sexta-feira, 9 de maio de 2008

O QUE É ISSO DE IMAGENS MENTAIS ?


O QUE É ISSO DE IMAGENS MENTAIS ?
1. A notícia, no PÚBLICO de 6/03, chocou-me : ‘Cientistas fotografam imagens mentais’. Como ? É possível fotografar coisas que, filosoficamente, tentei mostrar que não existiam ?
2. A questão : como interpretar uma dada experiência neurológica ? Ela é comandada por uma ‘hipótese teórica’, como se diz, fornecida por aquilo a que o filósofo L. Althusser chamava a ‘filosofia espontânea dos cientistas’. É essa ‘filosofia’, em regra não elaborada filosoficamente (os cientistas não são filósofos), que pode e deve ser discutida.
3. A inteligência e seriedade da Ana Gerschenfeld, jornalista conhecida dos leitores desde o início dos 18 anos agora comemorados, permitem esboçar essa discussão, apesar dos limites do documento. Os autores usaram ‘apenas a análise dos padrões de actividade cerebral geradas pelo visionamento de imagens naturais’, isto é, de fotografias variadas. Um deles está a ver uma fotografia enquanto o outro visiona num ecrã a actividade dos neurónios. A fotografia está ‘cá fora’, no écrã há aquelas coisas às côres que permitem… o quê ? detectar variações eléctricas e químicas dos neurónios das áreas visuais do cérebro. Até aqui não há imagens mentais nenhumas.
4. Centenas de registos destes permitiram elaborar, com um modelo matemático, um dispositivo ‘descodificador’, que ‘produz, a partir de qualquer imagem, um determinado padrão de actividade cerebral’, que permite relacionar tal fotografia vista com tal registo. Eis o essencial da experimentação, que abre perspectivas muito interessantes. Depois testam-se essas relações com um leque de novas fotografias e respectivos registos cerebrais do seu visionamento. Aplicado o ‘descodificador’ aos novos registos, foi possível em 92% e 82% respectivamente identificar a fotografia que correspondia ao registo.
5. Ora bem, não é possível dizer desta experiência que se trata de ‘fotografar imagens mentais’, só há imagens fotográficas exteriores e imagens de ecrã da actividade neuronal. E por conseguinte também não é possível, nem creio que fosse o intento dos autores, provar com ela que ‘há’ imagens mentais. É muito provavelmente um postulado dos cientistas, e se o é da jornalista, é porque ela leu muitos cientistas que têm esse postulado. É ele que os leva a pensar vir-se um dia a ‘fotografar’ a imaginação e a memória. Filosofia espontânea dos sábios : o livro Biologia da consciência, do prémio Nobel G. Edelman, que Ana G. traduziu em francês, põe como questão central determinar se os conceitos (mentais, para ele) se formam ou não antes da aquisição da linguagem. O problema é equivalente ao da fotografia : a linguagem vem-nos do exterior e pode ser sujeita a uma análise semelhante a esta, sem que nunca se chegue a ‘encontrar’ com descodificadores ‘ideias’ (exemplo ‘mental’ por excelência), mas tão só frases ou pequenos discursos, eventualmente podendo ser identificados a partir dos registos da actividade neurológica. Com um perigo : nas mãos de gente como a que Bush permite 'torturar' com simulações de afogamento, seria muito mais 'limpo', seria o fim da liberdade com que até aqui prisioneiros políticos têm resistido aos seus carrascos.
6. Reenviando para argumentação mais ampla no Manifesto do blog ‘filosofiamaisciencias’ (a difícil questão neurológica : cérebro e discurso, sem o chamado ‘mental’), o que aprendi com os neurologistas foi que no cérebro o que há são células, química e electricidade iónica (que interage com a química). Palavras, músicas, imagens, tudo isso é exterior e ‘percebido’ por certos órgãos periféricos que os transformam em electricidade neuronal. O fabuloso é que o cérebro, tendo aprendido cedo a ‘calar’ o que não convém dizer, é capaz de ‘ouvir’ na sua química eléctrica não só os sons que ele diz como os que ele cala, que pensamos, que nós dizemos ‘mentais’. Desde Platão a Kant e Husserl que os filósofos se fascinaram com a experiência de pensarem coisas fabulosas que não tinham aprendido de ninguém, o que tentaram explicar com a reminiscência da alma, o Ego transcendental, etc. O ‘mental’ é descendente dessa dicotomia entre alma e corpo, agora mente e cérebro. O que faz falta é pensar a aprendizagem como estando também na origem do ‘eu’ que pensa.
