagradas, ar­tísticas. Seria o jogo das oscila­ções (de que os so­nhos são índice) que permitiria acasalar os dois factores de exces­so e alteridade, a sexualidade e a linguagem, in­clusive colocando-os ao serviço das alterações e melhoramentos da economia de alimentacionalidade. O desperdíco anti-económico é, ‘à la longue’, recuperado pela economia. De maneira talvez equivalente àquela pela qual alguns casais de grandes amantes são capa­zes de tor­near com a linguagem a precaridade do excesso da pai­xão deles e dar-lhes uma continuidade no longo tempo que, sendo por­ventura rara, ainda mais admirável se torna. Mas isto é tema para o qual me falta mais, do que noutros, a competência.

Sexualidade e lei segundo a psicanálise

14. Há hoje um tipo de resistências à psicanálise, diferentes das que ela encontrou inicialmente. Sugeri acima como a invenção da sexualidade nos primeiros tempos da evolução foi também a do nascimento e da morte, da p/maternidade e da filiação, da possibilidade da aprendizagem: não nos admiremos de que estes temas estejam no coração do discurso psicanalista. A este primei­ro argumento de conveniência, quereria acres­centar alguns ou­tros. Os sonhos serão restos de desejos, de excessos que não tive­ram cabimento, que voltam assim na oscilação do repouso que o sono paradoxal (Jouvet) proporciona. O que Freud encontrou neles de bizarro, para além da estranheza própria que sempre lhes foi reconhecida, foi que o seu deslindar encontrasse a certo mo­mento resistências no próprio sujeito, ou seja, que este se revelas­se, en­quanto dormia - em que, por assim dizer, ‘não era ele’ -, como uma complexidade de pelo menos três instâncias: a) a do sonhador que diz ‘eu sonhei isto e aquilo’ e continua no divã a fazer associa­ções em torno desse sonho, b) uma outra que nega e censura algu­mas dessas associações como se não fossem ‘minhas’, ou não de­vessem sê-lo, c) a terceira, a desse conteúdo sonhado que horrori­za o so­nhador, de querer fazer amor com a própria mãe, ou matar o pai, etc. Isto é, a sexualidade quando aparece nos sonhos, apare­ce sempre-já marcada pela lei, interdita. Além disso, a perturba­ção é ainda maior de tais desejos proibidos e portanto repugnan­tes vi­rem no aprofundamento do oculto de desejos muitas vezes bons e convenientes, ou excessivos, obcecados, como certas pai­xões de artistas, inventores ou pensadores. Por isso que o mate­rial se lhe foi impondo, Freud veio a falar respectivamente de ‘ego’, ‘superego’ e ‘id’ para as tais instâncias que dividem e compõem simultaneamente o psi­quismo, veio a falar de sexo, interdito e sublimação.
15. Dir-se-á que se tratava de intelectuais burgueses da época victoriana. É certo. Mas que grande espanto não é a leitura do volume de O processo civilizacional de N. Elias que conta como esse ‘super-ego’ burguês se foi forjando na história ocidental, em correlação com a formação, a partir do feudalismo, do Estado mo­derno e do seu monopólio da violência, se foi forjando na aristo­cracia da corte dos reis absolutistas, aonde conviviam largo tempo fidalgos e fidalgas de casas diversas, não abrangidos pois pelo in­tedito do incesto como em suas casas, e devendo a pouco e pouco criar as regras de civilidade sem as quais a civilização não teria sido possível. Sem as quais, por exemplo importante, não seria possível que homens e mulheres hoje partilhassem empregos em que convivem várias horas seguidas por razões de economia, tendo que conter mais ou menos espontaneamente as pulsões se­xuais que a evolução inventou há milhões de anos.

O erotismo e a morte segundo Bataille

16. É um tanto indecente resumir, no final desta breve re­flexão, a esplêndida inovação filosófica de O erotismo de Georges Bataille, mas provavelmente mais indecente ainda seria calá-la. Definido como actividade sexual independente da procriação, o erotismo é uma “exuberância da vida”, que não pode ser com­preendido fora da sua relação com a história do trabalho e com a história das religiões. O horizonte filosófico de Bataille, um pouco bizarro, há que confessar, é o do ser como continuidade, à qual os seres humanos são arrancados violentamente (ao ventre e seio maternos porventura) para serem instituídos como seres descon­tínuos, indivíduos separados uns dos outros, até que a última violência, a da morte, os faça regressar à continuidade original do ser. Ora, para Bataille, é esse regresso que fascina os seres des­contínuos que nós somos e o ero­tismo é um revelador desse fas­cínio, da violência que, por sua vez, ar­ranca os seres individuais à posse de si quotidiana, dissolve (como na ex­pressão ‘vida dissolu­ta’) os laços sociais, atrai-os ao obsceno, à nudez, ao vai-vem dos órgãos sexuais, à maneira duma expe­riência da continuidade, duma espécie de ‘pequena morte’, perdi­da a coerência do sujeito que se ‘estilhaça’ no orgasmo, é raptado violentamente na paixão amorosa ou ainda, por outros meios, na experiência místi­ca. É ainda este fascínio pela despossessão que Bataille encontrará nou­tros domínios, os dos jogos e das batalhas, do amor do perigo e do desafio em que tudo se arrisca, no sacrifí­cio pela/o amada/o. Que encontraremos ainda, se nos quisermos próximos da nossa vida mais prosaica, na fuga constante à repeti­ção, na busca do inespe­rado, do acontecimento surpreendente. Enquanto Ela não vem.

F. Gros, Os segredos do gene, [1986], D. Quixote
J.P. Changeux, O homem neuronal, [1983], D. Quixote
J.D. Vincent, A biologia das paixões, [1986], Europa-América
A. Damásio, O erro de Descartes, [1995], Europa-América
C. Lévi-Strauss, Les structures élémentaires de la parenté, 1947, PUF
N. Elias, O processo civilizacional, [1939], D. Quixote
G. Bataille, O erotismo, [1957], Antígona
Heidegger, “Temps et être”, Questions IV, [1962], Gallimard
Derrida, De la grammatologie, 1967, Minuit
Idem, Glas, Que reste-t-il du savoir absolu?, 1974, Galilée
Idem, Carte postale, de Socrate à Freud et au-delà, 1980, Flam­marion

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