Público de 14/03/2008

Entretanto
No dia 03/04, o neurologista catedrático Alexandre Castro Caldas publicou um texto no Público com o mesmo título do meu, em que achava 'reducionismo' a afirmação de que 'no cérebro o que há são células, química e electricidade iónica (que interage com a química)'.
O texto que segue, sobre a 'ideia mental', responde-lhe.
Igualmente o geneticista José Eduardo Gomes escreveu no blogue Avezdopeão dois textos, um a propósito de Castro Caldas, outro em relação ao meu. O texto 'imagem mental 2', responde-lhe.
Publicada por Fernando Belo em 17:36 0 comentários

Também a ‘ideia mental’ é uma ficção filosófica
1. Julgo que a censura maior que o meu texto de 14 de Março deveria merecer à resposta que me deu, em 3 de Abril, Alexandre Castro Caldas, ambos com o título ‘O que é isso de imagens mentais ?’, era a do atrevimento de tratar tamanha questão em 3500 letras dum artigo de jornal. É certo que eu me cingi a uma breve descrição fenomenológica da experiência neurológica contada no PÚBLICO de 6 de Março, sugerindo que nela não havia lugar nenhum experimental para as tais ‘imagens mentais’. Mas também houve a exigência de espaço do jornal que fez cair o início do parágrafo 6 desse texto que dizia : ‘Reenviando para o blog ‘filosofiamaisciencias’ (a difícil questão neurológica : cérebro e discurso, sem o chamado ‘mental’) para demonstração um pouco mais elaborada’. Nesse blog, um texto duma centena de páginas oferece um resumo duma obra mais ambiciosa de 1060 páginas (2 volumes), publicada pela L’Harmattan, Paris, 2007, com o título Le Jeu des Sciences avec Heidegger et Derrida. Aí se explica porque é que a interdisciplinaridade, filosofia mais ciências, pode ajudar os especialistas além dos limites da sua especialidade.
2. Vamos então ao debate. Seja um exemplo do que A. Casto Caldas chama reducionismo. Quando telefono, os meus sons tornam-se corrente eléctrica e viram novamente sons no telefone do meu ouvinte. Na corrente não há sons, mas ela é-lhes equivalente, eu diria que é a ‘versão eléctrica’ do discurso sonoro. O telefonema é o conjunto sons - corrente eléctrica - sons. Também assim na televisão, filme - ondas electromagnéticas enquanto versão electromagnética do filme - filme. Analogamente, visão - cérebro - músculos fazem um sistema em que uns elementos não se substituem aos outros (o cérebro não precisa de reproduzir ‘mentalmente’ imagens ou sons que tem nos olhos ou ouvidos). A diferença está no carácter iónico da electricidade neuronal, que lhe permite jogar quimicamente, mas aprendi a ler nos livros de neurologistas, sem que eles o digam expressamente, que a aparelhagem experimental complexa deles joga apenas com a física e a química das células cerebrais. Quando Michel Jouvet interroga o sujeito que dormia durante uma experiência (estava a sonhar ?), a informação que colhe vem-lhe ‘de fora’, para permitir interpretar a experiência e concluir que o sonho se dá na fase do que ele chamou ‘sono paradoxal’.
3. É certo que há redução : o laboratório é ele próprio uma redução de tudo o que lhe é exterior. E é por isso que só tem sentido para os neurologistas e para as suas hipóteses teóricas de trabalho, de que costumam fazer parte a oposição mente / cérebro, filha da separação entre alma e corpo que, juntamente com a de ‘ideia’, receberam da filosofia europeia, de Descartes nomeadamente. Um livro de Heidegger com mais de 80 anos, Ser e Tempo, propôs que o humano é temporalidade e exterioridade, excluindo assim a mente, o espírito, o sujeito, tudo termos que não usa nas suas análises, mas que aqui não posso retomar. É dele que, à minha responsabilidade, é claro, me reclamo, mas também de J. Derrida, que o prosseguiu.
4. Como é que outras disciplinas podem ser úteis ao neurologista ? O melhor exemplo que conheço é o do livro do linguista Maurice Gross, Méthodes en syntaxe (1975), que unificou sintaxe e semântica, no que creio ser a maior descoberta linguística da segunda metade do século XX. Ele analisou 3000 verbos franceses, através da maneira como nas frases regem sujeito, complementos directo e circunstanciais (preposições, etc.) na gíria gramatical tradicional. O que mostra que as regras que estruturam as frases variam consoante os verbos. Ora, o que é fabuloso é que qualquer de nós as use espontânea e muito rapidamente sem ter que pensar nelas. A fazer fé numa alusão breve de J.-P. Changeux, O homem neuronal (p. 153-4, da ed. francesa), são essas regras que se perdem quando há uma lesão da área de Broca, o paciente falando dificilmente apenas com substantivos, adjectivos e verbos no infinitivo. Por outro lado, se fôr a área de Wernicke a atingida, as regras da frase fazem-se bem, só nomes e verbos é que não jogam uns com os outros, as frases não têm sentido. Ou seja, a área de Broca seria a da impressão das regras da sintaxe, de Wernicke a da semântica. Sem que eu saiba dizer como é que a colaboração entre neurologistas da fala e linguistas se deveria fazer, é claro.
5. Talvez este exemplo permita perceber um pouco melhor o que pretendo. Qualquer bilingue sabe que, quando pensa ‘mentalmente’, o faz em português ou francês ou inglês, mas sempre nas regras duma dada língua. Isto é, não há ideias prévias à língua, como Descartes queria, só as há na linguagem. Esta é aprendida cá fora, escutando os outros e depois reproduzindo-os, mas dizendo coisas diferentes, próprias, com as palavras de todos. A grande dificuldade é entender que o nosso ‘eu’ também é gerado neste processo de aprendizagem, quer do falar, quer dos outros usos sociais, é gerado no nosso sistema neuronal. Aprende-se a ‘falar mentalmente’ consigo mesmo, isto é, a pensar (por um qualquer mecanismo neurológico, julgo), como aprendemos a ‘ler mentalmente’ depois de se ler em voz alta e a mexer os lábios.
6. Se dermos conta de que as grandes tradições culturais asiáticas ignoram a ‘definição’, a ‘alma’, o ‘sujeito’, a ‘ideia’, tudo coisas filosóficas, pode-se entender que também ignorassem as ciências que vieram aprender com os Europeus.
7. A. Damásio bem percebeu que havia filosofia cartesiana de que tinha de se desembaraçar nas suas hipóteses de trabalho. Estou só sugerindo que há mais trabalho para fazer.
Fernando Belo
(Uma redução a 3500 letras deste texto foi publicada no Público de 18/04)
Publicada por Fernando Belo em 17:42 0 comentários





Quarta-feira, 16 de Abril de 2008 (resposta de J. Eduardo Gomes, avezdopeao)
Ainda as imagens mentais II
Continuando o post de ontem. O debate anda à volta do artigo publicado na revista Nature pela equipa de Jack L. Gallant, da U. C. Berkley. O artigo começa logo por declarar "A challenging goal in neuroscience is to be able to read out, or decode, mental content from brain activity." (um desafio central em neurociências é ser capaz de apreender, ou descodificar, conteúdo mental a partir da actividade cerebral), sem dúvida ambicioso. O artigo demonstra ser possível a partir de imagens de ressonância magnética funcional (fRMI) do cérebro de um indivíduo deduzir que tipo de imagens ele está a visualizar (isto numa determinada situação experimental). Dois indivíduos visualizaram uma série de imagens enquanto eram observados por fRMI, e a partir deste primeiro conjunto de observações elaborou-se um algoritmo que estabelece um padrão. Num segundo tempo os mesmos indivíduos são observados novamente por fRMI enquanto visualizam imagens que não tinham visto antes. Com o algoritmo tenta-se determinar que imagens estão a ser visualizadas. A eficiência, para um conjunto de 120 imagens foi de 92% num caso e 72% no outro, a probabilidade de acertar por acaso era de 0,8%. Isto quer dizer que com uma eficiência apreciável o algoritmo, analisando o fRMI, consegue determinar que tipo de imagem um indivíduo está a ver, sem ter que lhe perguntar (o que é, tanto quanto sei, um resultado muito inovador). Ou seja é possível olhando para um padrão de actividade cerebral deduzir as imagens que esse cérebro está a processar. Será isto uma imagem mental? Segundo a notícia no Público, de Ana Gerschenfeld, trata-se de facto de imagens mentais (e, a meu ver, bem). Fernando Belo discorda: "(...) não é possível dizer desta experiência que se trata de ‘fotografar imagens mentais’, só há imagens fotográficas exteriores e imagens de ecrã da actividade neuronal. E por conseguinte também não é possível, nem creio que fosse o intento dos autores, provar com ela que ‘há’ imagens mentais." "(...) no cérebro o que há são células, química e electricidade iónica (que interage com a química). Palavras, músicas, imagens, tudo isso é exterior e ‘percebido’ por certos órgãos periféricos que os transformam em electricidade neuronal. "Sem querer transformar o debate numa mera questão semântica, parece-me que o significado da palavra imagem é central nesta discussão. Convém definir claramente o que se entende por imagem. Se entendermos por imagem uma representação visual de um objecto, então as imagens mentais existem. Uma fotografia de uma bola é uma imagem, a bola é o objecto. A fotografia, seja ela uma película de negativo, uma impressão em papel, ou um ficheiro JPEG é sempre uma imagem, é sempre uma representação do objecto. Então e se forem sinapses em vez de grãos de prata em película ou bytes em JPEG, é menos imagem por isso? Como Fernando Belo refere há a percepção do objecto que é exterior, até dada altura. A luz que é emitida pela bola e captada pela retina é exterior até precisamente ao momento em que é captada pela retina, mas até aí não há representação do objecto, apenas a primeira fase (por assim dizer) da percepção. E de cada vez que evocamos a imagem da bola sem que ela esteja à nossa vista, mas que conseguimos visualizá-la mentalmente há uma imagem (por maioria de razão) mental que se forma, tal como se fizermos duplo-clique no icon do ficheiro JPEG há uma imagem digital que se forma. Sem surpresa a única coisa que Castro Caldas diz de interessante (cf. o post de ontem) é quando se digna argumentar: "Quando Fernando Belo diz que no cérebro só há células, química e electricidade, está a ser extraordinariamente reducionista." De facto a imagem de que no cérebro só há células, química e electricidade é algo redutora. É como dizer que o motor de um carro é só cilindros, porcas, parafuso, cambotas, óleo e gasolina. Sim é tudo isso, mas um motor parado é só isso, e um motor parado não nos interessa muito. O que nos interessa é perceber como funciona o motor, quando está em movimento. Assim também o cérebro é células, química e electricidade, mas é também os seus processos: a transmissão sináptica, a formação de sinapses, os potenciais de acção, etc... É isso que o artigo de Gallant consegue demonstrar pela primeira vez: que determinados padrões de actividade neuronal correspondem a determinadas imagens. Por isso o título da notícia de Ana Gerschenfeld "Cientistas fotografam imagens mentais" é tão certeiro. Uma fotografia, ou um padrão de actividade cerebral, podem ser uma imagem e um objecto ao mesmo tempo. Pode obter-se portanto uma imagem duma imagem (fotografar imagens). O artigo da equipa de Gallant mostra imagens de fRMI de imagens mentais, como muito pouca resolução obviamente (por enquanto). É como se se fizesse uma radiografia de uma máquina fotográfica para perceber como ela funciona, enquanto ela própria gera imagens fotográficas. A argumentação de Fernando Belo é estimulante, e espero ter dado alguma resposta. Já este post de João Galamba, ainda sobre o mesmo tema, é-me mais difícil perceber. Parece-me uma recusa liminar de uma abordagem científica do estudo da mente, apenas porque sim. E porque não? Quais mistificações? Por que raio não há-se ser a mente passível deste tipo de abordagem? É um objecto de estudo como outro qualquer. Parece-me aliás bastante plausível que a actividade neuronal seja bem mais do que suficiente para explicar a mente humana, sem recurso a explicações metafísicas (sim, sou profundamente materialista).
Nota: A imagem é retirada do artigo da equipa de Gallant.


Fernando Belo Imagem mental
1. Acho muito importante o objectivo desta experiência. ‘Um desafio central em neurociências é ser capaz de apreender, ou descodificar, conteúdo mental a partir da actividade cerebral’ (Jack L. Gallant). Só discordo da expressão ‘conteúdo mental’, como se verá.
2. Objecções a J.-E. Gomes. A minha citação é ‘no cérebro só há’, a comparação com o motor ‘o motor dum carro é só’. ‘Há’ e ‘é’ não são a mesma coisa. Se eu quiser dizer que só ‘há’ num carro as peças de que ele é feito, para carro em movimento tenho que acrescentar ‘explosão de gasolina’ e ‘piloto’. Quanto ao ‘é’: se quiser saber como é que eu defino fenomenologicamente um carro, veja no Manifesto do meu blogue o capítulo 3, par. 20-21.3. Definição de ‘imagem’. Na descrição da experiência, você diz bem: ‘tipo de imagens ele está a visualizar’, seja uma fotografia. Mas quando você diz adiante: ‘mas que conseguimos visualizá-la mentalmente’, está a introduzir que há imagens mentais. Tudo o resto é desnecessário. Só mais um ponto: no caso da experiência de J. L. Gallant, porque não dizer ‘imagens cerebrais’? Acho aceitável, trata-se da imagem da actividade do cérebro no aparelho de laboratório, duma ‘imagem de ressonância magnética funcional’. O que é que se consegue visualizar mentalmente? O teste clássico é saber se eu ‘visualizando’ o Partenon, consigo contar quantas colunas tem o lado que eu visualizo, se é que o visualizo de lado, nem disso estou certo. Não é nenhuma ‘imagem’ que se visualiza, apenas se tem memória do que se visualizou de facto. As únicas imagens ‘reais’ que temos em nós são as dos sonhos, verdadeiras imagens, vivas, que nos empurram, agem sobre nós, parece-nos que estamos a viver aquilo. Essas, são como uma máquina de projecção de que os olhos foram a máquina de filmar (completando o ciclo, como há o do ouvir palavras e falá-las), de qualquer maneira que se as explique, parece-me claro que elas passam pelos olhos, não são ‘mentais’.
4. Vamos agora ao meu exemplo do telefone, no texto 'ideia mental'. O que esse exemplo implica, quando se vem ao cérebro, é que este funciona num sistema, com órgãos perceptivos e músculos de reacção, o qual sistema está na cena da realidade em que se percebe e se reage. Isto deriva do Heidegger (ser-no-mundo) e não é fácil de explicar em poucas linhas, mas é os antípodas do mental, da alma, da interioridade, isto é, da nossa experiência habitual. O ser-no-mundo oscila, entre atenção e relaxe, estar acordado e adormecer, sono lento e sono paradoxal; se vai dar uma volta num livro que lê, um filme que vê, uma música que canta, não só está fora, como nem sequer está atento ao ‘seu’ mundo ali, está num outro mundo (de imagens, no caso do cinema).
5. O que é que há de difícil em tudo isto? Muitas coisas, por certo, é uma fenomenologia ao contrário da nossa experiência. Uma delas é o cérebro. Ele é fruto da evolução, duplo nas aves e mamíferos, o neo-cortex sendo fundamental nas estratégias de caça e fuga, mormente para a preensão da presa, com a boca e nalgumas espécies dos membros anteriores (A. Leroi-Gourhan). Digamos que esse neo-cortex especializa-se na ‘com-preensão’ estratégica e é essencialmente isso que o nosso cérebro herdou (hereditariedade) e oferece como campo de acção ao neurologista. Mas também herdou (herança) usos e linguagem, que se vêm inscrever nas redes de sinapsis, segundo o que J.-P. Changeux chamou grafos (de que as áreas de Broca e Wernicke são exemplo no que à linguagem diz respeito), onde jogam electricidade e química, os grafos como ‘memória’ e o fluxo nervoso actual percorrendo-os. Há, julgo, duas grandes dificuldades para o neurologista. Uma é deslindar grafo e fluxo. A outra é saber que, sendo a especialidade dos neurónios, enquanto células, o afectarem-se umas às outras formando rede, é nela que se estrutura tudo o que chamamos ‘psicologia’, o que aprendemos, sabemos, recordamos, imaginamos, pensamos, fazemos, etc. sendo auto-afectados por todo esse agir neuronal. O nosso ‘eu’, a nossa ‘consciência’, é essa auto-afectação, faz parte, simultaneamente activa e passiva (recebe e actua), desta estruturação. Desta, não havendo senão células, química e electricidade iónica, sabe-se de duas maneiras: pelo que as pessoas dizem (o neurólogo interroga-as) e pelo que elas sentem, pensam, etc., ‘mentalmente’.
6. Se recuso o dualismo cérebro / mente, penso que ele parece justificar-se pela irredutibilidade metodológica entre o acesso ao neuronal com a aparelhagem laboratorial e o acesso a esta estruturação psíquica, por via do discurso (ou da introspecção). No Manifesto, capítulo sobre a questão neurológica, isto está mais ou menos tratado.
Acrescento em novembro 2011: o Livro da Consciência de Damásio dá uma definição de 'mente' que me agradou muito, os neurónios enquanto só o próprio lhes tem acesso, portanto sem dualismo. Inútil pensar que o neurólogo possa ter acesso à mente de outrem.
Publicada por Fernando Belo em 17:44 1 comentários


Rescaldo sobre as imagens e a mente
1. Ficamos pois com as nossas divergências aclaradas. Elas são essencialmente filosóficas, sobre mente e alma, por exemplo, pode-se demonstrar historicamente (mas eu não sou capaz, era preciso conhecer bem o pensamento dos séculos 17 a 19, filósofos e médicos; por exemplo, o termo 'ideologia' foi inventado no passo do sec. 18 ao 19 por um grupo de médicos e fil
ósofos, Cabanis, Destutt de Tracy e outros, para substituir 'psicologia', por causa de 'psico' ser 'alma' em grego; sendo críticos de Napoleão, este referia-se a eles pejorativamente, e o termo ganhou essa conotação pejorativa). Mas não há, em filosofia, argumentos apodíticos, dependem sempre dos nossos pré-conceitos, a partir dos quais pensamos e que foram sendo construídos no ensino do liceu e universidade, nas leituras e discussões, etc.
2. Só acrescentaria uma coisa, em abono do 'ser-no-mundo'. Há muito de inato nas ligações sinápticas dos nossos cérebros, mas a partir duma certa complexidade de comportamentos - os da nossa tribo, inclui a língua - essas ligações são estruturadas segundo grafos (J.-P. Changeux, O homem neuronal) que constituem a memória da aprendizagem. Aprendemos a usar as coisas em casa e na creche, a falar e a fazer, e é a partir dos grafos dessas aprendizagens que 'apercebemos' do que se passa em redor de nós, no nosso mundo. Foi esse 'mundo' tribal que se inscreveu nos grafos, são estes que correpondem ao que se chama 'mente', que varia obviamente com as diferenças de tribo (classe social, país, região, grau de cultura). Quando sonhamos com gente que conhecemos (familiares, amigos), isso assinala que eles se inscreveram em nós e se apagaram para nós sermos (a partir do que deles aprendemos). A questão mais interessante e mais difícil de todas é essa: nós mesmos, na nossa singularidade mais singular, somos efeito de inúmeros outros que nos 'grafaram' e se apagaram: para que os 'meus' grafos em que eu me conheço a mim mesmo no que faço, digo, penso - sejam 'eu mesmo'

Sem comentários: